domingo, 28 de março de 2021

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quinto - A Descida — III

 Victor Hugo - Os Miseráveis



Primeira Parte - Fantine

Livro Quinto — A Descida



III — Somas depositadas na casa Laffite


Era ainda, porém, o mesmo homem bondoso e simples de outro tempo. Tinha os cabelos grisalhos, o olhar grave, a tez morena de um operário e o rosto pensativo de um filósofo. Trazia habitualmente um chapéu de abas largas e uma comprida sobrecasaca de pano grosso, abotoada até ao pescoço. Exercia as suas funções de maire, mas fora disso vivia isolado, convivendo com pouca gente, furtando-se a cumprimentos e troca de finezas, saudando de passagem, esquivando-se rápido, sorrindo para se dispensar de conversar e dava para se dispensar de sorrir. As mulheres quando falavam a seu respeito, exclamavam: «Que grande urso!»

Um dos seus maiores prazeres era passear sozinho pelos campos. Comia sempre só, tendo diante de si um livro aberto em que ao mesmo tempo ia lendo. Tinha a paixão dos livros e possuía uma pequena biblioteca muito bem guarnecida. Os livros são amigos imparciais e fiéis. A medida que a fortuna lhe ia dando mais descanso parecia que o aproveitava para cultivar o espírito. Notava-se que desde que residia em Montreuil-surmer, a sua linguagem se tornava de ano para ano mais polida e agradável.

Nos seus frequentes passeios, levava às vezes uma espingarda, de que raro se servia, mas quando isso por acaso sucedia, atirava com uma infantilidade de assustar. Nunca matava um animal inofensivo, nunca atirava a um passarinho.

Conquanto já não fosse novo, dizia-se ser dotado de prodigiosa força. Dava sempre a ajuda do seu braço a quem dele precisava; levantava um cavalo, impelia uma roda atolada e segurava pelas pontas um touro fugido. Quando saía de casa levava sempre os bolsos cheios de dinheiro, mas ao recolher vinha com eles vazios. Se passava por alguma aldeia, as crianças esfarrapadas corriam alegremente atrás dele e rodeavam-no como uma nuvem de mosquitos.

Acreditava-se que aquele homem tinha outrora vivido a vida dos campos, porque conhecia toda a qualidade de segredos úteis, com que instruir os camponeses. Explicava-lhes o modo de destruir o morrão dos trigos, regando o celeiro e inundando as fendas do soalho com uma dissolução de Sal comum; a preservá-los do gorgulho, suspendendo por toda a parte, nas paredes e nos tetos, nas pastagens e nas casas, a planta que o afugenta. Sabia «receitas» para extirpar de um campo o joio, a alforra, a ervilhaca, todas as ervas parasitas nocivas ao trigo. Defendia uma coelheira dos ratos, simplesmente com o cheiro de um pequeno porco da Barbaria, que nela introduzia.

Um dia, estando a observar uns aldeões muito atarefados a arrancar urtigas, olhou para o montão de plantas arrancadas e já secas, dizendo: «Agora já estão inutilizadas.» Não obstante seriam aproveitáveis se soubessem servir-se delas. Quando a urtiga é nova, a sua folha é um legume excelente; depois de velha, tem filamentos e fibras, como o linho e o cânhamo. O tecido de urtiga é tão bom como o fabricado de linho. Cortada, é excelente para a criação; pisada, é boa para os animais cornígeros. A semente da urtiga misturada na comida do gado faz-lhe o pelo luzidio, e a raiz misturada com sal produz uma bela cor amarela, além de ser ainda um excelente pasto, que se pode segar duas vezes. E o que exige a urtiga? Um pedaço de terra, nenhum cuidado, nenhuma cultura. Só o que custa é colher a semente, porque vai caindo, consoante vai amadurecendo; e eis tudo. com mais algum trabalho, a urtiga tornar-se-ia útil; desprezam-na, por isso se torna nociva e então destroem-na. Quantos homens há que se assemelham às urtigas! E depois de uma pausa, acrescentou: Meus amigos, tomai bem sentido nisto: não há ervas más, nem maus homens, o que há são maus cultivadores.

As crianças também o amavam, porque ele fazia-lhes bonitas coisas de palha e casca de coco.

Quando via a porta duma igreja armada de preto, entrava; este homem procurava um enterro, como outros procuram um batizado. Atraía-o o espetáculo da viuvez e da desventura alheia, por efeito da grande doçura do seu carácter; misturava-se com os amigos em luto, com as famílias vestidas de preto, com os sacerdotes, gemendo em volta de um féretro. Parecia dar voluntariamente por texto aos seus pensamentos os salmos fúnebres, em que transparecia a visão de um outro mundo.

Escutava com os olhos voltados para o céu e uma espécie de aspiração para todos os mistérios do infinito, aquelas vozes tristes que cantam à beira do escuro abismo da morte.

Praticava uma infinidade de boas ações, ocultando-se delas, como outros se ocultam para praticar as más. De noite, introduzia-se furtivamente nalgumas casas, subindo cautelosamente as escadas, como um ratoneiro noturno que procura, a coberto da noite, lançar a mão criminosa.

De modo que, um pobre homem, ao recolher-se para o seu miserável tugúrio, encontrava às vezes a porta aberta, ou até com indícios de lha terem forçado, durante a sua ausência e exclamava: «Andaram aqui os ladrões!» Porém, ao entrar, a primeira coisa que via era uma moeda de oiro em cima de algum móvel. O «malfeitor» que andara por ali, era o senhor Madelaine.

Era um homem afável e triste, o que fazia o povo dizer: «Ali está um rico que não tem ar de soberba, como muitos. É um homem feliz, com cara de quem não vive satisfeito.» Pretendiam alguns que era um personagem misterioso e afirmavam não entrar ninguém no seu quarto, o qual era uma verdadeira cela de anacoreta, mobilada de ampulhetas com asas e adornada com caveiras e tíbias dispostas em cruz. Dizia-se isto com tanta certeza, que algumas jovens e elegantes senhoras de Montreuil-sur-mer, foram um dia a sua casa e disseram-lhe:

— Senhor maire, deixe-nos ver o seu quarto, todos dizem que parece uma gruta.

O maire sorriu e conduziu-as imediatamente à sua «gruta». Foram punidas pela sua curiosidade, porque viram simplesmente um quarto guarnecido de móveis, de acaju, feios como todos os móveis deste gênero e com as paredes forradas de papel de doze soldos. O que ali viram de mais notável foram dois castiçais de feitio muito antigo, dispostos sobre a pedra do fogão e que pareciam ser de prata, porque tinham a marca de contraste. Mas isto não obstou, todavia, a que se continuasse a dizer que no quarto dele não entrava ninguém, porque era uma caverna de eremita, uma toca, um túmulo.

Segredava-se também que tinha somas «enormes» depositadas na casa Laffite, com a particularidade de que estava sempre à sua imediata disposição; de tal modo, acrescentavam, que o senhor Madelaine podia chegar num dia a casa daquele banqueiro, assinar um recibo e trazer consigo dois ou três milhões. A verdade era que aqueles dois ou três milhões, como já dissemos, reduzia-se a seiscentos e trinta ou a seiscentos e quarenta mil francos.



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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XII — O bispo trabalha
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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, IV — A alegria de Tholomyés é tão grande que até canta uma canção espanhola
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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VIII — Morte dum cavalo
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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar  — II
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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)


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