quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3c)

 Ópera do malandro



Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran


PRIMEIRO ATO


continuando...


CENA 3 


Casa de Duran; sentado à escrivaninha, Duran fala ao telefone, enquanto Vitória anda de um lado para o outro


DORINHA
Isso já faz tanto tempo. . .

DURAN
Tá vendo, Vitória? Chaves, Max, polícia, bandido, a ligação é muito mais profunda do que a gente imaginava. . . Mimi Bibelô, vamos parar com essa choradeira que já encheu o saco?

MIMI
Desculpa, "seu" Duran, mas eu tava pensando no meu noivo. Ele estuda no Itamaraty, sabe, dona Vitória?

VITÓRIA
Não diga.

MIMI
Digo sim. Ano que vem ele se forma embaixador. Ia casar comigo e me levar pra Austrália. Agora que eu perdi a castidade, será que ele ainda casa?

DORINHA
Tá aqui, "seu" Duran, eu já trouxe a lista dos estragos que é para amaciar o susto. . .

MIMI
Embaixadora sem cabaço, será que o governo deixa?

DORINHA
Pia, bidê, cagador, dois espelhos, um lustre, quatro cadeiras, treze garrafas e todas as camas. . . Assim numa primeira olhada, calculo o prejuízo nuns cinco contos.

DURAN
Puxa! Ainda bem que o meu seguro cobre tudo.

VITÓRIA
Seguro, Duran? Você nunca me falou nesse seguro. ..

DURAN
Olha aí o seguro, Vitória, bem diante do teu nariz. O meu seguro são elas.

DORINHA
Elas quem?

DURAN
Como, elas quem? Elas vocês, é claro!

DORINHA
O que é que o senhor quer dizer com isso?

DURAN
Ô, Dorinha, logo você? Você que tem ginásio, você que me ajuda nas contas, você que tá comigo há doze anos, será que você nunca leu o seu contrato de trabalho? Que vergonha, Dorinha. . . Vocês aí, todo mundo leu, não é verdade?

SHIRLEY
Eu só sei ler letra de forma.. .

DURAN
O quê? Ninguém lê contrato antes de assinar, é? Olha que isso é um perigo! A sorte de vocês é trabalhar pra mim. Se um dia vocês caem nas mãos dum patrão menos consciencioso, vão ser exploradas até o bagaço. . . Olha aqui um contrato padrão, registrado na justiça e tudo. Faço questão que vocês tomem conhecimento da cláusula quarenta e seis. Dorinha, leia em voz alta.

DORINHA
Quarenta e seis. . . Não tô achando essa cláusula não. . . Ah, são essas cláusulas da letrinha miudinha? É, mas sem óculos não dá pra enxergar, não senhor.

DURAN
A cláusula quarenta e seis reza o seguinte: o locatário obriga-se a manter o imóvel em perfeito estado de conservação e higiene. O locador tem direito a imediata e integral indenização por quaisquer danos causados em sua propriedade, tais como os provocados por furto, roubo, saque, depredação, incêndio, terremoto, etc. Ta certo? Todo mundo ouviu?

DÓRIS
Essa lengalenga toda é pra dizer que o prejuízo é nosso?

DURAN
O máximo que eu posso fazer é dispensar o pagamento imediato. Desconto das folhas no fim do mês.

SHIRLEY
O fim do mês é amanhã. . .

DORINHA
"Seu" Duran, se for descontar da folha fica ruim até pra mim que ganho dois salários. Imagine pras outras. Se continua essa maré vazante, não sobra nem pra pasta de dente. DÓRIS Pasta de dente? Eu não escovo dente desde o começo da guerra.

SHIRLEY
A Dóris tá numa situação triste, "seu" Duran. Falo por ela e falo por mim. Porque a Dóris tá me devendo dois mil-réis e não tem santo que faça ela pagar.

DÓRIS
Eu tô devendo a todo mundo, tô mesmo! Que é que eu vou fazer? São três meses que eu não trepo.

DURAN
Espera um pouco, dona Dóris. Se faz três meses que você não trepa, quem tá perdendo dinheiro sou eu. Em vez de se queixar, você tem mas é que me agradecer. Tô te pagando salário-mínimo todo santo mês e você tá lá no come e dorme.

DÓRIS
Come e dorme? O aluguel come a metade do salário. Desconta imposto, taxa de acessório, vaselina, o que é que sobra pra eu comer?

DURAN
Coma arroz com bosta! Já tô perdendo a paciência contigo, viu?

DORINHA
O problema não é só da Dóris, "seu" Duran. Acho que o problema também é do senhor. O senhor tá sempre debruçado nos livros e deve saber que o movimento ta caindo de mês pra mês. . .

VITÓRIA
Não, o problema é outro. O problema é que tá todo mundo brocha. Uns põem a culpa no gin, outros na cocaína, mas o fato é que faz muito tempo que não se ouve falar num pau duro no Rio de Janeiro. Qualquer meia-bomba já é recebida com furor aí nos meios.. .

DORINHA
Olha, "seu" Duran, eu sei que vou tocar num ponto delicado. . . Esses acessórios que o senhor criou. . . Eles são muito bons, são ótimos, são vistosos, funcionais, libidinosos, são mesmo obras de gênio, não é por estar na sua presença. . . Mas é que talvez tenha chegado a hora de lançar uns feitios novos. . .

DURAN
Feitios novos?

DORINHA
Quer dizer. . . Pelo menos acho que valia a pena dar uma recauchutada nos mais antigos. . .

SHIRLEY
Há muito tempo que esses acessórios tão uma merda, com o perdão da palavra. O meu peito de borracha ta mais caído que o original. Assim fica difícil atrair freguês!

VITÓRIA
Essa é boa! A culpa é do Duran, se vocês não têm sex appeal? Querem que ele vá rebolar por vocês? O meu marido trabalha pra vocês dia e noite, sentado nessa escrivaninha. É um trabalho intelectual! O homem ta se ardendo em hemorroidas e vocês ainda acham pouco? Tenham dó. Não tão vendo que o meu marido é um psicopata?

DURAN
Psicopata não, Vitória! Tecnocrata. Eu trabalho com gráficos e estatísticas. Aqui tá tudo calculado e computado. Agora, o que há de imponderável é o elemento humano. Se vocês falham, atrapalham todas as minhas contas. Vocês são artistas ou não? Pra trabalhar comigo, só grandes artistas. Grandes malabaristas! Grandes contorcionistas! E, principalmente, grandes ilusionistas!

DORINHA
"Seu" Duran, a gente nunca fez pouco dos seus inventos, não. Mas, pra falar a verdade, sempre que pode a gente dá uma contribuição pessoal. É natural, a mulher é vaidosa mesmo. Então, faltou pó-de-arroz, faltou rouge, purpurina, a gente completa do bolso da gente. Quer dizer, completava, porque agora não tá mais dando. Ainda mais se o senhor joga o prejuízo do quebra-quebra nas costas da gente.

DÓRIS
Ah, esse prejuízo eu não pago não. De jeito nenhum! Não posso ficar mais encalacrada do que já estou.

DURAN
Escuta, Dóris Pelanca, se você não arranja macho é porque tá velha pra cachorro e tem mas é que pendurar essa vulva!

DÓRIS
Tô velha não, eu tô é muito mal embalada! Semana passada apareceu um fazendeiro paulista lá na Mem de Sá. Tava parado na porta do puteiro. Eu ia chegando pro expediente e logo vi que ele me gostou. Não olhou pra nenhuma dessas frangas aí, não. Olhou foi aqui pra galinha velha!

DURAN
Vai ver que ele tava procurando a mãe.

DÓRIS
Daí a pouco eu saí pra comprar cigarro e ele continuava ali parado, porque era um fazendeiro muito tímido. Quando passei por ele, só pra atiçar, lancei um requebro em meia-lua e senti que tava agradando. O homem não tirava o olho do meu bundão. Voltei do boteco e ele tava me esperando no mesmo lugar, o olho embaçado de tanto tesão. Quando cruzei por ele dessa vez, só de maldade, com a intenção de fulminar mesmo, resolvi dar uma requebrada mais violenta, em diagonal. Sabe o que aconteceu? O bundão foi parar no Largo da Lapa! (Tira a bunda artificial e joga sobre Duran) Pode ficar com a tua bunda!

DURAN
Muito bem, Dóris, pode ir passando o resto. Vamos, vamos, a blusa, a saia, tudo. (Aturdida, como que arrependida, Dóris vai tirando a roupa hesitantemente; Duran procura seu cartão no fichário) Conceição dos Santos Filha, 35 anos, vulga Dóris Palmer, depois Dóris Palmito, depois Dóris Pelanca, sim. . . Treze anos de casa. . . (Rasga a ficha) Anda, tira os sapatos. . . Não, pode ficar com essas botinas de lembrança, mas devolve as minhas meias. . . Não tava gostando dos meus figurinos? Agora mesmo é que não faz mais um michê na tua vida. Vitória, Vitória, arranja um traje à paisana pra essa mulher e dá bilhete azul. (Vitória sai com Dóris) E vocês aí. Mais alguma queixa?

SHIRLEY
Tem os dois mil-réis que a Dóris tava me devendo...

DURAN
Nenhuma queixa? Nem dos acessórios? Nem da pasta de dentes? Do póde- arroz, do rouge, da purpurina? Vou dizer uma coisa a vocês. É capaz que vocês tenham razão neste caso. Eu não sou o Papa e posso errar. Mas normalmente eu tenho dado a vocês tudo o que vocês precisam, antes mesmo que vocês exijam. IAP, SAPS, IAPTEC, salário-mínimo, tudo em ordem, conforme a legislação trabalhista. Vão pedir essas regalias num bordel do Mangue pra ver o que é que respondem. . .

VITÓRIA (Volta)
No Mangue, a coitada da Dóris vai tentar a vida no Mangue! Essas coisas me deixam tão deprimida. . .

DURAN
Agora, o que vocês precisam é se organizar. Não adianta nada uma desgraçada vir fazer escândalo aqui na minha casa. Os acessórios estão velhos? Pode ser, vou pensar no caso, vamos dialogar. Mas sem gritaria no meu ouvido! Vocês têm que fazer valer os seus direitos de maneira civilizada.

VITÓRIA (Refeita)
Isso eu também acho! E a primeira providência a tomar é o título de eleitor. Vocês já tiraram os seus? ô, suas retardadas, já faz dez anos que mulher pode votar no Brasil!

DURAN
Sabe o que é que vocês precisam? É dum sindicato. Um veículo legal para as suas reivindicações. Se as reivindicações são justas, serão atendidas. Taí, gostei. Vou organizar um sindicato pra vocês.

VITÓRIA
Eu voto na Dorinha Tubão. Dorinha pra presidenta do SMOELA. Sindicato de Mão-de-Obra Especializada da Lapa.

DURAN
Excelente sugestão, Vitória. Você aceita, Dorinha?

DORINHA
Bem, eu não sei direito como é que é. . .

DURAN
Por exemplo, vocês tiveram um probleminha ontem à noite, envolvendo maus elementos e maus policiais, certo? É claro que o incidente acarretou prejuízo a vocês todas, certo? Como poderia ter prejudicado outras colegas suas, né? E então? Então é aí que fica caracterizado um problema de classe. E eu, Fernandes Duran, estou solidário com a vossa classe. Vocês têm que levar esse problema às autoridades competentes. . .

VITÓRIA
E por falar em autoridade, Duran, depois de amanhã é dia do trabalhador. Dia de desfile, estádio repleto, chefe da nação e tudo. Quer melhor oportunidade para nossas funcionárias saírem numa passeata ordeira, pacífica e legítima?

DURAN
Sábias palavras, Vitória. Minhas filhas! 

A orquestra ataca um hino marcial

DURAN
O importante é vocês terem consciência de que o bem-estar de cada um é interesse prioritário da minha empresa. Somente unidos, aglutinados, articulados, membros de um corpo sadio e altivo, poderemos caminhar em frente!


Duran e Vitória cantam "Sempre em Frente" seguidos aos poucos das prostitutas

Sempre em frente Sempre em frente
Mãos-de-obra sem temor
Mãos ardentes
Em corrente
Prum futuro de esplendor
Nós daremos nossas pernas
Nós daremos nossos braços
Ao senhor dos nossos gestos
Ao senhor dos nossos passos
Somos a musculatura
Nervos, tripas e pulmão
A serviço
Da cabeça
Que conduz um corpo são
Sempre em frente
Sempre em frente
Etc.

A cortina vai fechando









continua pág 76 ...

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NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978


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Leia também:

Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)
Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2c)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 3 (3c)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 1
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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.


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