quarta-feira, 14 de junho de 2023

Úrsula - XX - A louca

Maria Firmina dos Reis


Úrsula

XX - A louca 


Brilhavam ainda no ocaso os últimos raios do sol. A parda tarde embelezava a natureza com essas melancólicas cores, que trazem ao coração do homem a saudade e a tristeza.
Sentado em um banco do seu jardim, o comendador Fernando P. não via, nem curava de toda essa beleza arrebatadora, que inebria os sentidos e eleva a alma até Deus. A essa hora mágica em que a flor singela e sedutora escuta enlevada o suspiroso segredo da brisa, que a festeja; em que o colibri furtando-lhe um mimoso e feiticeiro adeja e sussurra-lhe em volta; em que lá no bosque o vento suspira harmonioso, e os cantores das selvas soltam seu trinar melodioso e terno; em que o mar na praia é pacífico e manso, e perde a altivez com que bramia; em que a virgem entregue a um vago, indefinível e mágico cismar recende mais casto, mais enlevador perfume, como o aroma de uma flor celeste; a essa hora mesma Fernando P., aguilhoado pelos remorsos, só via hórridos fantasmas, que o cercavam.
No rosto pálido e desfeito, as lágrimas escavavam-lhe profundos sulcos; os olhos encovados, vermelhos, e pisados denunciavam a insônia febricitante. Já não era o mesmo, senão no seu amor e na sua desesperação.
A dor enrugou-lhe as faces, os remorsos alvejaram-lhe os cabelos. Tão poucos dias de aflição transformaram-no em um velho fraco e abatido.
Faltavam-lhe forças para ver Úrsula; as noites, e os dias inteiros passava-os aí, ora correndo louco por baixo dessas copadas e seculares árvores; ora rojando-se por terra, arrancando os cabelos e blasfemando horrivelmente de Deus e dos homens.
Aí, a essa hora mágica do crepúsculo, estava ele, como de costume, só, e todo entregue a seus pungentes sofrimentos, quando a branda, mas repreensiva voz de um homem, o sobressaltou.
Era o velho sacerdote.

— Vedes? – lhe disse apontando com o dedo na direção do poente. – É ela, é Susana!

O comendador levantou maquinalmente a cabeça e olhou.
Em uma rede velha levavam dois pretos um cadáver envolto em grosseira e exígua mortalha; iam-no sepultar!
Então Fernando P. estremeceu, porque aos ouvidos ecoou-lhe uma voz tremenda e horrível que o gelou de medo. Era o remorso pungente e agudo, que sem tréguas nem pausa acicalava o seu coração fibra por fibra.
Escondeu o rosto, espavorido, e meneando a cabeça disse:

— Não! Não fui eu!

— Fostes! – tornou-lhe o padre com o acento do que vai julgar. — A infeliz sucumbiu à força de horríveis tratos. Martirizastes a pobre velha, inocente, e que não teve parte na desaparição de Úrsula! Não vo-lo provava seu acento de sincera ingenuidade, sua negativa franca e firme?!

Homem! Porque a encerrastes nessa escura e úmida prisão, e aí a deixastes entregue aos vermes, à fome e ao desespero?!!
Nos derradeiros instantes da sua vida, eu, o indigno ministro do Senhor, estava ao seu lado, e os seus últimos queixumes como que ainda os escuto!
Sorria-se à borda da sepultura; porque tinha consciência de que era inocente e bem-aventurada do céu. A morte era-lhe suave; porque quebrava-lhe o martírio e as cadeias da masmorra infecta e horrenda.
E sabeis vós o que é a vida na prisão? Oh! é um tormento amargo, que mata o corpo e embrutece o espírito! É morrer mil vezes sem encontrar nunca a paz da sepultura! É um sono doloroso e triste do qual o infeliz só vai despertar na eternidade!
E endurecestes o coração ao brado da inocência!... Porque era escrava, sobrecarregaste-a de ferros; negastes-lhe o ar livre dos campos, e entretido com novas vinganças, nem dela mais vos recordastes.
Assassino de Tancredo, de Túlio, de Paulo, e de Susana! Monstro! Flagelo da humanidade, ainda não saciastes a vossa vingança? Ah! Humilhado e em nome de Deus, pedi-vos mercê para os infelizes, salvação para a vossa alma. Desdenhastes as minhas súplicas!
Orgulhoso e vingativo que sois! E não sentistes que Deus observa os malvados e que os pune ainda na terra.
Em vossa louca e vaidosa ideia, julgastes-vos grande, e esmagastes aos vossos semelhantes que eram fracos, e estavam inermes.
Como a fera dos bosques acometestes a Tancredo e covardemente o assassinastes: como um verdugo cruel punistes Susana de um crime que não tinha... oh! Se o arrependimento vos não apagar a nódoa do pecado, os crimes vos despenharão no inferno.
Fernando P.! Deus vela sobre as ações do homem, e o condena pela vaidade estúpida do seu orgulho. Úrsula! O que é feito dela?
Tremeis? Oh! Eis aí o vosso primeiro castigo.
A infeliz enlouqueceu de dor, e a sua loucura mirrou-vos a esperança do seu amor!
Agora o amor requeima-vos o coração; mas árido é ele; porque os afetos de sua alma não serão para ti.
Fernando! Chorai o pranto do arrependimento: sede caritativo e sincero que são vias para a remissão de vossos enormes pecados. Ainda é tempo. Escutai por esta boca impura a voz do Senhor, que na sua extrema bondade talvez vos perdoe.
Vivei a vida de solitário, passai em ardente e fervorosa oração os dias e as noites.
Indenizai os vossos escravos do mal que lhes haveis feito, dando-lhes a liberdade. Esse ato de abnegação e de caridade cristãs agradará a Deus, e então talvez na sua misericórdia infinita ele abra para vós os tesouros da sua inefável graça.
O comendador, sempre com a face inclinada para a terra, ouvia em silêncio as repreensões do digno sacerdote; mas vendo que ele terminara aconselhando-o, redarguiu-lhe com desalento:

— Levai-me aonde está ela... há tanto tempo que a não vejo.

O velho sacerdote sentiu-se vivamente comovido ao aspecto desse homem cheio de crimes e de maldições, e a quem os remorsos tinham envelhecido de repente.
Ele conheceu que o arrependimento principiava a operar-se naquela alma rebelde. Tomou-lhe as mãos secas e ardentes, e o foi guiando até os aposentos da donzela. Mas Fernando P. estacou no limiar da porta, não se atrevendo a entrar.
A cena que se apresentou a seus olhos quebrou-lhe o coração de angústias.
Úrsula sorria, afagando invisível sombra, mas esse sorriso era débil e vaporoso – era o derradeiro esforço de uma alma que está prestes a quebrar as prisões do corpo.
O comendador fechou os olhos, e agarrou-se à porta para não cair.
E ela, como se a ninguém visse, murmurava em voz baixa, e depois tornava a sorrir-se.

— Vem – disse com voz débil, mas repassada de ternura, – tanto tempo há que te procuro embalde.

Tancredo! Porque me fugias? Onde estavas?
Espera... agora me recordo. Túlio disse-me que muito longe te levava não sei que negócio urgente!... E eu sentia a dor da separação; porque era já longa, e triste.
E depois tirando dos cabelos uma florzinha seca, última que lhe restava da capela, beijou-a, e sorriu-se com ternura.
Não as vês, Tancredo? São as flores do meu noivado. São tão lindas... amo-as!...
E apertou-a ao coração.
Depois soltou um profundo suspiro, e erguendo as mãos súplices para o sacerdote, em quem só então reparara, exclamou com voz que revelava a mais aflitiva angústia:

— Por compaixão! Oh! Não o mateis! Que horror!... Oh! Matai-me antes!... O monstro ri-se com prazer e sem piedade! Ah! Maldição... maldição sobre ele!

Seus olhos brilharam ainda uma derradeira vez com um fulgir vívido, depois cerraram-se.
Era como a luz, que no seu último viver, antes de extinguir-se para sempre, avulta e cresce por clarões vagos e interrompidos.
Após de longa pausa, sempre com os olhos fechados, continuou:

— Deus meu! Porque assassinou ele a Tancredo? Oh! Era noite... Bem o vi, seus olhos eram os de um tigre!

Arredai-vos! Arredai-vos! – disse, pegando ao acaso a mão do sacerdote, que lhe aguardava o último momento – Não vedes que aí há sangue?... Sangue!... Muito sangue!
Muito, muito sangue derramou ele, e esse sangue caiu-me todo aqui no coração.
Sinto uma aflição, que me mata! Ai que dor!!... – E com a mão sobre o coração se pôs a soluçar com tanta dor, que partiria o coração ainda o mais embrutecido.
O sacerdote acenou então para o comendador, que estava imóvel e pálido: este entrou.

— Meu filho, – disse o padre – ajoelhemo-nos.

Ambos caíram prostrados aos pés da infeliz louca, que entregava a alma ao Criador.
O sacerdote murmurava com melancólico acento o salmo dos defuntos; mas o comendador o não compreendia; porque Úrsula morria, e ele tinha sido a causa. A dor e o remorso tiraram-lhe os sentidos, e caiu por terra.
O padre não deu fé desse acidente e continuou a orar fervorosamente. E a oração dos seus lábios subia ao céu como nuvem de incenso que por muito tempo ondula em torno do altar e sobe até Deus.
Era o perfume, que precedia à alma da donzela.
E ela, nesse transe supremo, cruzou as mãos sobre o peito, apertando nesse estreito abraço a florzinha seca de sua capela, murmurou — Tancredo! –E com os lábios entreabertos, e onde adejava um sorriso divinal, e como um anjo deu o último suspiro.

continua pág 142...

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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres.
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.


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Úrsula - XX - A louca

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