quinta-feira, 29 de junho de 2023

O Sol é para todos: 1ª Parte (9a)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

9

— Retire o que disse, garoto!

Essa ordem, dada por mim a Cecil Jacobs, marcou o início de uma fase difícil para Jem e para mim. Eu estava de punhos cerrados, pronta para dar um soco. Atticus tinha prometido que me daria uma surra se ficasse sabendo que eu tinha me metido em briga outra vez. Eu estava muito velha e muito grande para essas criancices e quanto antes aprendesse a me controlar, melhor seria para todos. Esqueci logo essa recomendação. 
Cecil Jacobs me fez esquecer. No dia anterior, ele tinha dito no pátio da escola que o pai de Scout Finch defendia pretos. Neguei, mas contei para Jem. 

— O que ele quis dizer com isso? — perguntei.

— Nada. Pergunte a Atticus, ele vai explicar — respondeu Jem.

— Você defende pretos, Atticus? — perguntei a ele naquela tarde. 

— Claro que sim. Não diga preto, Scout. É grosseiro. 

— Todo mundo na escola fala assim. 

— A partir de agora, todo mundo menos você. 

— Se não quer que eu fale assim, por que me manda para a escola?

Meu pai me dirigiu um olhar doce, divertido. Apesar do nosso acordo, eu continuava em campanha para não ir à escola de uma forma ou de outra desde o primeiro dia; o início das aulas me causou indisposições, tonteiras e leves problemas gástricos. Cheguei a dar uma moeda pelo privilégio de esfregar a minha cabeça na do filho da cozinheira da srta. Rachel, que estava com uma tremenda micose no couro cabeludo. Foi inútil, não peguei.
Mas eu estava preocupada com outra coisa:

— Todo advogado defende os, hum, negros, Atticus? 

— Claro que sim, Scout.

— Então por que Cecil disse que você defende pretos? Ele falou como se fosse ilegal. 

Atticus suspirou. 

— Estou só defendendo um negro… ele se chama Tom Robinson. Ele mora naquele pequeno assentamento atrás do lixão da cidade. Frequenta a igreja de Calpúrnia, que conhece bem a família dele. Cal diz que eles são boa gente. Scout, há coisas que você não tem idade para entender, mas estão comentando pela cidade que eu não devia defender esse homem. É um caso muito peculiar… Só vai a julgamento no verão. John Taylor foi muito atencioso em nos conceder um adiamento…

— Se você não devia defender esse homem, por que está fazendo isso?

— Por vários motivos — respondeu Atticus. — O principal é: se eu não fizesse isso, não poderia andar de cabeça erguida na cidade, não poderia representar o condado na Câmara, nem poderia exigir que você e Jem fizessem alguma coisa. 

— Quer dizer que se você não defendesse esse homem, Jem e eu não teríamos mais que obedecê-lo?

— Mais ou menos isso. 

— Por quê?

— Porque eu não poderia exigir isso. Scout, por causa da natureza da função que exerce, todo advogado assume pelo menos um caso que o afeta pessoalmente. Tenho a impressão de que esse é o meu. Você provavelmente vai ouvir coisas horríveis sobre isso na escola, então me faça um favor: levante a cabeça e abaixe os punhos. Não importa o que digam, não deixe que eles a façam perder o controle. Tente lutar com as ideias, para variar… mesmo que seja difícil. 

— Atticus, nós vamos ganhar? 

— Não, querida. 

— Então, por que…

— Ainda que tenhamos perdido antes mesmo de começar, não significa que não devamos tentar — ponderou Atticus.

— Você está parecendo o primo Ike Finch — eu disse. 

O primo Ike Finch era o único veterano confederado do condado vivo. Usava uma barba como a do general Hood, da qual muito se orgulhava. Pelo menos uma vez por ano, Atticus, Jem e eu íamos visitá-lo e eu tinha de dar um beijo nele. Era horrível. Jem e eu tínhamos de ouvir respeitosamente enquanto Atticus e o primo Ike relembravam a guerra. “Só sei, Atticus”, dizia o primo Ike, “que o Acordo do Missouri foi a nossa derrota, mas, se tivesse que passar por aquilo outra vez, eu faria tudo igualzinho, e garanto que dessa vez nós acabaríamos com eles... Mas em 1864, quando Stonewall Jackson apareceu, desculpem, crianças… A essa altura, o Velho Olhos Azuis já estava no céu, que sua mente abençoada repouse na paz de Deus…” 

— Venha cá, Scout — chamou Atticus. 

Subi no colo e me aninhei sob o queixo dele. Ele me abraçou e disse:

— Agora é diferente, não estamos lutando contra os ianques, mas contra os nossos amigos. Mas lembre-se que, por piores que as coisas fiquem, eles continuam sendo nossos amigos e esta continua sendo a nossa casa. 

Ciente de tudo isso, encarei Cecil Jacobs no pátio da escola na manhã seguinte e perguntei:

— Vai retirar o que disse, garoto? 

— Quero ver você me obrigar! — ele berrou. — Meus pais disseram que o seu pai é uma vergonha e que aquele preto merece ser enforcado na caixa d’água!

Ameacei meter a mão nele, mas me lembrei do que Atticus tinha dito, baixei os punhos e saí andando com a frase “Scout é uma medrosa!” buzinando nos meus ouvidos. Era a primeira vez que eu abandonava uma briga.
De alguma forma, se eu brigasse com Cecil, Atticus ficaria decepcionado. Era tão raro ele pedir alguma coisa para Jem e para mim que valia a pena ser chamada de medrosa por ele. Fiquei cheia de sentimentos nobres por ter lembrado das palavras de Atticus e continuei nobre por três semanas. Então chegou o Natal e aconteceu o desastre.


continua página 059...
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

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