Estudos de Costumes
- Cenas da Vida Privada
Memórias de duas jovens esposas
SEGUNDA PARTE
L – RENATA DE L’ESTORADE A LUÍSA DE MACUMER
Como! Luísa, depois de todas as desgraças íntimas que te deu uma paixão partilhada, no seio do próprio casamento, queres hoje viver com um marido na solidão? Depois de teres matado um, vivendo na sociedade, queres te isolar para devorar outro? Que pesares te estás preparando! Mas, pelo modo como procedeste, vejo que tudo é irrevogável. Para que um homem te haja feito esquecer tua aversão por um segundo casamento, é preciso que possua um espírito angelical, um coração divino; é preciso, pois, deixar-te com as tuas ilusões; mas então esqueceste o que dizias da mocidade dos homens, os quais todos passaram por lugares ignóbeis e cuja candura se perdeu nas mais horríveis encruzilhadas do caminho? Quem mudou? Tu ou eles? És bem ditosa por creres na felicidade: não tenho forças para censurar-te, embora o instinto da ternura me leve a te desviar desse casamento. Sim, cem vezes sim, a natureza e a sociedade se mancomunam para destruir a existência de felicidades inteiras, por serem elas contrárias à natureza e à sociedade, e por se sentir o céu, talvez, cioso de seus direitos. Enfim, minha amizade pressente alguma desgraça que nenhuma previsão me poderia explicar; não sei nem de onde virá nem quem a engendrará; mas, querida, talvez te esmague uma felicidade imensa e ilimitada. Carrega-se menos facilmente a extrema alegria do que o mais pesado desgosto. Nada digo contra ele: tu o amas, e eu jamais o vi; mas tu me pintarás, espero, um dia em que nada tenhas a fazer, um retrato qualquer desse belo e curioso animal.
Vês como me conformo alegremente, porque tenho a certeza de que depois da lua de mel vocês dois farão, e de comum acordo, como todos. Um dia, daqui a dois anos, quando passearmos nesta estrada, tu me dirás: “Ali está o chalé de onde eu não devia sair!”. E rirás com o teu bom riso, mostrando-me teus lindos dentes.
Nada disse ainda a Luís, pois lhe daríamos demasiados motivos para rir. Dir-lhe-ei simplesmente sobre teu casamento e teu desejo de o manter secreto. Infelizmente não precisas nem de mãe nem de irmã para o deitar da noiva. Estamos em outubro, começas pelo inverno, como uma mulher de coragem. Se não se tratasse de casamento, eu diria que pegas o touro pelos cornos. Enfim, terás em mim a mais discreta e inteligente amiga. O centro misterioso da África devorou muitos viajantes, e parece-me que te lanças, em matéria de sentimentos, em uma viagem semelhante àquelas em que pereceram tantos exploradores, ou por culpa dos negros, ou das areias. O teu deserto está a duas léguas de Paris. Posso, pois, dizer-te alegremente: boa viagem! Voltarás.
continua pág 359...
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
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