segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Memórias do Cárcere - Viagens 7

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos



Volume I 

 Editora Record 

PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 


7

QUANDO nos vimos sós, abri a valise, retirei objetos necessários, despi-me lentamente, os braços pesados, estendi a roupa no encosto de uma cadeira, vesti um pijama. O capitão Mata vencera a loquacidade e acomodava-se à pressa, metódico, cochichando-me reparos, porque tinha chegado a hora do silêncio e as expansões se tornavam impossíveis. Ultimados os arranjos, estabelecidas as coisas nos lugares convenientes, despediu-se, apagou a luz, deitou-se na cama de feno posta a um canto da sala estreita, ao pé da entrada, e adormeceu logo. A minha cama, do outro lado, ao fundo, ficava junto a uma janela aberta sobre um pátio cheio de sombras Na parede onde o meu companheiro se encostava, uma porta fechada; em frente, uma janela, também fechada. Não sei onde lavei as mãos e o rosto, esqueci pormenores, ignoro se havia água encanada ou lavatório com jarro. Uma mesinha, duas cadeiras, só.
Deitei-me, fiquei a virar-me e a revirar-me no lençol dobrado, tentando em vão chamar o sono. Realmente não posso dizer se dormia ou velava: feriam-me os sentidos uma faixa alvacenta que me banhava os travesseiros, o vulto indeciso do capitão, a mesinha, as cadeiras, a sentinela encostada ao fuzil, no alpendre, nova sentinela a amofinar-se no serviço cacete; mas às vezes tudo se embrulhava, entre as visões concretas esboçavam-se fantasmagorias – e era-me impossível saber onde me achava, porque me estirava no colchão alheio, depois de solavancos infinitos em estrada de ferro. A minha vida anterior se diluía, perdia-se além daquele imenso espaço de vinte e quatro horas. Um muro a separar-me dela, a altear-se, a engrossar, e para cá do muro – nuvens, incongruências Entre esses farrapos de realidade e sonho, era doloroso pensar numa inteira despersonalização. Como iria reagir às ocorrências imprecisas que me aguardavam? As imagens vagas misturadas aos móveis sumiram-se, despertei completamente e foi impossível conservar, no calor, a posição horizontal.

Ergui-me, tateei a roupa no encosto da cadeira, tirei dos bolsos cigarros e fósforo, debrucei-me à janela, fiquei longamente a olhar o pátio escuro, fumando. Como iria comportar-me? Se me dessem tempo suficiente para refletir, ser-me-ia possível juntar ideias, dominar emoções, ter alguma lógica nos atos e nas palavras, exibir a aparência de um sujeito mais ou menos civilizado. Mas na situação nova que me impunham, fervilhavam as surpresas, e diante delas ia decerto confundir-me, disparatar, meter os pés pelas mãos. Ali embaixo, a alguns metros de distância, dois vultos, ladeando um portão, semelhavam pessoas embuçadas, gigantes embuçados. Que seriam? Pilares? Deviam ser pilares. Afastei-me, passeei cauteloso, abafando os passos, temendo esbarrar nas cadeiras.

Experimentei dormir. A sentinela continuava sob o alpendre, na firmeza inútil, vendo-me ocupar e abandonar a cama inútil. Avizinhei-me da jaula, arredei-me, estive longas horas a mover-me à toa na janela sombria.

O peso que a princípio sentira nos membros desaparecera: agitava-me agora desordenadamente, em vão procurava atordoar-me e cansar. Aguçavam-me a curiosidade os vultos que guardavam o portão. Seriam guaritas? Não: para guaritas eram muito altos e muito esguios. Que significavam pois? Essa pergunta me arreliava. Se não conseguia divisar aqueles objetes volumosos expostos aos meus olhos, como adivinhar as sutilezas provavelmente escondidas em toda a parte, como alçapões? Naquela vida era preciso em certo momento um homem virar-se para a direita, virar-se para a esquerda, levantar-se, baixar-se, e a falta de um gesto implicava censura.

Esquecera-me desses movimentos aprendidos em poucos meses de exercício relaxado e capenga. Na presença de um oficial superior, derrear-me-ia, uma perna bamba, a outra a agüentar o corpo todo, pregaria o cotovelo num peitoril. Envergonhar-me-ia ao notar o desconchavo, encolher-me-ia, largaria sandices comprometedoras. Em horas de perturbação era-me impossível dominar a língua: dizia coisas impensadas, às vezes contrárias ao que era preciso dizer. Receava prejudicar alguém. Iria qualquer informação doida transformar-me em delator, levar à cadeia rapazes inofensivos que tencionavam eliminar a burguesia distribuindo às escondidas nos cafés papéis mimeografados? Um deles, Jacob, figurava no meu último livro, com o nome de Moisés. Encarregava-se de receber as prestações na venda do tio, judeu verdadeiro. Não recebia nada: dava aos fregueses opiniões incendiárias, folhas volantes vermelhíssimas, o que lhe rendia, segundo afirmavam, abundantes surras do patrão. Talvez Jacob estivesse guardado a chave. E meus filhos mais velhos, da Juventude Comunista, pichadores de paredes, provavelmente andavam perseguidos, a esconder-se. Ultimamente, haviam arranjado uma espécie de revista, enviado cem números para Moscou e cinquenta para Madrid. Um escândalo. E como Plínio Salgado recebera uma vaia formidável no Teatro Deodoro e fugira pelos fundos do palco sem piar, enquanto a milícia verde se alvoroçava no saguão, saltava grades, deixava camisas em pontas de ferro, um ressentimento amargo se concentrava nessas alminhas, contra rapazes do liceu, operários, soldados e cabos do exército. Eram todos agora denunciados, com certeza. Apavorava-me supor que uma indiscrição minha poderia fornecer aos carcereiros uma pista. Realmente não me informara de quase nada, eles deviam saber muito mais que eu, mas talvez uma indicação lhes fosse útil. O pormenor insignificante reforçaria provas, constituiria o elo necessário a uma cadeia interrompida. É desses pequeninos grãos que a polícia constrói os seus monumentos de misérias. Qual seria a minguada contribuição que exigiriam de mim? Esforçava-me por adivinhá-la e guardá-la com avareza: no interrogatório, desviar-me-ia das ciladas, referir-me-ia com ar culposo, misteriosamente, a casos diversos e inofensivos. Difícil era descobrir aonde me queriam levar, que valor me atribuíam. Inadmissível achar-me ali por vingança de um energúmeno qualquer: isto seria antieconômico, disparatado, e sem dúvida o país ainda não chegara a tal grau de estupidez e malandragem

Aquela mancha indistinta, lá embaixo, entre as duas colunas, era provavelmente um portão. Seriam colunas? Na verdade a iluminação do Recife, vacilante, deixava-me na ignorância. Conservei-me longamente arrimado ao peitoril, interrogando as trevas, aguçando o ouvido à procura de seus informadores: pedaços de conversas, pancadas de relógio. Nenhum sinal me orientava; a noite preguiçosa a arrastar-se; impossível saber se me achava no princípio ou no fim dela. Na verdade o tempo não era o que havia sido: tornara-se confuso e lento, cheio de soluções de continuidade, e nesses hiatos vertiginosos perdia-me, escorregava, os olhos turvos, numa sensação de queda ou voo. Náuseas, aperto no diafragma. Evidentemente se tudo em redor me parecia vago e incompreensível, se até a noção de tempo se modificava, cá dentro deviam as coisas passar-se de maneira lastimosa, esta velha máquina emperrava. Sem dúvida. Inquietava-me perceber que me havia tornado, naquela pausa singular, estúpido em demasia. A atenção embotada saltava freqüentemente de um assunto para outro, sem conseguir estabelecer a mais simples relação entre eles, e às vezes ficava a doidejar, a rodear pormenores, como peru, tentando decifrar insignificâncias.

Que seriam os dois vultos que vigiavam lá embaixo o portão? Esta pergunta, reproduzida, chateava-me; contudo não podia desembaraçar-me dela, misturava-a sem propósito às complexidades imponderáveis que me atenazavam. Naquela desordem, naquele cipoal de pensamentos emaranhados, avultava uma incongruência, mas isto só mais tarde foi percebido: sentia-me vítima de injustiça, queixava-me de inimigos indecisos, parecia-me descobrir nos lençóis, no peitoril da janela, na água da moringa e no ar corrupção e veneno; contraditoriamente, achava-me em segurança, considerava a existência anterior bem mesquinha, pior talvez que a prisão. Quando me viesse calma, aventurar-me-ia a fazer um livro, lentamente, livre das aporrinhações normais. Viria a calma? E quantos dias ou meses me deixariam naquela situação? Era disparate desejar permanecer nela, mas assaltava-me uma grande covardia, o receio de voltar a assumir responsabilidades, a certeza de que o meu trabalho de indivíduo solitário, na ditadura mal disfarçada por um congresso de sabujos, seria pouco mais ou menos inútil. Preferível o cativeiro manifesto ao outro, simulado, que nos ofereciam lá fora. A ideia de escrever o livro voltava com insistência. Cada vez mais, porém, me convencia de que, persistindo aquela enorme burrice, não escreveria coisa nenhuma. Mas observaria fatos e pessoas que me despertavam curiosidade. Agora estava certo de que não me largariam dentro de uma semana, como havia suposto As vaidadezinhas malucas de pequeno-burguês sumiam-se. Decerto me guardariam, possivelmente me poriam em contato com alguns criminosos, pessoas que, interessando-me demais, até então me haviam aparecido em tratados ou de longe. Conhecimento imperfeito, sumário. E mostrar-me-iam os revolucionários de Natal, do 3.º Regimento, da Escola de Aviação. Até certo ponto podia considerar-me uma espécie de revolucionário, teórico e chinfrim. Sorria-me a perspectiva de olhar de perto revolucionários de verdade, que ultimamente eram presos em magotes.


continua página 31....
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

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