terça-feira, 30 de março de 2021

Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (d)

 Paulo Freire 




“educação como prática da liberdade”: 
alfabetizar é conscientizar 







AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



4. A teoria da ação antidialógica



A TEORIA DA AÇÃO ANTIDIALÓGICA E SUAS
CARACTERÍSTICAS: A CONQUISTA, DIVIDIR
PARA MANTER A OPRESSÃO, A
MANIPULAÇÃO E A INVASÃO CULTURAL


Destas considerações gerais, partamos, agora, para uma análise mais detida a propósito das teorias da ação antidialógica e dialógica.

A primeira, opressora; a segunda, revolucionário-libertadora.


CONQUISTA



O primeiro caráter que nos parece poder ser surpreendido na ação antidialógica é a necessidade da conquista.

O antidialógico, dominador, nas suas relações com o seu contrário, o que pretende é conquistá-lo, cada vez mais, através de mil formas. Das mais duras às mais sutis. Das mais repressivas as mais adocicadas, como o paternalismo.

Todo ato de conquista implica num sujeito que conquista e num objeto conquistado. O sujeito da conquista determina suas finalidades ao objeto conquistado, que passa, por isto mesmo, a ser algo possuído pelo conquistador. Este, por sua vez, imprime sua forma ao conquistado que, introjetando-o, se faz um ser ambíguo. Um ser, como dissemos já, “hospedeiro” do outro.

Desde logo, a aço conquistadora, ao “reificar” os homens, é necrófila.

Assim como a ação antidialógica, de que o ato de conquistar é essencial, é um simultâneo da situação real, concreta, de opressão, a ação dialógica é indispensável à, superação revolucionária da situação concreta de opressão. Não se é antidialógico ou dialógico no “ar”, mas no mundo.

Não se é antidialógico primeiro e opressor depois, mas simultaneamente. O antidiálogo se impõe ao opressor, na situação objetiva de opressão, para, pela conquista, oprimir mais, não só economicamente, mas culturalmente, roubando ao oprimido conquistado sua palavra também, sua expressividade, sua cultura.

Instaurada a situação opressora, antidialógica em si, o antidiálogo se torna indispensável para mantê-la.

A conquista crescente do oprimido pelo opressor aparece, pois, como um traço marcante da ação antidialógica. Por isto é que, sendo a aço libertadora dialógica em si, não pode ser o diálogo um a posteriori seu, mas um concomitante dela. Mas, como os homens estarão sempre libertando-se, o diálogo [1] se torna um permanente da ação libertadora.


[1] Isto não significa, da maneira alguma, segundo salientamos no capítulo anterior, que, instaurado o poder popular revolucionário, a revolução contradiga o seu caráter dialógico, pelo fato de o não ter o dever ético, inclusive, de reprimir toda tentativa de restauração do antigo poder opressor.

O desejo de conquista, talvez mais que o desejo, a necessidade da conquista, acompanha a ação antidialógica em todos os seus momentos.

Através dela e para todos os fins implícitos na opressão, os opressores se esforçam por matar nos homens a sua condição de “ad-miradores” do mundo. Como não podem consegui-la, em termos totais, é preciso, então, mitificar o mundo.

Daí que os opressores desenvolvam uma série de recursos através dos quais propõem à “ad-miração” das massas conquistadas e oprimidas um falso mundo. Um mundo de engodos que, alienando-as mais ainda, as mantenha passivas em face dele. Daí que, na ação da conquista, não seja possível apresentar o mundo como problema, mas, pelo contrário, como algo dado, como algo estático, a que os homens se devem ajustar.

A falsa “ad-miração” não pode conduzir à verdadeira práxis , pois que é a pura espectação das massas, que, pela conquista, os opressores buscam obter por todos os meios. Massas conquistadas, massas espectadoras, passivas, gregarizadas. Por tudo isto, massas alienadas.

É preciso, contudo, chegar até elas para, pela conquista, mantê-las alienadas. Este chegar até elas, na ação da conquista, não pode transformar-se num ficar com elas. Esta “aproximação”, que não pode ser feita pela comunicação, se faz pelos “comunicados”, pelos “depósitos” dos mitos indispensáveis à manutenção do status quo.

O mito, por exemplo, de que a ordem opressora é uma ordem de liberdade. De que todos são livres para trabalhar onde queiram. Se não lhes agrada o patrão, podem então deixá-lo e procurar outro emprego. O mito de que esta “ordem” respeita os direitos da pessoa humana e que, portanto, é digna de todo apreço. O mito de que todos, bastando não ser preguiçosos, podem chegar a ser empresários – mais ainda, o mito de que o homem que vende, pelas ruas, gritando : “doce de banana e goiaba” é um empresário tal qual o dono de uma grande fábrica. O mito do direito de todos à educação, quando o número de brasileiros que chegam às escolas primárias do país e o do que nelas conseguem permanecer é chocantemente irrisório. O mito da igualdade de classe, quando o “sabe com quem está falando?” é ainda uma pergunta dos nossos dias. O mito do heroísmo das classes opressoras, como mantenedoras da ordem que encarna a “civilização ocidental e cristã, Que elas defendem da “barbárie materialista”. O mito de sua caridade, de sua generosidade, quando o que fazem, enquanto classe, é assistencialismo, que se desdobra no mito da falsa ajuda que, no plano das nações, mereceu segura advertência de João XXIII [2]. O mito de que as elites dominadoras, “no reconhecimento de seus deveres”, são as promotoras do povo, devendo este, num gesto de gratidão, aceitar a sua palavra e conformar- se com ela. O mito de que a rebelião do povo é um pecado contra Deus. O mito da propriedade privada, como fundamento do desenvolvimento da pessoa humana, desde, porém, que pessoas humanas sejam apenas os opressores. O mito da operosidade dos opressores e o da preguiça e desonestidade dos oprimidos. O mito da inferioridade “ontológica” destes e o da superioridade daqueles [3].


[2] Mater et Magistra.
[3] “By his acusation, (diz Memmi, referindo-se ao perfil que o colonizador faz do colonizado), the colonizer establishes the colonized as being lazy. He decides that lazinesse is constitutional in the very nature of the colonized.” Ob. cit., p. 81.

Todos estes mitos e mais outros que o leitor poderá acrescentar, cuja introjeção pelas massas populares oprimidas é básica para a sua conquista, são levados a elas pela propaganda bem organizada, pelos slogans, cujos veículos são sempre os chamados “meios de comunicação com as massas” [4]. Como se o depósito deste conteúdo alienante nelas fosse realmente comunicação.

[4] Não criticamos os meios em si mesmos, mas o uso que se lhes dá.

Em verdade, finalmente, não há realidade opressora que não seja necessariamente antidialógica, como não há antidialogicidade em que o polo dos opressores não se empenhe, incansavelmente, na permanente conquista dos oprimidos.

Já as elites dominadoras da velha Roma falavam na necessidade de dar “pão e circo” às massas para conquistá-las, amaciando-as, com a intenção de assegurar a sua paz. As elites dominadoras de hoje, como as de todos os tempos, continuam precisando da conquista, como uma espécie de “pecado original”, com “pão e circo” ou sem eles. Os conteúdos e os métodos da conquista variam historicamente, o que não varia, enquanto houver elite dominadora, é esta ânsia necrófila de oprimir.
 


continua página 079...



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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
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(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)


Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
CDD-374.012
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido



"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 




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