terça-feira, 27 de junho de 2023

Makarenko - Poema Pedagógico Livro 1: O inglório começo da Colônia Gorki (c)

Poema Pedagógico


Antón S. Makarenko


Livro Um

Capítulo 2

O inglório começo da Colônia Gorki

continuando...

Saí do dormitório, transformando minha raiva em uma espécie de pedra pesada dentro do meu peito. Mas as trilhas tinham que ser limpas e a raiva petrificada exigia ação. Fui em busca de Kaliná Ivánovitch:

- Vamos remover a neve.

- O que você está dizendo? Será que vim aqui para traabalhos braçais? E os bandidos-rouxinóis? disse ele, apontando para os quartos.

- Eles não querem.

- ¡Ah, parasitas! Está bem, vamos!

Kaliná Ivánovitch e eu estávamos terminando de abrir o primeiro caminho quando Vólokhov e Taranêts apareceram nele, indo, como sempre, para a cidade.

- Assim é queé bom! - disse alegremente Taranêts.

- Eles deveriam ter feito isso há muito tempo - argumentou Vólokhov.

Kálina Ivánovitch fechou-lhes o caminho:

- O que é isso de "bom"? Seu canalha, você se recusou a trabalhar e acha que vou fazer isso por você? Você não passa por aqui, parasita. Entre na neve, senão te acerto com a pá...

Kálina Ivánovitch levantou a pá, mas um segundo depois sua pá voou para um monte de neve distante, seu cachimbo acabou em outro lugar, e o atônito Kálina Ivánovitch só pôde olhar para os jovens e ouvi-los gritando com ele, de longe:

- Vai ter que se enviar sozinho na neve, atrás da pá!...

E eles se foram para a cidade, rindo.

- Vou para o inferno! Eu não trabalho aqui! exclamou Kálina Ivánovitch, e foi para seu quarto, deixando sua pá no monte de neve.

Nossa vida tornou-se triste e apreensiva. Gritos podiam ser ouvidos todas as noites na grande estrada para Khárkov:

- Socorro!

Os aldeões roubados vieram até nós e com vozes trágicas imploraram nossa ajuda.

Consegui arranjar com o Zavgubnarobraz um revólver para a defesa contra os cavaleiros-salteadores de estrada, mas escondi dele a situação na colônia. Eu ainda não havia perdido a esperança de encontrar uma maneira de me entender com os educandos.

Para mim e meus companheiros, os primeiros meses de nossa colônia não foram apenas meses de desespero e esforço impotente: foram também meses de busca pela verdade. Em toda a minha vida eu não li tanta literatura pedagógica quanto naquele inverno de 1920.

Isso foi na época de Wrangel e da guerra contra a Polônia. Wrangel estava por perto, perto de Novomírgorod; muito perto de nós, em Tcherkássi, os poloneses lutavam; toda a Ucrânia estava infestada de bátkos, chefes dos bandos "brancos", e muita gente em volta de nós se encontrava sob o feitiço da bandeira de Petliúra (1). Mas nós, na nossa floresta, com a cabeça nas mãos, procurávamos esquecer o barulho dos grandes acontecimentos e líamos livros pedagógicos.

O principal fruto que obtive da minha leitura foi a firme e profunda convicção de que não possuía nenhuma ciência nem nenhuma teoria, de que era preciso deduzir a teoria de todo o conjunto de fenômenos reais que se desenrolavam diante de meus olhos. No começo eu nem sequer compreendi, mas simplesmente vi que não precisava de fórmulas livrescas, que, de qualquer forma, não poderia aplicar ao meu trabalho, mas de análise imediata e ação não menos urgente.

Com todo o meu ser, senti que tinha que me apressar, que não podia esperar esperar nem mais um dia. A colônia estava assumindo cada vez mais o caráter de um covil de bandidos. Na atitude dos educandos para com os educadores, o tom permanente de zombaria e malícia aumentava cada vez mais. Já haviam começado a contar anedotas obscenas na presença dos educadores, exigindo rudemente que lhes servissem as refeições, jogando os pratos para o alto, brincando ostensivamente com seus punhais finlandeses e perguntando zombeteiros sobre as posses cada um de nós.

- Sempre pode ser útil... numa hora de aperto!

Eles se recusaram resolutamente a cortar lenha para as estufas e um dia quebraram o teto de madeira do galpão na presença de Kálina Ivánovitch. Eles fizeram isso entre risos e piadas:

- Esta lenha vai bastar para o resto de nossa vida!

Kálina Ivánovitch soltou milhões de faíscas de seu cachimbo e só encolhia os ombros:

- O que se pode dizer a esses parasitas? Tipos indecentes! E de onde eles aprenderam isso de destruir as construções? Seus pais deveriam ser presos por algo assim, os parasitas!

E aconteceu: não consegui ficar mais tempo na corda bamba pedagógica.

Numa manhã de inverno, pedi a Zadorov que cortasse lenha para a cozinha. E ouvi a habitual resposta atrevida e alegre:

- Vá cortar você mesmo: há muitos de vocês aqui!

Era a primeira vez que ele me tratava por "você".

Encolerizado e ofendido, levado ao desespero e ao frenesi por todos os meses anteriores, corri para Zadórov e dei-lhe um bofetão no rosto. Dei-lhe um tapa tão forte que ele vacilou e caiu sobre a estufa. Bati nele uma segunda vez e, agarrando-o pelo colarinho e levantando-o, bati nele mais uma vez.

De repente, vi que ele estava terrivelmente assustado. Pálido, com as mãos trêmulas, pôs apressadamente o boné, tirou-o e voltou a colocá-lo. E provavelmente eu teria continuado a bater nele, mas ele gaguejou num gemido lamentoso:

- Desculpe, Antón Semiónovtich...

Minha fúria era tão selvagem e desmedida que percebi que se alguém dissesse uma única palavra contra mim, eu me jogaria em cima de todos para matar, para exterminar aquela multidão de bandidos. Um atiçador de ferro apareceu em minhas mãos. Os cinco educandos permaneceram imóveis ao lado de suas camas. Burún tentava arrumar qualquer coisa na sua roupa.

Virei-me para eles e os ameacei, batendo com o atiçador no encosto de uma cama:

- Ou vão todos imediatamente para o mato rachar lenha ou desapareçam da colônia para o diabo que os carregue!

E sai do dormitório.

No galpão onde guardávamos nossas ferramentas, levantei um machado e observei, franzindo a testa, como os educando escolhiam machados e serrotes. Passou pela minha cabeça que era melhor não ir para a floresta naquele dia, não colocar os machados nas mãos dos educandos, mas já era tarde: todas as ferramentas estavam distribuídas. Isso não importava. Eu me sentia pronto para tudo: havia resolvido não desistir de minha vida de graça. Além disso, ainda tinha o revólver no bolso.

Nós fomos para a floresta. Kálina Ivánovitch me alcançou e, terrivelmente agitado, sussurrou:

- O que está acontecendo? Diga-me, por favor, por que é que eles estão tão mansos?

Olhei distraído para os olhos azuis de pan e respondi:

- As coisas estão ruins, meu irmão... Pela primeira vez na vida eu bati em uma pessoa.

- Que horror, homem! - Kálina Ivánovitch ficou surpreso. - E se eles fizerem queixa?

- Bem, isso ainda não seria tão mau...

Para minha surpresa, tudo correu bem. Trabalhei com os rapazes até a hora do almoço. Cortamos pinheiros tortos. Em geral, os rapazes permaneceram enfezados, mas o ar puro e gelado, a bela floresta, adornada com enormes capas de neve, o trabalho harmonioso do machado e do serrote fizeram sua parte.

Parados, fumamos confusos da minha reserva de makhórka (2), e Zadórov, soprando a fumaça para o topo dos pinheiros, de repente caiu na gargalhada:

- Mas essa é boa! Ha, ha, ha!

Foi bom ver seu rosto rosado, que tremia de tanto rir, e eu não conseguia parar de sorrir:

- O que é que é uma boa? O trabalho?

- O trabalho também... O que eu quero dizer, é o jeito como os enhor me deu aquela sova!

Era natural que Zadórov, um jovem grande e robusto, risse. Eu mesmo fiquei surpreso por ter ousado tocar em tal gigante.

Ele riu de novo, e ainda rindo, pegou o machado e foi em direção a uma árvore.

- Mas que história, ha, ha, ha!

Almoçamos juntos, brincando, mas não fizemos mais nenhuma referência ao incidente da manhã. Eu, porém, senti-me embaraçado, embora determinado a não baixar o tom e continuei a dar ordens com a mesma firmeza após a refeição. Vólokhov estava sorrindo, mas Zádorov se aproximou de mim com uma expressão muito séria:

- Não somos tão ruins, Anton Semiónovitch! Tudo sairá bem. Nós compreendemos...


continua na página 25...
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(1) Referência às guerras enfrentadas pelos bolcheviques na Ucrânia após a Revolução de 1917. Piotr Nicolaiévitch Wrangel (1878-1928) foi o comandante, a partir de 1920, do exército branco ucraniano, contrarrevolucionário. A guerra polonesa foi a invasão da Ucrânia oriental pela Polônia em maio de 1920. Simon Vassiliévitch Petliúra (1879-1929) foi um general ucraniano separatista, adversário tanto dos brancos como dos bolcheviques, que chegou a assumir a presidência de um governo independente em Kiev em 1919. (N. da E.)
(2) Tipo de fumo barato.
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Livro Um

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