segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Memórias do Cárcere - Viagens 4

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos



Volume I 

 Editora Record 

PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 



RODAMOS em silêncio, atravessamos o bairro de Jaraguá e a cidade. Não me lembro de haver dito uma palavra ao tenente. Ignorava o destino que me reservavam, mas isto não me despertava nenhuma curiosidade. Fastio, quase indiferença, a vaga compreensão de ter caído numa ratoeira suja, a suspeita de mesquinharia e ridículo no incidente medíocre. Porque estava ali junto de mim aquele sujeito? Balançando nas molas doces, impossibilitado de bater os calcanhares, retesar a espinha, fazer a meia-volta e a continência, anulava-se. A pergunta mental surgida em casa continuava a espicaçar-me. Certo ele não havia determinado a minha prisão, mas era curioso encarregar-se de efetuá-la. Sem me incomodar com essa pequena vingança, pensei noutras, vi o país influenciado pelos tenentes que executam piruetas, pelas sobrinhas dos tenentes que executam piruetas. Desejariam os poderes públicos que eu mandasse aprovar com dolo a sobrinha do tenente, em Penedo? Não me exigiriam expressamente a safadeza, mas deviam existir numerosos tenentes e numerosas sobrinhas, e a conjugação dessas miuçalhas mandava para as grades um pai de família, meio funcionário, meio literato.
Chegamos ao quartel do 20.º Batalhão. Estivera ali em 1930, envolvera-me estupidamente numa conspiração besta com um coronel, um major e um comandante de polícia, e vinte e quatro horas depois achava-me preso e só. Dezesseis cretinos de um piquete de Agildo Barata haviam fingido querer fuzilar-me. Um dos soldadinhos que me acompanhavam chorava como um desgraçado. Parecera-me então que a demagogia tenentista, aquele palavrório chocho, nos meteria no atoleiro. Ali estava o resultado: ladroagens, uma onda de burrice a inundar tudo, confusão, mal-entendidos, charlatanismo, energúmenos microcéfalos vestidos de verde a esgoelar-se em discursos imbecis, a semear delações. O levante do 3.° Regimento e a revolução de Natal haviam desencadeado uma perseguição feroz. Tudo se desarticulava, sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de viver numa bárbara colônia alemã.
Pior: numa colônia italiana. Mussolini era um grande homem, e escritores nacionais celebravam nas folhas as virtudes do óleo de rícino. A literatura fugia da terra, andava num ambiente de sonho e loucura, convencional, copiava figurinos estranhos, exibia mamulengos que os leitores recebiam com bocejos e indivíduos sagazes elogiavam demais. O romance abandonava o palavrão, adquiria boas maneiras, tentava comover as datilógrafas e as mocinhas das casas de quatro mil e quatrocentos. Uma beatice exagerada queimava incenso defumando letras e artes corrompidas, e a crítica policial farejava quadros e poemas, entrava nas escolas, denunciava extremismos. Um professor era chamado à delegacia: –“Esse negócio de africanismo é conversa. O senhor quer inimizar os pretos com a autoridade constituída.” O Congresso apavorava-se, largava bambo as leis de arrocho – e vivíamos de fato numa ditadura sem freio. Esmorecida a resistência, dissolvidos os últimos comícios, mortos ou torturados operários e pequeno-burgueses comprometidos, escritores e jornalistas a desdizer-se, a gaguejar, todas as poltronices a inclinar-se para a direita, quase nada poderíamos fazer perdidos na multidão de carneiros.
Pensando nessas coisas, desci do automóvel, atravessei o pátio, que, em 1930, vira cheio de entusiasmos enfeitados com braçadeiras vermelhas. Numa saleta, um rapaz me recebeu em silêncio, conduziu-me a outra saleta onde havia uma cama e desapareceu. O mulato fez a última viravolta e desapareceu também. A porta ficou um soldado com fuzil. Evidentemente as minhas reflexões tendiam a justificar a inércia, a facilidade com que me deixara agarrar. Se todos os sujeitos perseguidos fizessem como eu, não teria havido uma só revolução no mundo. Revolucionário chinfrim. Desculpava-me a idéia de não pertencer a nenhuma organização, de ser inteiramente incapaz de realizar tarefas práticas. Impossível trabalhar em conjunto. As minhas armas, fracas e de papel, só podiam ser manejadas no isolamento. No íntimo havia talvez o incerto desejo de provocar a nova justiça inquisitorial, perturbar acusadores, exibir em tudo aquilo embustes e patifarias. Essa vaidade tola devia basear-se na suposição de que enxergariam em mim um indivíduo, com certo número de direitos.
Logo ao chegar, notei que me despersonalizavam. O oficial de dia recebera-me calado. E a sentinela estava ali encostada ao fuzil, em mecânica chateação, como se não visse ninguém.
Sentado na cama, o chapéu em cima da valise, abri com o pente as páginas dos três volumes que trouxera: Território Humano de José Geraldo Vieira, Gente Nova de Agrippino Grieco e Dois Poetas de Otávio de Faria. Li a primeira folha do primeiro umas três vezes, inutilmente. Conservei esses livros muitos meses, acompanharam-me por diversos lugares, foram remoídos, esfacelaram-se, pulverizaram-se; hoje, com esforço, consigo recordar algumas passagens de um deles.
Nada afinal do que eu havia suposto: o interrogatório, o diálogo cheio de alçapões, alguma carta apreendida, um romance com riscos e anotações, testemunhas sumiram-se. Não me acusavam, suprimiam-me. Bem. Provavelmente seria inquirido no dia seguinte, acareado, transformado em autos. Que horas seriam? Estirei-me no colchão, vestido, o livro de José Geraldo aberto sobre o estômago vazio. Em jejum desde manhã, mas isto apenas me causava uma vaga tontura e escurecia a vista. E concorria talvez para dificultar a compreensão do texto. Virando a cabeça, percebia à esquerda o soldado imóvel. Essa precaução me parecia tão burlesca e tão estúpida que interrompia a leitura vã, ria-me, apesar de tudo. Sentava-me, acendia um cigarro. Naturalmente não havia cinzeiro, esses luxos de civilização tinham desaparecido. Burlesco. Recebera a notícia ao meio-dia, lavara-me, vestira-me, lera dois telegramas desaforados, conversara só, com minha mulher e com d. Irene. Tinham-me feito esperar sete horas. E ali estava com sentinela à vista. Para quê? Não era mais simples trancarem a porta? Aquele dispêndio inútil de energia corroborava o desfavorável juízo que eu formara da inteligência militar. De novo me deitava, pegava a brochura, soltava-a, cobria os olhos com o chapéu por causa da luz, tornava a levantar-me, acendia outros cigarros. Já no cimento se acumulavam pontas. Nenhum relógio na vizinhança. Apenas os indeterminados rumores noturnos da caserna: um apito, vozes remotas, confusas. O sujeito firme, encostado ao fuzil. Iria passar ali a noite, dormir em pé? Eu não tinha sono, mas ele, coitado, com certeza engolia bocejos, amolava-se. Enfim que significação tinha aquilo? Pretenderiam manifestar-me deferência, considerar-me um sujeito pernicioso demais, que era preciso vigiar, ou queriam apenas desenferrujar as molas de um recruta desocupado? Compreenderia ele que era uma excrescência, ganhava cãibras à toa, equilibrando-se ora numa perna, ora noutra? Se não fosse obrigado a desentorpecer-se e dar-me um tiro em caso de fuga, aquela extensa vigília só tinha o fim de embrutecê-lo na disciplina.
Procurei um mictório, nas paredes lisas, cheguei-me à porta, desci à calçada, passei em frente do manequim teso, sem me decidir a perguntar-lhe quantos metros o fio que me amarrava poderia estender-se: provavelmente, nas funções de espantalho, a criatura emudecia. Avizinhei-me do pátio coberto de manchas de sombra e luz. Regressei ao cabo de um minuto, busquei o lavatório, achei uma pequena moringa e um copo. A higiene satisfazia-se com isso. Voltei a estender-me no colchão, fatigado, cochilei algum tempo, confundi o real e o imaginário, os olhos fumava, distinguia o estafermo e o fuzil, imaginava, olhando-os de perto, vendo a carranca e o brilho do metal, que haviam sido ali postos para amedrontar-me. Recurso infantil: conjeturei crianças barbadas, ingênuas e maliciosas. O pobre homem devia estar cansado. Seria o mesmo do começo ou teria vindo outro durante os cochilos? Havia-me escapado a substituição. Também me escapavam próximos rumores possíveis: gemidos do vento nas árvores do pátio, a marcha lenta da ronda. Realmente não me lembro de árvores nem da ronda: isto é suposição. Esqueci pormenores, ou não os observei.
Ter-me-ia revelado inquieto? Pouco me importava o conceito que a sentinela pudesse ter dos meus movimentos excessivos, nem me ocorria que o infeliz, tão parado, tivesse conceitos. Mas na verdade a inquietação era puramente física: difícil permanecer num lugar; precisão de levantarme, sentar-me, deitar-me. fumar; a ligeira sonolência perturbada vezes sem conta e a leitura das mesmas páginas de José Geraldo Vieira Parecia-me faltar a um dever. Habituara-me a ler todos os livros que me remetiam, ali estavam três a desafiar-me em longa insônia, e era-me impossível fixar a atenção neles. As idéias partiam-se a cada instante, desagregavam-se. Picadas no estômago. Fome. Não, não era fome: nem conseguiria mastigar qualquer coisa. Só pensar em comida me dava enjôo. Interiormente achava-me tranqüilo. Ou antes, achava-me indiferente. Sumia-se até a curiosidade inicial. Que peça me iriam pregar no dia seguinte? Julgo que não perguntei isso. Realmente era desagradável continuar naquela saleta nua, a procurar nas paredes um lavatório e um mictório inexistentes. Mas noutro canto arranjar-me-ia. Operava-se assim, em poucas horas, a transformação que a cadeia nos impõe: a quebra da vontade. E não me espantei quando, moringa, escovei os dentes, lavei o rosto, molhei os cabelos; penteei-me, agarrei a valise e os três volumes:

– Está bem.

continua página 20...
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

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