domingo, 25 de junho de 2023

Marcel Proust - A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - d)

em busca do tempo perdido

volume VI
A Fugitiva



Capítulo I
Mágoa e Esquecimento


continuando...


Saint-Loup mal teria entrado no trem quando cruzei na minha antecâmara com Bloch, a quem não ouvira tocar a campainha, de modo que fui obrigado à recebê-lo por um instante. Ultimamente, ele me havia encontrado com Albertine (já a conhecia de Balbec), num dia em que ela estava de mau humor.

- Jantei com o Sr. Bontemps - falou-me e, como exerço uma certa influência sobre ele, de ti demonstrei-lhe minha tristeza pelo fato de sua sobrinha não ser mais amável contigo; e disse que era necessário que ele intercedesse nesse sentido. - 

Eu sufocava de cólera: tais pedidos e queixas destruíam todo o efeito das diligências de Saint-Loup e punham-me diretamente em contato com Albertine, a quem eu pareceria estar implorando. Para cúmulo da infelicidade, Françoise, que ficara na antecâmara, ouvia tudo aquilo. Fiz todas as censuras possíveis à Bloch, dizendo-lhe que de maneira alguma o havia encarregado de semelhante missão, e que aliás o caso era falso. A partir daquele momento, Bloch não mais deixou de sorrir, menos, creio, de alegria que de constrangimento por me haver contrariado. Rindo, ele se surpreendia de causar semelhante raiva. Talvez dissesse isso para diminuir a meus olhos a importância de sua ação indiscreta, talvez porque era de natureza covarde, e vivia alegre e perigosamente nas mentiras, como as medusas à flor das águas, talvez porque, mesmo pertencendo a outra raça de homens, os outros, não podendo jamais colocar-se no mesmo ponto de vista que nós, não compreendem a importância do mal que suas palavras ditas ao acaso podem nos fazer. Acabava de acompanhá-lo até a porta, não encontrando nada que pudesse remediar o que ele fizera, quando tocaram de novo e Françoise me entregou uma intimação para comparecer à presença do chefe de polícia. Os pais da menina que eu trouxera para casa tinham apresentado uma queixa contra mim por corrupção de menor. Há momentos na vida em que uma espécie de beleza nasce da multiplicidade de aborrecimentos que nos assaltam, entrecruzados como motivos wagnerianos, e também da noção, que aí aparece, de que os acontecimentos não se situam no conjunto dos reflexos representados no pobre espelhinho que a inteligência leva à sua frente e a que denomina futuro, mas estão fora deles e surgem tão bruscamente como alguém que vai testemunhar o flagrante de um crime. Entregue a si mesmo, um acontecimento já se modifica, seja porque o fracasso o aumente a nossos olhos, seja porque a satisfação o reduza. Mas raramente ele está sozinho. Os sentimentos excitados por cada um deles se contradizem, e, em certa medida, como pude comprová-lo indo à delegacia de polícia, isso constitui, ao menos momentaneamente, um revulsivo tão eficaz contra as tristezas sentimentais quanto o medo. Na Polícia, encontrei os pais da menina, que me insultaram, e dizendo: 

- Não comemos desse pão -; devolveram-me os quinhentos francos (que eu não queria aceitar); o delegado, adotando como exemplo inimitável a facilidade de réplica dos juízes criminais, pegava uma palavra de cada frase que eu dizia e com ela formava uma resposta espirituosa e acabrunhadora. Nem sequer se cuidou de minha inocência no caso, pois foi a única hipótese que ninguém quis admitir um só momento. Não obstante, as dificuldades de incriminação fizeram com que me livrasse à custa de um sabão violentíssimo, na presença dos pais. Porém, logo que estes se retiraram, o delegado, que gostava de meninas, mudou de tom e me censurou como a um camarada: 

- De outra vez, precisa ser mais hábil. Droga, não se faz uma abordagem tão súbita, que estraga o negócio. Além do mais, o senhor pode encontrar em toda parte meninas melhores que esta, e bem mais baratas. O preço era loucamente exagerado... - 

Senti de maneira tão viva que ele não me entenderia, caso eu tentasse lhe explicar a verdade, que, sem dizer palavra, aproveitei a licença que me deu para me retirar. Até chegar em casa, todos os que passavam me pareceram inspetores encarregados de vigiar meus atos e meus gestos. Mas todos esses motivos, bem como o contra Bloch, extinguiram-se para deixar espaço unicamente ao de Albertine. Ora, este motivo retornara, mas de um modo quase alegre, partida de Saint-Loup. Desde que ele se encarregara de ir ver a Sra. Bontemps os sofrimentos se haviam dispersado. Eu achava que era pelo fato de ter agido de boa-fé, pois nunca sabemos o que se oculta em nossa alma. No que me fazia feliz não era, como pensava, o ter descarregado as minhas decisões sobre Saint-Loup; aliás, eu não me enganava absolutamente. O remédio para curar um acontecimento infeliz (três quartas partes dos acontecimentos é uma decisão; pois ela tem como efeito, devido a uma brusca reviravolta nossas idéias, interromper o fluxo das que provêm do acontecimento que prolongam sua vibração, de quebrá-lo por um fluxo inverso de idéias, vindo do futuro. Mas essas novas idéias são principalmente benéficas (e era o caso que me assaltavam naquele momento) quando, do cerne desse futuro, o que trazem é uma esperança. O que no fundo me tornava tão feliz era a certeza de que, não podendo fracassar a missão de Saint-Loup, Albertine não podia deixar de voltar. Compreendi-o, pois, não tendo recebido desde o primeiro dia nenhuma resposta de Saint-Loup, recomecei a sofrer. Minha decisão e a transferência de meus plenos poderes não eram então a causa de minha alegria, que assim mesmo, isso teria durado, mas "o êxito é garantido" que eu havia pensado quando: "Aconteça o que acontecer." E a idéia, sugerida pela sua demora, de que podia ocorrer coisa diversa do êxito, era-me tão odiosa que eu perdera a minha alegria. Na realidade, é a nossa previsão, nossa esperança de acontecimentos felizes, que nos enche de uma alegria que atribuímos à outras causas, e que cessa por nos deixar recair no desgosto, se já não temos tanta certeza de que se realize aquilo que desejamos. É sempre esta crença invisível que sustenta o edifício do nosso mundo sensitivo e sem a qual ele oscilaria. Já vimos que ela constituía a nós o valor ou a nulidade das criaturas, o entusiasmo ou o tédio de vê-las da mesma forma, dá-nos a possibilidade de suportar um desgosto que nos parece medíocre, sobretudo porque estamos convencidos de que vai findar; ou o brusco aumento, até que uma nova presença valha tanto quanto a nossa vida, e às vezes mais do que ela. De resto, uma coisa acabou tornando a dor de meu coração tão aguda como o fora no primeiro instante quando, é por força confessá-lo, já não o sentia mais. Aconteceu ao reler uma frase da carta de Albertine. Debalde amamos criaturas; quando, isolados, só nos defrontamos com o sofrimento de perdê-las; que o nosso espírito dá em certa medida a forma por ele desejada, tal sofrimento suportável e diverso daquele outro, menos humano, menos nosso, tão esquisito, inesperado como um acidente no mundo moral e na zona do coração que tem como causa menos diretamente as próprias criaturas do que a maneira como ficamos sabendo que não mais as veríamos. Albertine, eu podia pensar nela, chorando suavemente, aceitando não vê-la esta noite, como já não a vira ontem; porém reler minha decisão é irrevogável, era outra coisa. Era como tomar um remédio perigoso, que me provocaria uma crise cardíaca à qual não se pode sobreviver. Existe nas coisas, nos fatos, nas cartas de rompimento, um perigo particular que amplia e desnatura a própria dor que as pessoas podem nos causar. Mas esse sofrimento dura pouco. Apesar de tudo, sentia-se tão seguro do sucesso da habilidade de Saint-Loup, a volta de Albertine me parecia uma coisa tão certa, que me indaguei se tivera razão para desejá-la. Todavia, rejubilava-me por isso.

Infelizmente para mim, que julgava terminado o incidente com a Polícia, Françoise me informou que um inspetor viera saber se eu tinha o hábito de receber moças em casa, e que o porteiro, pensando que ele se referia à Albertine, dissera que sim; e que, a partir desse momento, a casa parecia estar sendo vigiada. Desde então, seria para sempre impossível mandar vir uma menina para me consolar dos meus desgostos, sem me arriscar a sofrer o vexame, diante dela, que um inspetor aparecesse, e ela me tomasse por um malfeitor. E ao mesmo tempo, compreendi como vivemos mais em função de certos sonhos do que imaginamos, pois essa impossibilidade de embalar jamais uma criança me pareceu tirar todo o valor da vida; mas percebi também o quanto é compreensível que as pessoas facilmente recusem a fortuna e se arrisquem à morte, ainda que imaginemos que o interesse e o medo de morrer dominem o mundo. Pois, se eu tivesse imaginado que até uma menina desconhecida pudesse formar, por causa da chegada de um policial, uma idéia vergonhosa de mim, como seria preferível que me matasse! Nem sequer havia ponto de comparação possível entre os dois sofrimentos. Ora, na vida, as pessoas nunca refletem que aqueles a quem dão dinheiro, ou ameaçam de morte, podem ter uma amante, ou até simplesmente um companheiro, a cuja estima dão grande valor, mesmo quando não se estimam a si próprios. Mas, de repente, devido a uma confusão de que não me dei conta (de fato, não pensei que Albertine, sendo maior, poderia morar em minha casa e até ser minha amante), pareceu-me que a corrupção de menores podia também se aplicar à Albertine. Então a vida se me afigurou cerceada por todos os lados. E, pensando que não vivera castamente com ela, encontrei na punição que me era infligida por ter acalentado uma menina ignorada, essa relação que existe quase sempre nos castigos humanos; e que faz com que não haja quase nunca, nem condenação justa, nem erro judiciário, mas uma espécie de harmonia entre a idéia falsa que o juiz forma acerca de um ato inocente e os fatos culposos que ignorou. Mas então, pensando que o regresso de Albertine podia me acarretar uma condenação infame que me degradaria a seus olhos, e talvez causasse a ela mesma um prejuízo de que jamais me perdoaria, deixei de desejar esse regresso, que me apavorava. Gostaria de lhe telegrafar para que não voltasse. E imediatamente, sufocando tudo o mais, invadiu-me o desejo apaixonado de que ela regressasse. Ao mesmo tempo que, tendo considerado por um instante a possibilidade de lhe dizer que não voltasse e de viver sem ela, vi-me de súbito, pelo contrário, prestes à todos os prazeres, todas as viagens, todos os trabalhos, para que Albertine regressasse!

Ah, como o meu amor por Albertine, cujo destino eu achava quase prever conforme o amor que tivera por Gilberte, desenvolvera-se em perfeito contraste com este último! A que ponto era-me impossível ficar sem vê-la! E como um ato, por mínimo que fosse, porém antes envolto na feliz atmosfera da presença de Albertine, era-me preciso, de cada vez, com novos esforços, com a mesma, recomeçar a aprendizagem da separação. Depois, a concorrência das outras vidas devolvia à sombra essa nova dor, e, durante esses dias, os primeiros da primavera, cheguei até, enquanto esperava que Saint-Loup visse a Sra. Bontemps, ao imaginar Veneza e belas mulheres desconhecidas, a passar alguns momentos de calma agradável. Logo que percebi isso, senti um terror de pânico. Este que eu acabara de desfrutar era a primeira aparição daquela grande força inteiramente, que ia lutar em mim contra a dor, contra o amor, e acabaria por triunfar sobre àquilo de que eu acabava de ter o ante o gosto; e de conhecer o presságio era, por instante apenas, o que mais tarde seria em mim um estado permanente, uma decisão em que eu não poderia mais sofrer por Albertine, em que já não a amaria. É o amor, que acabava de reconhecer o único inimigo pelo qual poderia ser derrotado. O esquecimento, pôs-se a tremer, como um leão que, na jaula onde o trancaram a vista de súbito da serpente píton que há de devorá-lo. 

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