sábado, 16 de julho de 2022

Úrsula - XI - O derradeiro adeus!

Maria Firmina dos Reis


Úrsula



XI - O derradeiro adeus! 
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continuando... 


Úrsula ainda tão nova começou a vergar sob o peso de tantas comoções encontradas. Pálida e abatida, semelhava o lírio do vale, que a calma emurcheceu. Era débil para tão grandes embates.
Na sua solidão o homem tinha ido perturbar-lhe a virginal pureza do coração para dar-lhe uma nova existência – o amor; e depois ainda o homem, invejoso dessa momentânea e fugaz felicidade, veio roubar-lhe a tranquilidade do espírito, e envenenar-lhe a suave esperança de uma vida risonha e venturosa, espremendo-lhe no coração a primeira gota de fel do cálice que ela devia libar até as fezes.
Ela, conturbada e aflita, recolhia-se em si para meditar nas expressões ardentes e ameaçadoras do homem da mata, que a amedrontavam, e que a gelavam até o fundo da alma.
E quem será ele? Deus meu! Por que fatalidade me viu, e disse-me que me amava com amor ardente e intenso, que terá a duração da sua vida! Pressagia-me o coração aflito, que esse homem e o seu amor me hão de ser funestos!
Uma voz interna diz-me que aí está uma grande desgraça. Oh! Esse homem ensanguentou os meus vestidos, que eram tão alvos! Cada nódoa desse sangue, que tanto me horroriza, parece-me que serão outras tantas lágrimas de amargura, que tenho de verter
Oh! Meu Deus!... Meu Deus, permiti, Senhor, que eu me engane, e que jamais o torne a ver.
Tancredo! Livrai-me desta aparição ou deste ente repulsivo e ameaçador!... Tancredo! Onde estás a esta hora? Que fazes, que não me vens proteger contra a insolência e as ameaças desse caçador desconhecido? O teu amor há de amparar-me. Oh, sim, o teu amor me dará forças para destruir suas loucas esperanças e esquecer suas terríveis ameaças.
E ela fechou os olhos, mas na mente se lhe figurava constantemente aquele rosto severo, ardente, apaixonado, e ameaçador, aos ouvidos lhe retumbava o som da sua voz: – era como se ainda o visse, ainda o ouvisse, e ela desanimada e sem forças procurava desvanecer essa visão infernal. Depois de algum tempo de luta interna, exclamou: Oh! Que homem tão ousado, cujo olhar sinistro me amargurou a alma! Apareceu a noite rebuçada no seu manto de escuridão, e a donzela supôs encontrar o sossego das trevas e no sono; mas trêmula e agitada no seu leito, invocava embalde o sono, que o fantasma se erguia mudo e impassível, e a sua mente alucinada dava-lhe movimento e voz, e ele blasfemava, e ameaçava, e sorria-se com sarcasmo. Os olhos chispavam fogo, e os lábios agitavam-se convulsos e os membros e o tronco pareciam cobertos de sangue.
E ela revolvia-se no leito, e o corpo tremia-lhe e o suor corria-lhe, e o peito opresso ofegava: era um pesadelo insuportável!
A noite ia já alta, a moça entrou no quarto de sua mãe; ia talvez revelar- -lhe o que se havia passado na mata, descrever-lhe as feições do desconhecido, o acento de sua voz, para ver se descobria indícios que a elucidassem sobre esse terrível adorador, ou ao menos procurar conforto no coração materno, quando com redobrada amargura esta disse-lhe:
— Ânimo! Minha querida filha, não chores: os meus sofrimentos vão já acabar. Sinto aproximar-me da sepultura! Mas Deus me há de permitir ainda ver-te feliz. Sim, feliz! Porque Tancredo te há de dar a ventura, que tanto hei pedido ao céu para a minha Úrsula
A moça, então traspassada de dor, olhou para essa infeliz mulher a quem tão ternamente amava, estremeceu de angústia. Luísa B. não poderia já aspirar a muitos dias de vida, e essa lembrança fez-lhe esquecer sua desagradável apreensão, e até mesmo seu amor apaixonado para entregar-se toda à dor de uma eterna separação, que ela antevia como irrevogável.
E debruçada sobre o colo materno, a donzela derramava sentido e terno pranto que vinha lá do fundo da alma, onde havia dor mil vezes mais cruel que a própria morte.
Ela fechava aqueles olhos alquebrados, que mal podiam já acariciar os seus, aqueles lábios semimortos, que fracamente exprimiam a ternura maternal, aquelas mãos hirtas, e regeladas, que só por sobre-humano esforço erguiam-se ainda para abençoá-la, e o coração partia-se-lhe de angústia.
Brilhou enfim a alvorada, que espantou essa noite tão longa, e de tantas dores. Luísa B. recobrou fictícios sinais de melhoras
Úrsula, mais reanimada, tinha secado o seu pranto e, feliz pelas melhoras de sua mãe, procurava esquecer o desconhecido da mata, cuja entrevista desejava relatar à mãe; mas aguardava para esse efeito um dia em que esta se sentisse mais forte e vigorosa.
Úrsula receava incomodá-la com os seus receios, aliás tão bem fundados. Tinha razão – Luísa B., no aflitivo estado em que se achava, morreria instantaneamente vendo a filha querida de seu coração ameaçada por um homem, cuja fereza desenhava-se no seu aspecto.
Sim, Úrsula tinha razão, Luísa não poderia resistir a esse novo embate: era demais para uma fraca moribunda.
E alguns dias tinham-se já passado depois dessa noite de penosas comoções, e Luísa B. era ainda a mesma débil, esquálida enferma, mas terna e desvelada mãe, e parecia mesmo na aproximação da morte redobrar de afetos e de carícias, ameigando com ternura extrema sua inconsolável filha, toda pranto e saudades.
Um dia, porém, Luísa pareceu recobrar forças, que há muito a haviam abandonado, e a filha viu com prazer errar-lhe nos lábios um sorriso animador. Acreditou que suas lágrimas tinham tido o poder de arrancar a mãe às mãos da morte, e prostrada rendeu graças ao Senhor.
Pobre Úrsula!...
Era esse o dia destinado, e há tanto esperado, para ela informar sua mãe sobre a entrevista da mata, e começava já a dispô-la para esse fim, quando bateram à porta.
Ela levantou-se precipitadamente, e foi abri-la: era um escravo, que inqueriu:

— A senhora Luísa B.?

— É minha mãe – tornou a moça.

— Fazei-me o favor de entregar-lhe essa carta, minha senhora.

— Sim – tornou Úrsula, e acrescentou: – Não se poderá saber donde veio?

O negro, sem dar resposta, saudou-a humilde e respeitosamente, e picando o cavalo, seguiu a trote largo pela imensidade do campo.
A moça voltou para junto de sua mãe, e apresentou-lhe a carta, trêmula e desassossegada.

— Uma carta! – exclamou esta. – E donde virá ela? Lede-a, minha filha.

Úrsula quebrou o selo da carta, e reprimindo sua inquietação, começou nestes termos:
Luísa, minha cara irmã.

— É de teu tio – exclamou a mãe, confusa, e assustada. – Que me quererá?
    
Úrsula comprimiu com as mãos a fronte, que súbita dor acometera. Uma vertigem lhe obscureceu a vista; mas acalmando-se-lhe o natural sobressalto, continuou a ler:

           
                                  
É necessário que nos vejamos ainda uma vez na vida, e conto que anuirás a este desejo, ou antes súplica de teu irmão.
Minha irmã! Minha Luísa! Muito me tens a perdoar; porque gravíssimo é o mal que te hei feito; mas és boa, teu coração não pode alimentar ódio por aquele que foi sócio dos teus jogos infantis, e que na juventude te amou com essa doçura fraternal, que só tu compreendias; porque eram gêmeas as nossas almas.
Luísa, minha doce irmã, porque me tornei eu mau e odioso a meus próprios olhos depois que tomaste Paulo B. por esposo? Por quê? Nem o sei eu! Talvez o desejo que sempre tive de dar-te uma posição mais brilhante, como muitas vezes te fiz sentir. Malograste, no entretanto, as minhas intenções, esposando esse homem, que...
Esse foi o teu crime, crime que eu nunca te haveria perdoado, se o céu se não incumbisse desta conversão, que sem dúvida te há de admirar; porque a mim mesmo me admira.
O mais dir-te-ei vocalmente; porque só deve esta preceder-me uma hora.
Adeus.
Teu afetuoso FERNANDO.


— Meu Deus! – exclamou a viúva de Paulo B. após alguns momentos de silêncio – Que quer dizer isto? Esta conversão! Oh! Não o compreendo. Úrsula, minha filha, não sei por que aperta-se-me o coração à aproximação dessa entrevista. Fernando, meu irmão! O teu ódio ainda não estará vingado?!

Mas – continuou a pobre mulher – ele me fala de perdão: Deus! Será possível que se haja arrependido, e que o meu sofrimento lhe tocasse o coração empedernido?!

— Duvido, minha mãe – objetou Úrsula – duvido. Para que vem ele perturbar o nosso sossego?

E entrou a cismar sobre tão inesperado e estranho assunto. Falava em sossego! Como se ela o gozasse há dias! Depois dessa desgraçada entrevista da mata, sentira um só dia o que era tranquilidade? Não, por certo. Mas, Fernando P***! Que vinha ele aí fazer? Úrsula tinha horror a semelhante parente, e implorava ao céu o arredasse sempre da sua vista. Graves suspeitas pesavam sobre o comendador, e a infeliz órfã não podia lembrar-se dele sem temor.
E Luísa tinha suas razões; por isso, agora mais que nunca, estava aflita e inquieta, mas Úrsula, para tranquilizá-la, disse:

— Porque estais assim a tremer, minha querida mãe? Que mal vos poderá ele fazer além dos que já tem feito? Ele vos fala em perdões, trata de uma conversão...

— Operada pelo céu, que a ele mesmo admira! – Tornou Luísa, interrompendo sua filha, que cada vez se sentia mais inquieta. Esta conversão assemelha- se a todos os atos de sua vida: esta conversão deve nos ser funesta!

— Pensais isso, minha mãe? – interrogou a pobre Úrsula pálida e convulsa.

— Sim, minha filha, e quase que te posso assegurar.

— Santo Deus! – exclamou Úrsula, precipitando-se para fora do quarto de sua mãe, e cobrindo o rosto com as mãos ambas.

O caçador desconhecido acabava de entrar sem anunciar-se.

— Fernando! – exclamou Luísa, tornando-se lívida, e tiritando de frio.

— Luísa! Luísa, minha querida irmã! – bradou o comendador, correndo para ela, e unindo-a ao seu coração.

Este brado terno e comovido revocou a infeliz mulher a uma vida, que ela já julgava extinta, e esquecendo por um instante todo o amargor que Fernando lhe derramara no coração, sorriu-se para o irmão que amara, e por momentos brilhou-lhe no rosto a alegria, e disse:

— Meu irmão!

E Fernando cedeu então ao mais belo transporte da sua alma, ao único sentimento virtuoso, que Deus aí lhe implantara, e que embalde tinha lutado por abafar, ou destruir.
Fernando combatia há dezoito anos o poder desse amor fraterno, e seu orgulho conseguiu, por algum tempo, o que o coração repugnava, o que a razão e a inteligência condenavam, e o que ele sentia dolorosamente; porque só nesse afeto lhe estava a ventura de toda a sua vida.
E para vencer-se, obstinadamente evitava a vista de sua irmã, a que não poderia resistir, para bem saciar a sua vingança, para bem flagelar-se, flagelando-a na sua desgraça.
Fernando tinha vivido solitário, e desesperado com essa luta terrível do coração com o orgulho: e esses desgostos íntimos, que ele próprio forjava, o tinham embrutecido, e tanto lhe afearam a moral, que era odiado, e temido de quantos o praticavam ou conheciam de nome.
Ele tornara-se odioso e temível aos seus escravos: nunca fora benigno e generoso para com eles; porém o ódio, e o amor, que lhe torturavam de contínuo, fizeram-no uma fera – um celerado.
Nunca mais cansou de duplicar rigores às pobres criaturas, que eram seus escravos! Apraziam-lhe os sofrimentos destes; porque ele também sofria.
Eis aí pois a alma implacável na maldade do irmão de Luísa.
E Úrsula! Onde estava ela?
Pobre menina! Correu sem tino, e sem consciência do que fazia, porque acabava de reconhecer em seu tio o caçador, cuja voz e cujas expressões não podiam ser esquecidas. Seu aspecto, suas ameaças, seu amor violento e libidinoso já o tornavam repelente, e agora via nele Fernando P., o perseguidor de sua mãe e talvez o assassino de seu pai!...
O coração pulsava-lhe com veemência – parecia querer estalar.
Compreendeu toda a extensão do perigo iminente, que estava sobre sua cabeça. Sua mãe pouco poderia viver, Tancredo estava ausente. O comendador ia triunfar, já não havia dúvida. Oh! Essa ideia era horrível!
Úrsula correu louca por algum tempo, ora invocando a morte, ora maldizendo a hora de seu nascimento, até que afinal, vencida por tão violentos embates, caiu em uma prostração mórbida, donde a preta Susana a veio arrancar para dizer-lhe:

— Ide, ide, que minha senhora lhe quer falar. Ah! Ela não pode tardar.

E abafou-lhe a voz copioso pranto.
Úrsula abriu os olhos, estremecendo, e perguntou:

— Que me queres?

E reparando que a escrava chorava, tornou-lhe enternecida:

— Pois que, Susana, tu também choras?!

A velha africana pegou-lhe da mão, e disse:

— Acompanhai-me, vossa mãe está a morrer.

Úrsula exclamou fora de si:

— Oh! Não, mentes, não pode ser! Tu te enganaste, Susana, não é verdade?

Susana tomou-a nos braços, e apontando para o leito da moribunda:

— Vede-a. Ela vos quer falar.

Luísa B. estava só: seu irmão tinha-lhe já dito o derradeiro adeus, ela agora necessitava falar a sua filha – desabafar com ela e dar-lhe o último ósculo maternal!



continua pág 93...

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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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Úrsula - XI - O derradeiro adeus!
Úrsula - XII - Foge!

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