domingo, 14 de março de 2021

Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória do Ladrão e do Papagaio... A sorte foi... (09)

 Luaanda... Estória do Ladrão e do Papagaio





Luandino Vieira



acabando...


A sorte foi quando o Garrido chegou na esquadra, o Lomelino não estava lá na prisão, tinha saído na visita, senão ia passar luta. Mas assim, quem lhe recebeu foi mesmo o Xico Futa, o amigo de Dosreis conheceu-lhe logo que ele entrou, envergonhado, arrastando a perna devagar para disfarçar dos olhos de todos.

Porque polícia é assim: chegaram na casa da madrinha dele, nem que pediram licença nem nada, entraram e perguntaram um rapaz mulato, coxo, Garrido Fernandes, e quando ele adiantou sair no quarto, a cara cheia de sono, os olhos azuis a piscar com medo da luz da tarde, falaram logo sabiam ele tinha ido com Dosreis, um verdiano∗, assaltar o quintal de Ramalho da Silva e roubado um saco de patos, o Lomelino é que tinha falado tudo, não adiantava negar, melhor veste a camisa e vamos embora.

Mas Garrido lutou: com a ajuda da madrinha falou, pediu, adiantou mostrar todos os sítios da cubata para verem nada ali que era roubado; e ela jurava, nessa noite o menino tinha dormido cedo, chegara até parecia doente com febre, ela mesmo viu-lhe ir no quarto, deitar, sentiu até a tosse e tudo, como é que tinha ido num roubo de patos?
— Juro, sô chefe! Eu mesmo ainda lhe perguntei: Gagá, você precisa qualquer coisa, e ele me respondeu: não ‘brigado, só que estava chateado com a vida. Verdade mesmo! É que emprego bom não está encontrar, não lhe aceitam, com a perna...

Mas nada, polícia não se convence com as palavras: agarraram já o Garrido nas calças para não tentar se esquivar no quintal e disseram tá-andar. Que tinham uma queixa, o outro é que falou e agora era preciso mesmo lhe levarem para saber a verdade. Nessa hora Garrido ainda estragou mais. Com a mania de se salvar, contou tudo dos casos do roubo do papagaio, saiu embora no quarto, trouxe o cesto onde estava o bicho fechado esperando a hora o mulato ia lhe torcer o pescoço, deitar na lixeira.

— Ah, sim!? Seu rosqueiro! Vamos embora!

E adiantaram, ali mesmo na cara da madrinha, por-lhe uma chapada no pescoço para lhe empurrar no jipe, nem que ligaram mais nas palavras de defesa do Garrido:

— Juro, sô chefe! Por acaso a dona viu, ela mesmo disse para eu levar. É minha brincadeira só!...

Qual: coração de polícia é de pedra e lhe trouxeram mesmo, até contentes porque se a queixa era um falso, já tinham um caso para justificar.

Foi assim que o Garrido contou no Xico Futa, o homem tinha-lhe dado encontro logo-logo na hora que o mulato sentou no chão, desanimado, com a vontade de chorar, de pelejar com o Dosreis, uma coisa assim ele não queria aceitar o outro ia poder fazer, pôr um falso. Ainda se era verdade, aceitava; mas assim doía. E desatou lhe insultar logo. Xico Futa quis falar era amigo do Lome-lino e que sabia os casos; o Garrido não queria lhe responder, mandou-lhe embora, deixassem-lhe sozinho com a raiva dele e esse cap’verde quando ia voltar ia ver só se podia-se fazer pouco a pessoas assim. Mas Xico Futa não desistia nunca quando queria ajudar uma pessoa e esse miúdo do Garrido fazia-lhe pena.

— Oiça então! Com a raiva não resolve. Se você lhe ataca quando ele vem, não adianta. Primeiro: o Lomelino aguenta, pode pelejar. Depois: o cipaio põe-te uma carga de porrada de chicotes. E a razão, qual é?

— Me deixa ‘mbora! Eu é que sei a minha vida! Luto, juro que luto! Um fidamãe daqueles falar eu roubei os patos?

— Oiça então! Um engano pode ser, sucede. Só você é que sabia o assunto ia se passar. Pensa isso, Garrido. O Dosreis ficou com a raiva, julgou você é que tinha lhe queixado porque te deixaram...

Kam’tuta queria se levantar, os olhos azuis a brilhar, maus.

— É isso mesmo! É isso eu não admito. Não é mais o falso, não senhor. Agora, uma pessoa me conhece de monandengue, pode pensar isso de mim? Pode? Diz então? Pode?

Bem, Xico Futa tinha de concordar era verdade, o Garrido estava com a razão dele: mas também quando prenderam no Lomelino era de noite, chegou passou logo maca com o Zuzé, era preciso ver bem os casos, não pensar só assim o interesse dele. E até que não ia suceder nada porque Dosreis já tinha lhe falado ia dizer na justiça que as queixas que estava a pôr no Garrido eram um falso, tudo ficava bem outra vez, passa dois-três dias aqui, mandam-lhe embora.

— Anh!... Cadavez pode ter razão, por acaso, nesses casos. Mas não esquece o papagaio! E isso mesmo é o pior, sô Futa. O pior de tudo! Não é porque roubei o bicho, não. Por acaso não me interessa se fico semana, se fico mês, na cadeia. Mas não lhe matei! E eu roubei-lhe para torcer no pescoço daquele sacana!

Calou, ficou pensar sozinho. Xico Futa acendeu um cigarro, deu para ele, mas Garrido não quis aceitar, só pensava era isso, se calhar, nessa hora, a Inácia já tinha ido na madrinha para receber o papagaio, ia vir na polícia para adiantar pôr queixa, lhe darem embora o bicho. Quando ia sair tudo estava na mesma: o Jacó no pau para lhe xingar, fazer pouco; a Inácia a pôr beijo, a dar confiança num bicho maleducado; e, pior mesmo, o Lo-melino e o João Miguel não iam lhe aceitar mais no grupo. Mas a culpa era mais do Loló, quem mandou-lhe pôr falso que ele tinha ido no capiango dos patos?

— Juro! Luto com ele! Deixa só, quando ele vai voltar!

A tarde estava na janela só com um bocado de luz de sol de cacimbo. Nas tarimbas e no chão, preso era muito; uns dormiam de olho fechado, para descansar; outros de olho aberto, a pensar à toa. Nos cantos, alguns reunidos falavam em voz baixa, trocando casos, a vida de todos os dias. Xico Futa estendeu as compridas pernas pelo chão, acendeu outro cigarro, insistiu para Garrido. Desta vez o mulato aceitou, começou fumar. No lado dele, Futa desatou a rir, primeiro devagar, sacudido, a querer não deixar sair; depois, uma grande e branca gargalhada até as lágrimas chegarem nos olhos dele, o fumo do cigarro ajudava.

— ‘tá rir de quê, então?

— Nada... nada...

Mentira dele. Ria porque estava ver a figura assim do Garrido Kam’tuta perdido no meio do cacimbo e da noite escura, avançando corajoso só para roubar um papagaio. Mirou-lhe bem na cara dele magra e sem barba, sentiu uma grande pena. Falou:

— Possa, mano Garrido! Você não teve mais medo de ir assim sozinho, para tirar o papagaio? Se é uma coisa que vale, a gente arrisca. Agora um bicho que não presta para nada...

A voz de Chico Futa era boa como de Lomelino quando queria ser seu pai, ou João Miguel lhe falava de igual os casos da vida e punha perguntas para o Garrido dizer as ideias certas dele. Riu no Xico e ficou um bocado vaidoso daquele gabanço posto assim por um homem forte. Verdade que nem tinha pensado naquela hora que decidiu, era só a raiva do papagaio que lhe fazia andar.

— Deixa! Eu penso eu fui só porque conhecia-lhe bem, na casa e no quintal...

Diminuía de propósito, para ouvir o outro continuar gabar-lhe a coragem. O melhor era ainda se Dosreis e João ouvissem-lhe para não continuarem a mania de não lhe levar nos serviços, deitar-lhe fora, parecia era lixo. Mas Xico Futa estava já voltar noutros casos:

— Oiça então. Já passou a raiva no Lomelino?

Garrido queria mesmo dizer não, esperava-lhe para lutar, mas a boca não aceitava, se falasse era pôr mentira. Xico Futa tinha estragado tudo dentro dele com as palavras, o cigarro e a amizade, e só resmungar é que conseguiu:

— Oh! Me deixa ‘mbora!

— Não é, Garrido. Oiça! É que o Lomelino vai vir já, está só ali na visita... e eu não quero vocês vão-se insultar. Prometes?

— Não, possa! Não posso...

Era mentira dele e viu-se logo. Na hora que o Zuzé abriu a porta para meter o Dosreis, o Garrido nem que levantou nem nada. Quem pôs um salto e ficou de pé foi o Xico, preparado para agarrar cada qual se quisessem lutar. Mas o Lomelino ficou banzado, o pacote das coisas de comer encostado no peito, a roupa na outra mão, só piscava os olhos gastos, espiava a cabeça caída do rapaz, os cabelos curtos, quase louros, os ombros abaixados com falta de vontade e não podia se mexer dali. Procurou os olhos de Xico, mas Futa fingiu estava espreitar o sol que adiantava entrar na janela grande. Sozinho, sem uns olhos nos olhos dele, sem uma palavra para ele, Dosreis sentiu a verdade da queixa, mesmo que lhe negara depois, não fazia nada: o Garrido estava ali preso também e ele é que era o bufo. Soletrou:

— Garrido?!...

Kam’tuta mostrou os olhos azuis, nessa hora estavam pequenos e frios, pareciam gelados.

— Você... estás zangado comigo?

Nem uma palavra; nada. Só os olhos bem colocados na cara dele, admirados, até parecia o rapaz nunca tinha-lhe visto, ele era um de fora, um qualquer. Sentiu doer na barriga com esse olhar espetado assim nele, não perdoava; lembrou truque, experimentou:

— Ouve, Gagá! Mília mandou um feijão para ti, ela sabe você gosta...

Emília era a mulher do Lomelino. Sempre tratava o Kam’tuta parecia ele tinha só dez anos, gostava muito o ar triste do menino, gostava pôr as palavras em crioulo de cap’verde, falar as coisas da ilha dela, ele tudo queria ouvir, admirado, parecia ela estava mas é a inventar uma estória bonita, e não a falar as coisas da miséria daquela vida nas ilhas.

— Ouviste, Gagá? Emília...

Mas não valia a pena acabar. Garrido já tinha-se levantado, nos olhos essas palavras de Loló tinham posto uma vontade de alegria e para o cap’verde não lhe ver, estava zangado não ia pôr cara de satisfeito, avançou no portão de grades, muito devagar, chupando o resto do cigarro. Lomelino fez gesto de ir atrás, mas Xico Futa agarrou-lhe no braço, puxando-lhe:

— Deixa, compadre! Deixa a zanga dele sair sozinha...

Sentaram na tarimba do fundo, lugar de Xico e começaram desamarrar o embrulho das coisas: panela de feijão d’azeite-palma, farinha, peixe frito, banana, pão. Comida de gente de musseque. A panela estava quente ainda, mas muito tempo que tinha se passado desde a saída de nga Mília na casa dela, longe, longe. Xico Futa começou logo comer, pôs o peixe no pão, roía-lhe com os dentes fortes. Mas Dosreis não-podia: olhava na comida, a cabeça abaixada, a vergonha que estava sentir quando entrou e viu os olhos do Garrido, era mais grande nessa hora com a comida de Mília na frente. Agarrou na mão de Xico, pediu:

— Chama-lhe, mano Xico!...

Futa sorriu:

— Ó Garrido! Vem ‘mbora comer, estamos à espera!

Encostado nas grades, mirando o corredor com os olhos vazios, Kam’tuta tremeu. O cuspo nasceu na boca, pensou o feijão amarelo a brilhar na panela, a farinha a misturar e a fome fez fugir a cabeça dos pensamentos antigos. Mas não se virou. No coração estava ainda ferver um bocado da raiva da queixa, mesmo que tinha visto bem aquela cara de arrependido e triste do Lomelino quando entrou, não ia comer com um bufo.

Cuspiu no corredor, resmungou palavras ele mesmo não sabia mais o que eram e quis meter-se outra vez dentro dos pensamentos dele. Custava, só o feijão estava agora a encher a cabeça, os casos que adiantara pensar naquela hora fugiram, essas manias que o nome dele ia sair no jornal, notícia de roubo de papagaio Jacó e, cadavez mesmo, ele ia guardar só para arreganhar na Inácia, perguntar saber se já tinha nome dela no jornal, muitas vezes, quem sabe, até vinham lhe tirar fotografia para pôr lá...

Mas outra chapada de palavras apanhou-lhe. Do fundo, o verdiano Lomelino, zangado, berrava:

— Kam’tuta, hom’ê! Veja lá se vamos te pedir de joelhos. Vem comer ainda, porra!...

Garrido sorriu e com a asneira de amizade foi mesmo.


*


Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem. Mas juro me contaram assim e não admito ninguém que duvida de Dosreis, que tem mulher e dois filhos e rouba patos, não lhe autorizam trabalho honrado; de Garrido Kam’tuta, aleijado de paralisia, feito pouco até por papagaio; de Inácia Domingas, pequena saliente, que está pensar criado de branco é branco — “m’bika a mundele, mundele uê”∗, de Zuzé, auxiliar, que não tem ordem de ser bom; de João Via-Rápida, fumador de diamba para esquecer o que sempre está lembrar; de Jacó, coitado papagaio de musseque, só lhe ensinam as asneiras, e nem tem poleiro nem nada... E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado.



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∗ verdiano — caboverdiano.
∗ “m’bika a mundele, mundele uê” — “escravo de branco, branco é”

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José Luandino Vieira -

Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.

As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.

E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).

Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.



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a mesma lei, a mesma língua (obviamente do colonizador, um drama linguístico, né? escrever na língua do colonizador)




Luuanda 
Estórias 

Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 1963. 

1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964. 
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares). 
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976. 
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977. 
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.

— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita           em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964. 
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965. 
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou,              1968. 


Leia também:


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