Thomas Mann
A Montanha Mágica
Capítulo III
O Sr. Albin
No jardim, lá embaixo, a brisa levantava de vez em quando a bandeira adornada de um caduceu. O céu voltara a nublar-se em toda parte. Desapareceu o sol, e quase imediatamente surgiu um frio pouco hospitaleiro. O alpendre de repouso parecia estar cheio; ouviam-se conversas e risos abafados.
– Por amor de Deus, Sr. Albin, guarde essa faca. Pode acontecer uma desgraça! – lamentava-se uma voz aguda, suplicante, de mulher.
- Meu caro Sr. Albin, por favor, tenha consideração pelos nos nervos e afaste essa arma homicida – interveio outra. E um jovem louro, que com um cigarro na boca estava sentado na borda da primeira espreguiçadeira, retrucou num tom insolente:
– Nem penso nisso! Será que as senhoras não me permitem brincar com a minha faca? Não nego que é uma faca muito bem afiada. Comprei-a em Calcutá, de um faquir cego. O homem era capaz de a engolir, e logo depois o seu menino ia desenterrá-la a uns cinquenta passos de distância... Querem ver? Corta melhor que uma navalha. Baste tocar no gume, e a carne se abre que nem manteiga. Esperem, vou mostrá-la de perto... – O Sr. Albin levantou-se. Houve gritos estridentes. – Não? Nesse caso vou buscar meu revólver – continuou ele. – Talvez seja mais interessante para as senhoras. É formidável. Tem uma força de percussão que nem imaginam... Vou buscá-lo no meu quarto.
– Sr. Albin, Sr. Albin, não faça isso! – imploravam várias vozes. Mas o Sr. Albin já saíra do alpendre para subir ao quarto. Era muito jovem, com movimentos desengonçados, e tinha uma cara rosada, de criança, ornada de pequenas suíças.
– Sr. Albin! – gritou uma senhora atrás dele. -seria melhor buscar um sobretudo. Ponha um sobretudo, faça o favor! O senhor passou seis semanas na cama, com pneumonia, e agora fica sentado aqui, sem se agasalhar, e ainda fuma cigarros! Palavra de honra, Sr. Albin, isso é tentar a Deus.
Mas ele se limitou a um riso sarcástico e foi-se embora. Poucos minutos após, já estava de volta com o revólver na mão, para desenfrear uma gritaria ainda mais idiota que a anterior. Ouviu-se perfeitamente como algumas dentre as senhoras, levantando-se de um pulo, tropeçavam no cobertor e caíam no chão.
– Vejam só como ele é pequeno e lustroso – disse o Sr. Albin. – Mas ele morde, quando aperto aqui... – Nova gritaria. – Claro que está carregado – acrescentou o Sr. Albin. – Há seis balas no cilindro, que gira a cada disparo... Aliás, não comprei este negócio para brincadeira – concluiu, ao notar que o efeito das suas palavras diminuía. Enfiou o revólver no bolso do paletó, tornou a sentar-se, cruzando as pernas, e acendeu novo cigarro. – Absolutamente não é para brincadeira – repetiu, cerrando os lábios.
– Mas, para quê? Para que, então? – perguntaram algumas vozes trêmulas de pressentimento. – Que horror! – exclamou de repente uma das senhoras, e o Sr. Albin sacudiu a cabeça afirmativamente.
– Vejo que as senhoras começam a compreender – disse – Com efeito, é para isso que ando com ele – continuou num tom displicente, depois de ter tirado uma longa tragada do cigarro, não obstante a pneumonia recém-vencida. – Conservo-o preparado para o dia em que esta coisa aqui começar a me aborrecer muito, e terei a honra de me despedir respeitosamente. É muito simples. Gastei algum tempo em estudar o assunto e sei como melhor se liquida. A palavra “liquida” provocou um grito de susto. – O coração interessa. E um alvo incômodo... Além disso prefiro extinguir a consciência no seu próprio centro, enxertando um corpo estranho engraçadinho neste órgão interessante... – E o Sr. Albin mostrou com o indicador o crânio coberto de cabelos louros, aparados rente – Deve-se apontar aqui – com essas palavras, o Sr. Albin voltou a tirar do bolso o revólver niquelado e bateu com o cano na fronte – aqui, em cima da artéria... É um processo facílimo, até sem espelho...
Ouviram-se muitas vozes de insistente protesto, às quais se misturou ainda um violento soluço.
– Sr. Albin, Sr. Albin, tire esse revólver da fronte, guarde o revólver! Não posso ver uma coisa dessas! Sr. Albin, o senhor é moço, vai recuperar a saúde, voltará à vida e terá uma grande carreira pela frente; garanto-lhe! Bote o sobretudo, deite-se na espreguiçadeira, agasalhe-se bem e continue com o seu tratamento! Não mande o massagista embora, como fez da outra vez, quando ele veio esfregá-lo com álcool. E por amor à sua vida, sua jovem e preciosa vida, Sr. Albin atenda ao nosso conselho: abandone os cigarros!
Mas o Sr. Albin mostrava-se inexorável:
– Não e não! – disse ele. – Não insistam comigo. Está bem. Agradeço-lhes a sua bondade. Nunca neguei nada a uma senhora, mas deve-se compreender que é inútil procurar deter a roda do destino. Faz mais de dois anos que vivo aqui... Estou farto e vou sair do jogo. Que mal há nisso? Incurável, minhas senhoras! Olhem o homem que aqui está à sua frente; é um caso incurável. O próprio Behrens já não disfarça essa sua opinião, nem para guardar as aparências. Então me concedam a pequena liberdade que para mim resulta desse fato! É como no ginásio, quando se decidia que alguém levava bomba e tinha que repetir o ano. Deixavam então de examiná-lo, e ele não precisava mais trabalhar. Eu cheguei definitivamente a essa situação feliz. Nada mais preciso fazer; não entro mais no balanço; posso me rir de tudo... Querem chocolate? Sirvam-se. Não, minhas senhoras, não me privem de nada. Tenho montões de chocolate no meu quarto; oito caixas de bombons, cinco barras de Gala-Peter e quatro libras de chocolate Lindt. Tudo isto me mandaram as senhoras do sanatório durante a minha pneumonia...
Em algum lugar, uma voz de contrabaixo reclamou silêncio. O Sr. Albin deu uma rápida risada; era um riso trêmulo, abrupto... Depois se fez silêncio no alpendre de repouso, um silêncio tão completo, como se se tivesse sumido uma miragem ou uma fantasmagoria. De um modo estranho pareciam ecoar as palavras que haviam sido pronunciadas. Hans Castorp ficou a escutar, até que o último ruído houvesse cessado, e conquanto tivesse a impressão de que o Sr. Albin era um fantoche, não pôde deixar de sentir uma certa inveja. Principalmente aquela comparação tirada da vida escolar causara-lhe viva impressão, já que ele mesmo tivera que repetir o quinto ano do ginásio e ainda se lembrava muito bem daquela situação decerto um pouco ignominiosa, mas também cômica e agradavelmente desembaraçada, que desfrutara durante o último trimestre, quando deixara de se esforçar e pudera “rir-se de tudo”. Não é fácil precisar seus pensamentos, visto serem obscuros e confusos, mas parecia-lhe, em suma, que a honra oferecia consideráveis vantagens, mas que a vergonha não as tinha menores, e que as vantagens desta última eram quase ilimitadas. Enquanto, a título de experiência, representava no seu espírito o papel do Sr. Albin e imaginava o que significaria ver-se definitivamente livre da pressão da honra e gozar para sempre as imensas vantagens da vergonha, assustou-se o jovem diante de uma sensação de gozo dissoluto, que lhe imprimiu às batidas do coração, por alguns instantes, um ritmo ainda mais acelerado.
- Meu caro Sr. Albin, por favor, tenha consideração pelos nos nervos e afaste essa arma homicida – interveio outra. E um jovem louro, que com um cigarro na boca estava sentado na borda da primeira espreguiçadeira, retrucou num tom insolente:
– Nem penso nisso! Será que as senhoras não me permitem brincar com a minha faca? Não nego que é uma faca muito bem afiada. Comprei-a em Calcutá, de um faquir cego. O homem era capaz de a engolir, e logo depois o seu menino ia desenterrá-la a uns cinquenta passos de distância... Querem ver? Corta melhor que uma navalha. Baste tocar no gume, e a carne se abre que nem manteiga. Esperem, vou mostrá-la de perto... – O Sr. Albin levantou-se. Houve gritos estridentes. – Não? Nesse caso vou buscar meu revólver – continuou ele. – Talvez seja mais interessante para as senhoras. É formidável. Tem uma força de percussão que nem imaginam... Vou buscá-lo no meu quarto.
– Sr. Albin, Sr. Albin, não faça isso! – imploravam várias vozes. Mas o Sr. Albin já saíra do alpendre para subir ao quarto. Era muito jovem, com movimentos desengonçados, e tinha uma cara rosada, de criança, ornada de pequenas suíças.
– Sr. Albin! – gritou uma senhora atrás dele. -seria melhor buscar um sobretudo. Ponha um sobretudo, faça o favor! O senhor passou seis semanas na cama, com pneumonia, e agora fica sentado aqui, sem se agasalhar, e ainda fuma cigarros! Palavra de honra, Sr. Albin, isso é tentar a Deus.
Mas ele se limitou a um riso sarcástico e foi-se embora. Poucos minutos após, já estava de volta com o revólver na mão, para desenfrear uma gritaria ainda mais idiota que a anterior. Ouviu-se perfeitamente como algumas dentre as senhoras, levantando-se de um pulo, tropeçavam no cobertor e caíam no chão.
– Vejam só como ele é pequeno e lustroso – disse o Sr. Albin. – Mas ele morde, quando aperto aqui... – Nova gritaria. – Claro que está carregado – acrescentou o Sr. Albin. – Há seis balas no cilindro, que gira a cada disparo... Aliás, não comprei este negócio para brincadeira – concluiu, ao notar que o efeito das suas palavras diminuía. Enfiou o revólver no bolso do paletó, tornou a sentar-se, cruzando as pernas, e acendeu novo cigarro. – Absolutamente não é para brincadeira – repetiu, cerrando os lábios.
– Mas, para quê? Para que, então? – perguntaram algumas vozes trêmulas de pressentimento. – Que horror! – exclamou de repente uma das senhoras, e o Sr. Albin sacudiu a cabeça afirmativamente.
– Vejo que as senhoras começam a compreender – disse – Com efeito, é para isso que ando com ele – continuou num tom displicente, depois de ter tirado uma longa tragada do cigarro, não obstante a pneumonia recém-vencida. – Conservo-o preparado para o dia em que esta coisa aqui começar a me aborrecer muito, e terei a honra de me despedir respeitosamente. É muito simples. Gastei algum tempo em estudar o assunto e sei como melhor se liquida. A palavra “liquida” provocou um grito de susto. – O coração interessa. E um alvo incômodo... Além disso prefiro extinguir a consciência no seu próprio centro, enxertando um corpo estranho engraçadinho neste órgão interessante... – E o Sr. Albin mostrou com o indicador o crânio coberto de cabelos louros, aparados rente – Deve-se apontar aqui – com essas palavras, o Sr. Albin voltou a tirar do bolso o revólver niquelado e bateu com o cano na fronte – aqui, em cima da artéria... É um processo facílimo, até sem espelho...
Ouviram-se muitas vozes de insistente protesto, às quais se misturou ainda um violento soluço.
– Sr. Albin, Sr. Albin, tire esse revólver da fronte, guarde o revólver! Não posso ver uma coisa dessas! Sr. Albin, o senhor é moço, vai recuperar a saúde, voltará à vida e terá uma grande carreira pela frente; garanto-lhe! Bote o sobretudo, deite-se na espreguiçadeira, agasalhe-se bem e continue com o seu tratamento! Não mande o massagista embora, como fez da outra vez, quando ele veio esfregá-lo com álcool. E por amor à sua vida, sua jovem e preciosa vida, Sr. Albin atenda ao nosso conselho: abandone os cigarros!
Mas o Sr. Albin mostrava-se inexorável:
– Não e não! – disse ele. – Não insistam comigo. Está bem. Agradeço-lhes a sua bondade. Nunca neguei nada a uma senhora, mas deve-se compreender que é inútil procurar deter a roda do destino. Faz mais de dois anos que vivo aqui... Estou farto e vou sair do jogo. Que mal há nisso? Incurável, minhas senhoras! Olhem o homem que aqui está à sua frente; é um caso incurável. O próprio Behrens já não disfarça essa sua opinião, nem para guardar as aparências. Então me concedam a pequena liberdade que para mim resulta desse fato! É como no ginásio, quando se decidia que alguém levava bomba e tinha que repetir o ano. Deixavam então de examiná-lo, e ele não precisava mais trabalhar. Eu cheguei definitivamente a essa situação feliz. Nada mais preciso fazer; não entro mais no balanço; posso me rir de tudo... Querem chocolate? Sirvam-se. Não, minhas senhoras, não me privem de nada. Tenho montões de chocolate no meu quarto; oito caixas de bombons, cinco barras de Gala-Peter e quatro libras de chocolate Lindt. Tudo isto me mandaram as senhoras do sanatório durante a minha pneumonia...
Em algum lugar, uma voz de contrabaixo reclamou silêncio. O Sr. Albin deu uma rápida risada; era um riso trêmulo, abrupto... Depois se fez silêncio no alpendre de repouso, um silêncio tão completo, como se se tivesse sumido uma miragem ou uma fantasmagoria. De um modo estranho pareciam ecoar as palavras que haviam sido pronunciadas. Hans Castorp ficou a escutar, até que o último ruído houvesse cessado, e conquanto tivesse a impressão de que o Sr. Albin era um fantoche, não pôde deixar de sentir uma certa inveja. Principalmente aquela comparação tirada da vida escolar causara-lhe viva impressão, já que ele mesmo tivera que repetir o quinto ano do ginásio e ainda se lembrava muito bem daquela situação decerto um pouco ignominiosa, mas também cômica e agradavelmente desembaraçada, que desfrutara durante o último trimestre, quando deixara de se esforçar e pudera “rir-se de tudo”. Não é fácil precisar seus pensamentos, visto serem obscuros e confusos, mas parecia-lhe, em suma, que a honra oferecia consideráveis vantagens, mas que a vergonha não as tinha menores, e que as vantagens desta última eram quase ilimitadas. Enquanto, a título de experiência, representava no seu espírito o papel do Sr. Albin e imaginava o que significaria ver-se definitivamente livre da pressão da honra e gozar para sempre as imensas vantagens da vergonha, assustou-se o jovem diante de uma sensação de gozo dissoluto, que lhe imprimiu às batidas do coração, por alguns instantes, um ritmo ainda mais acelerado.
continua pág 053...
___________________
___________________
Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
O Sr. Albin
___________________
A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Nenhum comentário:
Postar um comentário