Maria Firmina dos Reis
Úrsula
Era, pois, uma dessas tardes em que o sol no seu descambar para o ocaso recebe mil e cambiantes cores, invejadas pela palheta dos Rafaeis, e que se confundem com o sorriso da triste amante, a lua, que ressurge pálida na orla do horizonte. Os últimos raios de um sol vívido misturavam-se com os raios prateados de uma lua de agosto.
E na ampla solidão dos campos, onde se espelhavam as harmoniosas despedidas do rei do dia e o frouxo brilho da deusa caçadora, mais poética magia difundia no espírito daquele que a essa hora encantadora e melancólica os atravessasse com o coração tranquilo.
Silencioso e ermo estava então o cemitério de Santa Cruz, e só o vento, que silvava entre o arvoredo ao longe, e que mais brando gemia tristemente nessa cidade da morte, é que quebrava a solidão monótona e impotente desse lugar do esquecimento eterno!
Esquecimento! Encontrá-lo-emos acaso? Essas dores, que nos retalham o coração, serão porventura esquecidas, dormirão acaso no fundo do sepulcro? Quem sabe?! Quem no-lo poderá afirmar!? Deus. Só Deus o sabe, e os seus arcanos são incompreensíveis. O morto dorme o sono eterno, e a sua campa é muda como os seus lábios!
O sepulcro recebe o segredo do morto, e guarda-o, e o não revela!
E o que vive, diz:
O morto repousa sob a lousa, seu corpo reduz-se a terra, e a paz e o esquecimento das dores humanas, que ele há tanto anelava, lhe oferece a morte.
Oh! Passam-se os séculos, e ele não volve! É sempre mudo, e frio como a terra, que em borbotões se derramou sobre ele!
Simples e quase nu era esse cemitério de Santa Cruz – como devera ser a última morada do homem.
A vaidade não tinha franqueado o seu liminar, aí não havia mausoléus, nem floreadas campas, mas uma capelinha singela e pobre e a cruz com os seus braços distendidos, protegendo as cinzas dos que eram pó, e denunciando que na vida seguiram a sublime religião do Cordeiro Crucificado. Além disso, uma ou outra árvore e ervas rasteiras cobrindo o terreno e invadindo tudo.
A estrada, que ia a Santa Cruz, abria-se aos pés desse lugar de tão saudosas recordações.
Úrsula, a essa hora do crepúsculo, desatinada por tantas dores, depois de vagar incerta no caminho que queria seguir, tinha enfim penetrado no âmbito pavoroso, que encerrava os restos de sua mãe.
De joelhos beijou a terra úmida e ainda revolta pelo alvião: e o pranto amargo, que lhe inundava as faces, e o soluçar magoado, que vinha lá dos abismos de sua alma, eram a mais sincera expressão da sua dor – e a mais grata prece ao altíssimo.
Que soledade a sua! Entregue agora a toda a força de um destino, cuja dureza começava a experimentar, no começo dos seus anos, ela não podia ter ânimo para encará-lo sem tremer.
Que lhe restava agora sobre a terra? Um amor ardente e apaixonado, ternamente correspondido; mas que a esta hora, ignorando toda a sua angústia, todo o perigo que a ameaçava, estava longe de a poder salvar, e amparar contra as fúrias de Fernando!
Pobre e desditosa Úrsula!... Era essa a única ventura que lhe restava – o único elo, que ainda a prendia à cadeia da vida!
Mas a mísera, transida de dor, no excesso de sua íntima e irremediável mágoa, esqueceu o seu amor, e até mesmo a odiosa imagem do comendador. A inconsolável filha chorava a perda irreparável e eterna de sua querida mãe!
No fundo desse sepulcro tão frio e tão silencioso lhe estava a alma!
Ela beijava o pó da sepultura, e um pranto sentido caía sobre essa terra, e filtrando-se, ia como que despertar do sono eterno aquele coração enregelado pela morte, e que tanto amor lhe havia tributado.
E a lua melancólica e pálida, lançando uma chuva de prateados raios sobre o cume das árvores, e sobre a erva do cemitério, e branqueando os braços negros da cruz, junto da qual estavam a sepultura de Luísa B. e a dolorosa donzela ajoelhada, dava a esse quadro mil encantos de sublime poesia. Os olhos da donzela levantavam-se para esse sagrado estandarte da Fé; porque o coração procurava um auxílio do céu; mas logo a cabeça pendia para a terra, e os lábios roçavam o pó da campa.
Depois a dor – mais viva, mais dolorosa e íntima conturbou-a; seus membros tiritaram, a vista obscureceu-se-lhe, e um gemido saiu do imo peito intenso e dolorido: ...era como se nele lhe viesse a vida. Úrsula caiu desmaiada.
Infeliz donzela! Por que fatalidade viu ela esse homem de vontade férrea, que era seu tio, e que quis ser amado? Esse homem, que jamais havia amado em sua vida; por que a escolheu para vítima de seu amor caprichoso, a ela que o aborrecia, a ela a quem ele tornara órfã, antes de poder avaliar a dor da orfandade? A ela que amava a outrem, cujo nome devia conhecer; porque mais de uma vez o vira no tronco da árvore, enlaçado com o de Úrsula, a ela que toda a sua alma, toda a sua vida pertencia agora a esse jovem cavaleiro?!
A pobre donzela, assim desmaiada, semelhava a flor do prado, que murchou, porque o tufão da tarde a arrancou da haste: e ninguém lhe prestava o mínimo socorro, e Deus somente a via, e avaliava a grandeza das suas dores.
O sol tinha de todo desaparecido na estrema do horizonte, e a luz ainda tíbia da lua derramava vaga claridade.
O silêncio tornava-se mais profundo, quando um rumor longínquo começou a interrompê-lo: mais tarde era como o tropear de cavalos que para ali se dirigiam.
Úrsula nada ouvia, e se o tivesse ouvido, seu coração morreria de pavor. Esse tropear de cavalos em demanda do lugar em que se achava, ela julgaria ser o núncio da má vinda de seu tio, que a vinha perseguir, aumentando por essa arte o sofrimento da sua alma.
Mas ela, envolvida nesse torpor, que se assemelha à morte, não tinha consciência do que lhe ia em torno, nem da própria existência.
Pararam os animais junto à estacada de madeira, que cercava a morada dos mortos, e dois homens penetraram o recinto silencioso.
A lua se mostrava toda e prateava-lhes as faces nobres e altivas, e essas frontes estavam inundadas de suor, e uma delas era pálida, e branca; porque o coração gemia sob o peso de amargas comoções; e a outra negra como o azeviche, mas também abatida por profundo pesar.
Estes homens apearam-se com presteza, ataram a uma árvore as rédeas de seus ginetes, e de um salto, cada qual o mais rápido, invadiram a morada do sono eterno.
E junto à cruz lobrigaram o vulto de uma mulher estendida por terra.
— Ei-la! – exclamaram a um tempo ambos eles, e o que era amante, o que sentia no coração referver-lhe um amor estremecido, ajoelhou ante a bela desgraçada, e tomando-a nos braços, exclamou:
— Úrsula!... Úrsula!...
Então essa mulher, que no excesso de sua aflição ele julgara morta, reanimando-se pouco e pouco ao contato de seu corpo, desatou um gemido profundo e dolorido.
— Louvado seja o Senhor Deus! – exclamou Tancredo, a quem sem dúvida já o benigno leitor terá reconhecido.
— Sim, – ajuntou Túlio – bendito seja o Senhor, que protege a inocência! Ela vive, senhor, e será vossa.
— É verdade – disse o jovem Tancredo, estreitando em seus braços a mulher de suas afeições. – Oh! Túlio, quanto sou feliz... Ela vive para mim! – E de novo chegou-a ao coração.
— O tempo urge, – observou Túlio, que menos embevecido que o cavaleiro, receava talvez algum funesto acontecimento – é preciso, senhor, partir incontinente.
— Tens razão, Túlio; mas Úrsula está tão debilitada, que receio não possa suportar as fadigas de uma viagem, que, demais, não pode ser vagarosa.
— É possível que torne a desmaiar, ou que este desmaio, que ora está a terminar, se prolongue muito; mas, senhor, os vossos cuidados revocá-la-ão à vida. Lembrai-vos do que nos disse mãe Susana.
— Sim, – tornou Tancredo – mas supões, Túlio, que eu trema com a lembrança desse homem? Não. Eu só receio que o estado de saúde desta infeliz menina piore, ou venha a perigar por uma viagem imprudente, e que só pode revelar pouco ânimo da minha parte.
Depois curvou-se sobre a moça, e chamou-a. Essa voz amada lhe ecoou na alma. Úrsula abriu os olhos, e reconheceu Tancredo.
— Sois vós? – disse num transporte indefinível de amor e de esperanças. – Oh! Então é verdade que Deus escutou as minhas súplicas?! Tancredo, em nome do céu salvai-me!
— E o que receais, prenda do meu coração? – interrogou o mancebo, revendo-se nos olhos dela.
Então Úrsula, levantando-se com ímpeto, porque tinha despertado completamente do doloroso torpor de suas faculdades, olhou em torno de si, e exclamou:
— No cemitério!!... – E seus olhos exprimiram pavoroso enleio.
— Eu no cemitério! – tornou após breve pausa, e um pranto sentido, mas já menos desesperado se desprendeu de seus olhos, e ela soluçou:
— Minha mãe!... minha mãe! Tancredo, ela já não existe!...
E aqueles dois corações, unidos pelo amor, oraram pelo descanso eterno de Luísa B.
continua pág 101...
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
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Úrsula - Apresentação
Úrsula - Maria Firmina dos Reis: uma voz em conflito
Úrsula - Prólogo
Úrsula - I Duas almas generosas (1)
Úrsula - I Duas almas generosas (2)
Úrsula - II O delírio (1)
Úrsula - II O delírio (2)
Úrsula - III A declaração de amor (1)
Úrsula - III A declaração de amor (2)
Úrsula - IV A primeira impressão
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