Graciliano Ramos
Volume I
Editora Record
PRIMEIRA PARTE
VIAGENS
3
NO DIA seguinte, 3 de março, entreguei pela manhã os originais a d. Jeni, datilógrafa. Ao meio-dia uma parenta me visitou – e este caso insignificante exerceu grande influência na minha vida, talvez haja desviado o curso dela. Essa pessoa indiscreta deu-me conselhos e aludiu a crimes vários praticados por mim. Agradeci e pedi-lhe que me denunciasse, caso ainda não o tivesse feito. A criatura respondeu-me com quatro pedras na mão e retirou-se. Minha mulher deu razão a ela e conseguiu arrastar-me a um dos acessos de desespero que ultimamente se amiudavam. Como era possível trabalhar em semelhante inferno? Nesse ponto surgiu Luccarini. Entrou sem pedir licença, atarantado, cochichou rapidamente que iam prender-me e era urgente afastar-me de casa, recebeu um abraço e saiu.
Ótimo. Num instante decidi-me. Não me arredaria, esperaria tranquilo que me viessem buscar. Se quisesse andar alguns metros, chegaria à praia, esconder-me-ia por detrás de uma duna, lá ficaria em segurança. Se me resolvesse a tomar o bonde, iria até o fim da linha, saltaria em Bebedouro, passaria o resto do dia a percorrer aqueles lugares que examinei para escrever o antepenúltimo capítulo do romance. Não valia a pena. Expliquei em voz alta que não valia a pena. Entrei na sala de jantar, abri uma garrafa de aguardente, sentei-me à mesa, bebi alguns cálices, a monologar, a dar vazão à raiva que me assaltara. Propriamente não era monólogo: minha mulher replicava com estridência. Escapava-me a significação da réplica, mas a voz aguda me endoidecia, furava-me os ouvidos. Não conheço pior tortura que ouvir gritos. Devia existir uma razão econômica para esse desconchavo: as minhas finanças equilibravam-se com dificuldade, evitávamos reuniões, festas, passeios. De fato as privações não me inquietavam. Minha mulher, porém, sentia-se lesada, o que me fazia perder os estribos. De repente um ciúme insensato. A incongruência me arrancava a palavra dura:
– Que estupidez!
Naquele momento a ideia da prisão dava-me quase prazer: via ali um princípio de liberdade. Eximira-me do parecer, do ofício, da estampilha, dos horríveis cumprimentos ao deputado e ao senador; iria escapar a outras maçadas, gotas espessas, amargas, corrosivas. Na verdade suponho que me revelei covarde e egoísta: várias crianças exigiam sustento, a minha obrigação era permanecer junto a elas, arranjar-lhes por qualquer meio o indispensável. Desculpava-me afirmando que isto se havia tornado impossível. Que diabo ia fazer, perseguido, a rolar de um canto para outro, em sustos, mudando o nome, a barba longa, a reduzir-me, a endividar-me? Se a vida comum era ruim, essa que Luccarini me oferecera num sussurro, a tremura e a humilhação constante, dava engulhos. Além disso eu estava curioso de saber a arguição que armariam contra mim. Bebendo aguardente, imaginava a cara de um juiz, entretinha-me em longo diálogo, e saía-me, perfeitamente, como sucede em todas as conversas interiores que arquiteto. Uma compensação: nas exteriores sempre me dou mal. Com franqueza, desejei que na acusação houvesse algum fundamento. E não vejam nisto bazófia ou mentirás: na situação em que me achava justifica-se a insensatez. A cadeia era o único lugar que me proporcionaria o mínimo de tranquilidade necessária para corrigir o livro. O meu protagonista se enleara nesta obsessão: escrever um romance além das grades úmidas e pretas. Convenci-me de que isto seria fácil: enquanto os homens de roupa zebrada compusessem botões de punho e caixinhas de tartaruga, eu ficaria largas horas em silêncio, a consultar dicionários, riscando linhas, metendo entrelinhas nos papéis datilografados por d. Jeni. Deixar-me-iam ficar até concluir a tarefa? Afinal a minha pretensão não era tão absurda como parece. Indivíduos tímidos, preguiçosos, inquietos, de vontade fraca habituam-se ao cárcere. Eu, que não gosto dê andar, nunca vejo a paisagem, passo horas fabricando miudezas, embrenhando-me em caraminholas, porque não haveria de acostumar-me também? Não seria mau que achassem nos meus, atos algum, involuntário, digno de pena. É desagradável representarmos o papel de vítima.
– Coitado!
É degradante. Demais estaria eu certo de não haver cometido falta grave? Efetivamente não tinha lembrança, mas ambicionara com fúria ver a desgraça do capitalismo, pregara-lhe alfinetes, únicas armas disponíveis, via com satisfação os muros pichados, aceitava as opiniões de Jacob. Isso constituiria um libelo mesquinho, que testemunhas falsas ampliariam. Tinha o direito de insurgir-me contra os depoimentos venenosos? De forma nenhuma. Não há nada mais precário que a justiça. E se quisessem transformar em obras os meus pensamentos, descobririam com facilidade matéria para condenação. Não me repugnava a ideia de fuzilar um proprietário por ser proprietário. Era razoável que a propriedade me castigasse as intenções.
Fui ao banheiro, tomei um longo banho. Tolice vivermos a apurar responsabilidades. Muitas coisas nos acontecem por acaso, e às vezes nos chegam vantagens por acaso. Julgava é que não me deteriam nem uma semana. Dois ou três dias depois me mandariam embora, dando-me explicações. Um engano. Findo o banho, preparei-me para sair. Em seguida meti alguma roupa branca na valise, mandei comprar muito cigarro e fósforo.
D. Irene, diretora de um grupo escolar vizinho, apareceu à tarde. Envergonhei-me de tocar na demissão, e falamos sobre assuntos diversos. Aí, me chegaram dois telegramas. Um encerrava . insultos; no outro, certo candidato prejudicado felicitava a instrução alagoana pelo meu afastamento. Rasguei os papéis, disposto a esquecê-los. Sumiram-se na verdade os nomes dos signatários e as expressões injuriosas, ter-se-ia talvez a pequena infâmia esvaído inteiramente se não contrastasse com a presença de d. Irene ali na sala. O que me interessava no momento era o esforço despendido por ela em três anos. Talvez isso houvesse concorrido para embranquecer-lhe os cabelos, dar-lhe aquela gravidade atenta. Não sorria nunca. E sob o penteado grisalho o rosto moço tinha uma beleza fria No estabelecimento dela espalhavam-se a princípio duzentos e poucos meninos, das famílias mais arrumadas de Pajuçara. Numa campanha de quinze dias, por becos, ruelas, cabanas de pescadores, d. Irene enchera a escola. Aumentado o material, divididas as aulas em dois turnos, mais de oitocentas crianças haviam superlotado o prédio, exibindo farrapos, arrastando tamancos. Ao vê-las, um interventor dissera indignado:
– Convidam-me para assistir a uma exposição de misérias.
E alguém respondera.
– É o que podemos expor.
Calçados e vestidos pela caixa escolar, os garotos se haviam apresentado com decência. Lembrava-me da lufa-lufa necessária para modificá-los, ria-me pensando em Flora Ferraz sentada no chão, às oito horas da noite, a experimentar sapatos em negrinhos. Avizinhando-me dela, repelira-me com raiva:
– O senhor tem coragem de me dar a mão? Estou suja. Desde a manhã aqui pegando os pés destes moleques!
Quatro dessas criaturinhas arrebanhadas nesse tempo, beiçudas e retintas, haviam obtido as melhores notas nos últimos exames.
– Que nos dirão os racistas, d. Irene?
Na fronte calma de d. Irene esboçava-se uma ligeira ruga, e eu admirava-lhe a dignidade simples, a decisão rigorosa de abelha-mestra. Apesar de sentir prazer em ouvi-la, desejava que ela se retirasse: inquietava-me saber que a qualquer momento viriam buscar-me, e isto a perturbaria. Depois a notícia daquela visita com certeza lhe ocasionaria prejuízos. Levantava-me, procurava um meio de afastá-la, os ouvidos abertos aos rumores da rua. Afinal, cerca de sete horas, um automóvel deslizou na areia, deteve-se à porta – e um oficial do exército, espigado, escuro, cafuz ou mulato, entrou na sala.
– Que demora, tenente! Desde o meio-dia estou à sua espera.
– Não é possível, objetou o rapaz empertigando-se.
– Como não? Está aqui a valise pronta, não falta nada.
O sujeitinho deu um passo à retaguarda, fez meia-volta, aprumou-se, encarou-me. Tinha-lhe observado esse curioso sestro um mês antes, na repartição, onde me surgira pleiteando a aprovação de uma sobrinha reprovada. Eu lhe mostrara um ofício em que a diretora do Grupo Escolar de Penedo contava direito aquele negócio: a absurda pretensão de se nomear para uma aluna banca especial fora de tempo.
– Impossível, tenente. Isso é antirregulamentar. Demais, se a garota não conseguiu aprender num ano, certamente não foi recuperar em dias o tempo perdido. Sua sobrinha não é nenhum gênio, suponho.
O tenente recuara, rodara sobre os calcanhares, perfilara-se em atitude perfeitamente militar e replicara com absoluta impudência:
– É o que ela é. Um gênio. Posso afirmar-lhe que é gênio.
E voltara a repetir o mesmo pedido, usando as mesmas palavras. Depois de meia hora de marchas e contramarchas cansativas, fizera a saudação, a última reviravolta, abrira a portinhola e deixara o gabinete em passos rítmicos. No dia seguinte regressara com uma carta de recomendação, repisara a exigência, lera impenetrável o regulamento e o ofício, ouvira a recusa fatal – e, no fim do resumo do caso enfadonho, o recuo, o movimento circular, o aprumo, a solicitação invariável, o obtuso louvor da sobrinha:
– Um gênio, eu garanto. Admita que ela seja realmente um gênio.
Gastara-me a paciência e irritara-me. Agora, finda a pirueta, olhando a valise, prova de que não haviam sabido guardar segredo, encolheu os ombros, sorriu, excessivamente gentil:
– Vai apenas essa maleta? Aqui entre nós posso dizer: acho bom levar mais roupa. É um conselho.
– Obrigado, tenente.
Comecei a perceber que as minhas prerrogativas bestas de pequeno-burguês iam cessar, ou tinham cessado. Retirei da mesa três livros chegados na véspera, pelo correio. Despedi-me. D. Irene se espantava, talvez sem compreender bem a significação exata daquilo. Meus filhos mais velhos, agitados e pálidos, fingiam calma. Beijei as crianças, sossegadas. Procurei na cara de minha mulher sinal de medo. Em vão: nem dessa vez nem de outras lhe percebi nenhum receio. Nos momentos mais difíceis sempre a vi corajosa, e isto a diferençava dos parentes, em geral pusilânimes. Depois do conflito da manhã serenara, assistira calada aos preparativos, sem acreditar talvez na realização da, Diante da cabriola e do sorriso do mulato, pareceu despertar, mas não revelou susto. Uma pergunta me verrumava o espírito: porque vinha prender-me o sujeito que um mês antes me fora amolar com insistências desarrazoadas?
– Quando quiser, tenente.
Saímos da sala e entramos no automóvel, um grande carro oficial.
Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.
Naquele momento a ideia da prisão dava-me quase prazer: via ali um princípio de liberdade. Eximira-me do parecer, do ofício, da estampilha, dos horríveis cumprimentos ao deputado e ao senador; iria escapar a outras maçadas, gotas espessas, amargas, corrosivas. Na verdade suponho que me revelei covarde e egoísta: várias crianças exigiam sustento, a minha obrigação era permanecer junto a elas, arranjar-lhes por qualquer meio o indispensável. Desculpava-me afirmando que isto se havia tornado impossível. Que diabo ia fazer, perseguido, a rolar de um canto para outro, em sustos, mudando o nome, a barba longa, a reduzir-me, a endividar-me? Se a vida comum era ruim, essa que Luccarini me oferecera num sussurro, a tremura e a humilhação constante, dava engulhos. Além disso eu estava curioso de saber a arguição que armariam contra mim. Bebendo aguardente, imaginava a cara de um juiz, entretinha-me em longo diálogo, e saía-me, perfeitamente, como sucede em todas as conversas interiores que arquiteto. Uma compensação: nas exteriores sempre me dou mal. Com franqueza, desejei que na acusação houvesse algum fundamento. E não vejam nisto bazófia ou mentirás: na situação em que me achava justifica-se a insensatez. A cadeia era o único lugar que me proporcionaria o mínimo de tranquilidade necessária para corrigir o livro. O meu protagonista se enleara nesta obsessão: escrever um romance além das grades úmidas e pretas. Convenci-me de que isto seria fácil: enquanto os homens de roupa zebrada compusessem botões de punho e caixinhas de tartaruga, eu ficaria largas horas em silêncio, a consultar dicionários, riscando linhas, metendo entrelinhas nos papéis datilografados por d. Jeni. Deixar-me-iam ficar até concluir a tarefa? Afinal a minha pretensão não era tão absurda como parece. Indivíduos tímidos, preguiçosos, inquietos, de vontade fraca habituam-se ao cárcere. Eu, que não gosto dê andar, nunca vejo a paisagem, passo horas fabricando miudezas, embrenhando-me em caraminholas, porque não haveria de acostumar-me também? Não seria mau que achassem nos meus, atos algum, involuntário, digno de pena. É desagradável representarmos o papel de vítima.
– Coitado!
É degradante. Demais estaria eu certo de não haver cometido falta grave? Efetivamente não tinha lembrança, mas ambicionara com fúria ver a desgraça do capitalismo, pregara-lhe alfinetes, únicas armas disponíveis, via com satisfação os muros pichados, aceitava as opiniões de Jacob. Isso constituiria um libelo mesquinho, que testemunhas falsas ampliariam. Tinha o direito de insurgir-me contra os depoimentos venenosos? De forma nenhuma. Não há nada mais precário que a justiça. E se quisessem transformar em obras os meus pensamentos, descobririam com facilidade matéria para condenação. Não me repugnava a ideia de fuzilar um proprietário por ser proprietário. Era razoável que a propriedade me castigasse as intenções.
Fui ao banheiro, tomei um longo banho. Tolice vivermos a apurar responsabilidades. Muitas coisas nos acontecem por acaso, e às vezes nos chegam vantagens por acaso. Julgava é que não me deteriam nem uma semana. Dois ou três dias depois me mandariam embora, dando-me explicações. Um engano. Findo o banho, preparei-me para sair. Em seguida meti alguma roupa branca na valise, mandei comprar muito cigarro e fósforo.
D. Irene, diretora de um grupo escolar vizinho, apareceu à tarde. Envergonhei-me de tocar na demissão, e falamos sobre assuntos diversos. Aí, me chegaram dois telegramas. Um encerrava . insultos; no outro, certo candidato prejudicado felicitava a instrução alagoana pelo meu afastamento. Rasguei os papéis, disposto a esquecê-los. Sumiram-se na verdade os nomes dos signatários e as expressões injuriosas, ter-se-ia talvez a pequena infâmia esvaído inteiramente se não contrastasse com a presença de d. Irene ali na sala. O que me interessava no momento era o esforço despendido por ela em três anos. Talvez isso houvesse concorrido para embranquecer-lhe os cabelos, dar-lhe aquela gravidade atenta. Não sorria nunca. E sob o penteado grisalho o rosto moço tinha uma beleza fria No estabelecimento dela espalhavam-se a princípio duzentos e poucos meninos, das famílias mais arrumadas de Pajuçara. Numa campanha de quinze dias, por becos, ruelas, cabanas de pescadores, d. Irene enchera a escola. Aumentado o material, divididas as aulas em dois turnos, mais de oitocentas crianças haviam superlotado o prédio, exibindo farrapos, arrastando tamancos. Ao vê-las, um interventor dissera indignado:
– Convidam-me para assistir a uma exposição de misérias.
E alguém respondera.
– É o que podemos expor.
Calçados e vestidos pela caixa escolar, os garotos se haviam apresentado com decência. Lembrava-me da lufa-lufa necessária para modificá-los, ria-me pensando em Flora Ferraz sentada no chão, às oito horas da noite, a experimentar sapatos em negrinhos. Avizinhando-me dela, repelira-me com raiva:
– O senhor tem coragem de me dar a mão? Estou suja. Desde a manhã aqui pegando os pés destes moleques!
Quatro dessas criaturinhas arrebanhadas nesse tempo, beiçudas e retintas, haviam obtido as melhores notas nos últimos exames.
– Que nos dirão os racistas, d. Irene?
Na fronte calma de d. Irene esboçava-se uma ligeira ruga, e eu admirava-lhe a dignidade simples, a decisão rigorosa de abelha-mestra. Apesar de sentir prazer em ouvi-la, desejava que ela se retirasse: inquietava-me saber que a qualquer momento viriam buscar-me, e isto a perturbaria. Depois a notícia daquela visita com certeza lhe ocasionaria prejuízos. Levantava-me, procurava um meio de afastá-la, os ouvidos abertos aos rumores da rua. Afinal, cerca de sete horas, um automóvel deslizou na areia, deteve-se à porta – e um oficial do exército, espigado, escuro, cafuz ou mulato, entrou na sala.
– Que demora, tenente! Desde o meio-dia estou à sua espera.
– Não é possível, objetou o rapaz empertigando-se.
– Como não? Está aqui a valise pronta, não falta nada.
O sujeitinho deu um passo à retaguarda, fez meia-volta, aprumou-se, encarou-me. Tinha-lhe observado esse curioso sestro um mês antes, na repartição, onde me surgira pleiteando a aprovação de uma sobrinha reprovada. Eu lhe mostrara um ofício em que a diretora do Grupo Escolar de Penedo contava direito aquele negócio: a absurda pretensão de se nomear para uma aluna banca especial fora de tempo.
– Impossível, tenente. Isso é antirregulamentar. Demais, se a garota não conseguiu aprender num ano, certamente não foi recuperar em dias o tempo perdido. Sua sobrinha não é nenhum gênio, suponho.
O tenente recuara, rodara sobre os calcanhares, perfilara-se em atitude perfeitamente militar e replicara com absoluta impudência:
– É o que ela é. Um gênio. Posso afirmar-lhe que é gênio.
E voltara a repetir o mesmo pedido, usando as mesmas palavras. Depois de meia hora de marchas e contramarchas cansativas, fizera a saudação, a última reviravolta, abrira a portinhola e deixara o gabinete em passos rítmicos. No dia seguinte regressara com uma carta de recomendação, repisara a exigência, lera impenetrável o regulamento e o ofício, ouvira a recusa fatal – e, no fim do resumo do caso enfadonho, o recuo, o movimento circular, o aprumo, a solicitação invariável, o obtuso louvor da sobrinha:
– Um gênio, eu garanto. Admita que ela seja realmente um gênio.
Gastara-me a paciência e irritara-me. Agora, finda a pirueta, olhando a valise, prova de que não haviam sabido guardar segredo, encolheu os ombros, sorriu, excessivamente gentil:
– Vai apenas essa maleta? Aqui entre nós posso dizer: acho bom levar mais roupa. É um conselho.
– Obrigado, tenente.
Comecei a perceber que as minhas prerrogativas bestas de pequeno-burguês iam cessar, ou tinham cessado. Retirei da mesa três livros chegados na véspera, pelo correio. Despedi-me. D. Irene se espantava, talvez sem compreender bem a significação exata daquilo. Meus filhos mais velhos, agitados e pálidos, fingiam calma. Beijei as crianças, sossegadas. Procurei na cara de minha mulher sinal de medo. Em vão: nem dessa vez nem de outras lhe percebi nenhum receio. Nos momentos mais difíceis sempre a vi corajosa, e isto a diferençava dos parentes, em geral pusilânimes. Depois do conflito da manhã serenara, assistira calada aos preparativos, sem acreditar talvez na realização da, Diante da cabriola e do sorriso do mulato, pareceu despertar, mas não revelou susto. Uma pergunta me verrumava o espírito: porque vinha prender-me o sujeito que um mês antes me fora amolar com insistências desarrazoadas?
– Quando quiser, tenente.
Saímos da sala e entramos no automóvel, um grande carro oficial.
continua página 16...
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Leia também:
Memórias do Cárcere - Viagens 3
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Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.
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