terça-feira, 19 de abril de 2022

Úrsula - X - A mata (1)

Maria Firmina dos Reis


Úrsula



X - A mata 
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Úrsula, no entanto, no meio da acerba amargura da saudade sentia um inefável transporte de amor e era feliz – seu amor ardente e apaixonado fora compreendido, sem que por seus atos o desse a perceber ao homem que o merecera. Ambos esses corações sentiram ao mesmo tempo desabrochar- -lhes a centelha do amor que os abrasou. A saudade pungente da donzela tinha pois um lenitivo – a esperança, esse dom do céu que nos acompanha em todas as circunstâncias da vida.

Tancredo, esse homem de suas loucas afeições, e que ela tinha amado ainda desconhecido, era toda a sua vida; e por isso a saudade, a mais pungente, a primeira que lhe tocava a alma, envenenava agora essa fonte de prazer inocente, esse manancial de venturas, que aí havia feito nascer a chama de um primeiro e ardente amor.

Nunca tinha amado – na sua solidão seu coração era tão puro como o de um anjo; foi esse o primeiro choque que lhe abalou a alma, e a saudade devia corresponder à grandeza desse sentimento. Chorava, pois, porque ia ver partir o objeto de suas mais caras afeições; mas no momento da partida fez um supremo esforço sobre sua aflição e estendeu a mão ao mancebo, que a beijou com enlevo, e perguntou-lhe com magoado acento, que bem revelava o pungir do seu coração:

— Tancredo, quando vos tornarei a ver?

O mancebo, comovido por tanto amor, amor que era ternamente correspondido, amor que ele embalde tinha procurado na primeira mulher, que amou, sorriu-lhe com reconhecimento, e tornou-lhe com afeto.

— Lembrai-vos, Úrsula, que vos levo no coração, que seguir-me-á a vossa imagem, que hei de ver-vos em todos os objetos que me circundarem, que deixo minha alma e meu coração – todo o meu prazer, minha felicidade presente, o esquecimento de um passado amargo, as esperanças de um porvir deleitoso e cobiçado: lembrai-vos disto, e acreditai que breve estarei convosco. Contarei os dias da ausência pelo pungir de minhas saudades, e por breves que eles sejam achá-los-ei por demais longos. Longínquo é ainda o caminho que tenho a percorrer, mas a lembrança de que um anjo me aguarda com amor, e que esse anjo sois vós, dar-me-á asas, e estarei convosco daqui a meio mês. Então – acrescentou com um acento inexprimível – então serei para sempre vosso!

E Úrsula sentia-se inquieta, como se um perigo iminente estivesse a ameaçá-la.

O cavaleiro enfim partiu, e ela nada disse, e só um soluço doído, como o de quem geme de um pesar profundo, lhe rebentou do peito.

Tancredo transpusera já grande espaço, e Úrsula ainda não mudara seus olhos umedecidos de sobre ele, e o mancebo prosseguia rápido, até que uma ilhota de verdura o encobriu à vista da saudosa donzela. Então deixou o lugar dessa tocante despedida, e, como desejosa de confiar a alguém a dor das suas saudades foi correndo à mata, onde tinha ouvido dos lábios dele a confissão sincera do seu amor, e logo para aí dirigiu os passos, penetrou a mata, e lá, junto ao tronco secular, começou a derramar sentidas lágrimas. O sol, segundo sua marcha inalterável, dardejava na terra seus últimos e enfraquecidos raios, insinuando luminoso resplendores por entre as franças do arvoredo da mata solitária.

E Úrsula soluçava com lembrança da partida de seu jovem adorador, quando ao longe julgou ver dois pontos fugitivos. Era Tancredo, era Túlio, ela os reconheceu, ou melhor, o seu coração reconheceu o primeiro; e ela louca de afeto, que lhe requeimava o peito, estendeu-lhe os braços com delírio e com voz sufocada de novo lhe enviou seus ternos protestos. Mas ele ia já muito avançado para ouvir-lhe essa voz saída do coração.

A donzela então saiu da mata; porque lembrou-se de sua mãe, e volveu para ela; mas no dia imediato, à mesma hora do crepúsculo, voltou à mata, e imergida em sua meditação às vezes esquecia-se de si própria para só pensar no seu Tancredo. Soltando as asas à sua ardente imaginação, seguia-o na sua divagação, escutava-lhe a voz no rumorejar do vento, via-o no meio da solidão, e afagava-o com seus meigos transportes nesses lugares onde só estavam ela e Deus. E depois de longo e profundo cismar, muitas vezes punha-se a entalhar na árvore, testemunha de sua primeira ventura, o nome querido de Tancredo! Tão doce aos seus ouvidos. Com tanto esmero procurou entalhá-lo esse dia que, completamente absorvida nesse empenho, se esquecera do mundo inteiro. E o nome enfim estava completo, e ela pôs-se a soletrá-lo com um enlevo próprio da sua idade, e que só as almas apaixonadas podem compreender, quando o som desagradável, e medonho de um tiro de arcabuz, disparado bem junto dela, a veio arrancar a esse recreio do espírito e a fez estremecer convulsa e dar um grito involuntário. Espavorida, e meia morta de terror, ia ela alevantar-se, quando uma avezinha, uma infeliz perdiz, como que implorando-lhe socorro, veio, ferida e agonizante, cair-lhe aos pés. Movida de compaixão, desvaneceu-se-lhe por encanto o pavor que o som do tiro lhe incutira na alma e, tomando a pobrezinha em suas mãos, por excesso de bondade levou-a ao peito. Um rastro de sangue lhe nodoou os vestidos alvíssimos de neve.

Nesse momento, a desgraçada perdiz exalou o derradeiro suspiro: a moça deixou-a cair das mãos, levou estas aos olhos, e exclamou:

— Jesus! Meu Deus!

É que mudo, e contemplativo, junto dela estava um homem. Os olhos, tinha-nos ele fixos sobre a donzela amedrontada – dir-se-ia a estátua do pasmo, ou da admiração.

E Úrsula e esse homem por alguns momentos guardaram profundo silêncio; nela motivavam-no a surpresa, o terror, o desgosto, que lhe causavam a fisionomia desse homem de tão sinistro olhar: nele, a deleitável contemplação desse rosto feminil de tão pura e ideal beleza.

E assim permaneceram, ela a recobrar coragem para escapar a esse desconhecido que a incomodava; ele a contemplar-lhe as negras tranças molemente reclinadas sobre uns ombros de marfim, as mãos diáfanas e mimosas, que lhe velavam o rosto, que divisava ser belo como o rosto angélico de um querubim.

Por fim, a moça desembaraçou de entre as mãos as faces cândidas e aveludadas, e olhou em cheio, com horror e com desdém para o seu mudo companheiro. Assim desdenhoso esse rosto, que ainda tão vivamente se ressentia das comoções por que havia passado o coração, era ainda mil vezes mais belo.

E esse olhar tão expressivo, o desconhecido sentiu que queria dizer-lhe:

— Ide-vos!

Ele embalde tentou obedecer a essa ordem muda de um ente tão divino, qual jamais havia visto; mas quem sabe se o coração lhe permitia?

Estranho foi o que se passou então em sua alma, e ele sentiu que alguma coisa lhe abalava o fundo do peito; gemeu de um primeiro afeto, e curvou-se ao ímpeto de uma paixão insensata.

E o instrumento mortífero estava-lhe nas mãos, e ele o não via, porque seus olhos estavam fitos sobre a encantadora donzela: mas ela o viu, estremeceu, e um novo grito lhe prorrompeu dos lábios.

Úrsula ia fugir.

— Em nome de vossa mãe – exclamou o caçador, tolhendo-lhe os passos – não fujais, Úrsula!

A esta expressão, a filha de Luísa B. fitou-o com curiosidade: este homem tão estranho conhecia-a sem dúvida, e ela nunca o tinha visto! Chamou-a pelo seu nome, suplicou-a em nome de sua mãe!... quem era ele pois?

Ele compreendeu tudo, e por um instante a perturbação da sua alma transpirou-lhe no rosto alguma coisa alterado. Depois arremessou com desprezo para longe de si o arcabuz, que amedrontava a moça, e voltou para ela os olhos, como querendo dizer-lhe:

— Tranquilizai-vos!

Com efeito, esta ação de delicada civilidade um pouco a reanimou, e, quase envergonhada de ter patenteado tão feminil fraqueza de ânimo, procurou reassumir alguma coragem, e erguendo a fronte, encarou o desconhecido com uma frieza que o perturbou.

Ele tentou falar; mas os olhos dessa menina lhe impuseram respeitoso silêncio.

Esse homem não estava no verdor dos anos; mas sua fisionomia, suposto que severa e pouco simpática, nessa hora crepuscular, que dá certa sombra a toda a natureza, não denunciava a sua idade. A pele sem rugas, os olhos negros e cintilantes, tinham um quê de belo; mas que não atraía. Era de estatura acima da medíocre, esbelto, e bem conformado; e as feições finas davam-lhe um ar aristocrático, que, quando não atrai, sempre agrada.

Malgrado seu, Úrsula começou a sentir-se oprimida pelo olhar do desconhecido, a quem o seu deixava já de dominar, e caiu de novo sobre o assento talhado no tronco. Era como se esse homem a tivesse magnetizado. A sua vista causava repugnância, queria escapar-lhe; mas as forças abandonavam-na e seus belos olhos cor de ébano estavam sobre ele fixos.




continua pág 85...

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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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Úrsula - X - A mata (1)


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