volume II
À Sombra das Moças em Flor
Ao Redor da Sra. Swann
(d)
continuando...
Após ter lançado esta citação, o Sr. de Norpois parou para nos olhar e avaliar o efeito que produzira em nós. Foi grande o efeito, porque já era conhecido: substituíra naquele ano, entre os homens de grande valor, "Quem semeia ventos, colhe tempestades", o qual necessitava de repouso, pois não era tão vivaz e infatigável como: "Trabalhar para o Rei da Prússia". Pois a cultura dessas pessoas eminentes, era uma cultura alternativa e geralmente trienal. Criações desse tipo e com as quais o Sr. de Norpois se esmerava em abrir os artigos da Revista, não eram necessárias de modo algum para homens sólidos e bem informados. Mesmo desprovidos de ornamentos as emoções lhe aportavam; bastava que o Sr. de Norpois escrevesse em seu devido tempo – o que ele nunca deixava de fazer: "O gabinete de Saint-Jarnes não foi um dos últimos a sentir o perigo"; ou então "A emoção foi grande no Pont-aux-Chantres, esguia-se com inquietação a política egoísta, porém hábil, da monarquia bicéfala" - ou "Um grito de alarme partiu de Montecitório"; ou ainda "O jogo duplo que é bem próprio do Ballplatz". A tais expressões, o leitor profano reconheceria logo, e saudaria, o diplomata de carreira. Mas, o que fazia com que dissessem que ele era mais do que isso, que possuía uma cultura de emprego racional; de citações, cujo modelo perfeito ficava sendo o seguinte: ''Dê-me uma boa política e eu lhe darei boas finanças, como costumava dizer Louis." (Ainda não se havia importado do Oriente: "Entre dois adversários, a vitória será daquele, que sabe sofrer um quarto de hora a mais do que o outro.'' como dizem os japoneses.) Essa reputação de grande letrado, unida a um verdadeiro gênio de intriga, sob a máscara da indiferença, fizera com que o Sr. de Norpois entrasse para a Academia de Ciências Morais. Algumas pessoas chegaram a pensar que ficaria mal colocado na Academia Francesa, no dia em que, querendo dar a entender que só estreitando a aliança com a Rússia é que poderíamos chegar à Inglaterra, não hesitou em escrever: "Que o saibam bem na Quaid d'Orsay; que ensinem de agora em diante, em todos os livros de geografia, que são incompletos a tal respeito, que recusem implacavelmente o diploma de todo candidato que não souber dizer: Se todos os caminhos levam à Roma, em compensação o caminho que vai de Paris a Londres passa necessariamente por Petersburgo."
Após ter lançado esta citação, o Sr. de Norpois parou para nos olhar e avaliar o efeito que produzira em nós. Foi grande o efeito, porque já era conhecido: substituíra naquele ano, entre os homens de grande valor, "Quem semeia ventos, colhe tempestades", o qual necessitava de repouso, pois não era tão vivaz e infatigável como: "Trabalhar para o Rei da Prússia". Pois a cultura dessas pessoas eminentes, era uma cultura alternativa e geralmente trienal. Criações desse tipo e com as quais o Sr. de Norpois se esmerava em abrir os artigos da Revista, não eram necessárias de modo algum para homens sólidos e bem informados. Mesmo desprovidos de ornamentos as emoções lhe aportavam; bastava que o Sr. de Norpois escrevesse em seu devido tempo – o que ele nunca deixava de fazer: "O gabinete de Saint-Jarnes não foi um dos últimos a sentir o perigo"; ou então "A emoção foi grande no Pont-aux-Chantres, esguia-se com inquietação a política egoísta, porém hábil, da monarquia bicéfala" - ou "Um grito de alarme partiu de Montecitório"; ou ainda "O jogo duplo que é bem próprio do Ballplatz". A tais expressões, o leitor profano reconheceria logo, e saudaria, o diplomata de carreira. Mas, o que fazia com que dissessem que ele era mais do que isso, que possuía uma cultura de emprego racional; de citações, cujo modelo perfeito ficava sendo o seguinte: ''Dê-me uma boa política e eu lhe darei boas finanças, como costumava dizer Louis." (Ainda não se havia importado do Oriente: "Entre dois adversários, a vitória será daquele, que sabe sofrer um quarto de hora a mais do que o outro.'' como dizem os japoneses.) Essa reputação de grande letrado, unida a um verdadeiro gênio de intriga, sob a máscara da indiferença, fizera com que o Sr. de Norpois entrasse para a Academia de Ciências Morais. Algumas pessoas chegaram a pensar que ficaria mal colocado na Academia Francesa, no dia em que, querendo dar a entender que só estreitando a aliança com a Rússia é que poderíamos chegar à Inglaterra, não hesitou em escrever: "Que o saibam bem na Quaid d'Orsay; que ensinem de agora em diante, em todos os livros de geografia, que são incompletos a tal respeito, que recusem implacavelmente o diploma de todo candidato que não souber dizer: Se todos os caminhos levam à Roma, em compensação o caminho que vai de Paris a Londres passa necessariamente por Petersburgo."
- Em resumo - continuou o Sr. de Norpois dirigindo-se à meu pai - Vaugoubert aí obteve um sucesso que ultrapassa até o que ele próprio, com efeito, contava com um brinde correto (o que, depois das nuvens dos últimos anos, já era muito bom). Diversas pessoas que estavam no banquete me asseguraram que não se pode, lendo este brinde, dar-se cordas que produziu, pronunciado e detalhado às mil maravilhas pelo rei, que tem a arte de falar e que sublinhava de passagem todas as intenções, todas as expressões. A esse propósito, contaram-me um fato bem picante e que realça uma gentileza juvenil do rei Teodósio, que tantos corações cativa. Afirmaram que ao chegar nesse termo "afinidades" que, em suma, era a grande inovação do discurso, e que permanecerá por muito tempo nos comentários das chancelarias, Sua Majestade, prevendo a alegria do nosso embaixador, que ali faria o justo coroamento de seus esforços, pode-se dizer de seus sonhos, pois ia ganhar seu bastão de general; meio que se virou para Vaugoubert fixando aquele olhar tão sedutor dos Oettingen, destacou esta palavra tão bem "afinidades"; expressão que era um verdadeiro achado, num tom que todos sabiam ser empregado com conhecimento de causa. Parece que Vaugoubert, mal pôde dominar sua emoção, em certa medida, confesso que o com uma pessoa digna de todo o crédito, confiou-me até que o rei se apresentou à Vaugoubert depois do jantar, quando Sua Majestade formou círculo, e lhe disse à meia-voz: "Está contente com seu aluno, meu caro marquês?" É certo – analisou o Sr. de Norpois - que semelhante brinde fez mais do que vinte anos de espera para estreitar, entre os dois países, suas "afinidades", conforme a expressão pitoresca de Teodósio II. Não passa de uma palavra, se quiser, mas veja que destino findou, como toda a imprensa européia a repete, o interesse que ela desperta, o quanto rendeu sua novidade. Aliás, é bem do jeito do soberano. Não chegarei a dizer que todos os dias ele acha diamantes lapidados como esse. Mas, é muito raro alguém em seus discursos estudados, melhor ainda, no primeiro impulso da conversa, deixar sua marca - quase diria a sua assinatura, por uma palavra sem rodeios. Tanto mais que sou menos suspeito de parcialidade na matéria por ser inimigo de toda inovação desse tipo. Dezenove vezes em vinte elas são perigosas.
- Sim. - disse meu pai - pensei que o telegrama recente do imperador da Alemanha não teria sido do seu gosto.
O Sr. de Norpois levantou os olhos para o céu como quem diz: "Ah, aquilo!" E respondeu:
- Primeiro, é um ato de ingratidão. É mais que um crime, é um erro; de uma estupidez que eu qualificaria de colossal! Aliás, se ninguém dá o alarme, o homem que destituiu Bismarck é bem capaz de repudiar aos poucos toda a política bismarckiana, e daí seria o salto no abismo.
- E meu marido me disse, senhor, que o senhor o levaria talvez num desses verões à Espanha. Fico encantada por ele.
-Ah, sim, é um projeto muito atraente, do qual me alegro. Gostaria muito de fazer essa viagem com o senhor, meu caro. E a senhora, madame, já pensou em empregar suas férias?
-Talvez vá com meu filho à Balbec, não sei.
-Ah! Balbec é agradável. Estive lá faz alguns anos. Estão começando a construir ali umas vilas bem atraentes; acho que o local lhes agradará. Mas posso perguntar o que os fez escolher Balbec?
- Meu filho deseja muito ver certas igrejas da região, sobretudo a de Balbec. Eu temia um pouco as canseiras da viagem e principalmente da estrada, devido a sua saúde. Mas soube que terminaram de construir um excelente hotel, que lhe permitirá viver nas condições de conforto exigidas pelo seu estado.
- Ah, será preciso dar esta informação a uma certa pessoa minha amiga, que não é mulher de desdenhá-la.
-A igreja de Balbec é admirável, não é mesmo, senhor?- Perguntei, superando a tristeza de ter sabido que uma das atrações de Balbec eram suas vilas mortas.
- Não, ela não é de todo má, mas enfim não pode se comparar às verdadeiras catedrais entalhadas que são as catedrais de Reims, de Chartres e, na minha opinião, a pérola de todas, a Santa Capela de Paris.
- Mas a igreja de Balbec é em parte romana?
-De fato, ela é do estilo românico, que, por si mesmo, já é bastante frio e de maneira alguma deixa pressagiar a elegância, a fantasia dos arquitetos góticos que escavam a pedra como se fizessem renda. A igreja de Balbec merece uma visita quando lá nos encontramos, pois é bem curiosa; se num dia de chuva você não tiver o que fazer, poderia entrar nela, e lá veria o túmulo de Tourville.
- Estava ontem no banquete das Relações Exteriores? Eu não pude ir - disse meu pai
- Não. - respondeu o Sr. de Norpois com um sorriso - renunciei à ele em favor de um sarau bem diverso. Jantei na casa de uma senhora a quem talvez já tenham ouvido falar, a bela senhora Swann.
Minha mãe reprimiu um frêmito, pois, de uma sensibilidade a mais que a de meu pai, alarmava-se por ele com aquilo que só devia continuar um instante após. Os dessabores que a ele ocorreriam eram percebidos como as más notícias da França que são antes conhecidas no estrangeiro antes de chegar em nossa terra. Porém, curiosa de saber que tipo de pessoas os Swann receberam, ela indagou do Sr. de Norpois sobre as quais havia encontrado lá:
- Meu Deus...é uma casa aonde me parece que vão cavalheiros sós. Havia alguns homens casados, mas suas esposas nessa noite não tinham vindo - respondeu o embaixador com uma risada de bonacheirice e lançando ao redor olhares cuja doçura e discrição vem, exagerando habilmente sua malícia.
- Devo dizer - acrescentou - para ser perfeitamente justo, que havia mulheres, mas... pertencentes antes... como direi? ao mundo republicano que à sociedade dos Swann (ele pronunciava Svann). Quem sabe? Um dia ali pode ser um salão político ou literário. De resto, parece que estão contentes. Eu diria até que Swann o demonstra um pouquinho demais. Nomeava as pessoas da casa que ele e a mulher eram convidados para a semana seguinte, e de cuja presença, entretanto, não há motivos para se orgulhar, com uma falta de reservas, quase que de tato, que me deixou assombrado em um homem tão fino. Não fazia mais que repetir: "Não temos uma só noite livre",- como se se tratasse de uma coisa gloriosa, de um verdadeiro arrivista, o que ele todavia não é. Pois Swann tinha amigos e até amigas, e sem arriscar demais, nem querer ser indiscreto, creio que não todas, nem sequer o maior número delas, mas pelo menos uma grande dama, não seria talvez totalmente refratária à idéia de tratar com a Sra. Swann, caso em que, verossimilmente, mais de um Carneiro de Panurgo, a teria seguido. [Carneiro de Panúrgio. Alusão ao personagem Panúrgio, do romance Pantagruel, de Rabelais com Pantagruel e amigos de navio, Panúrgio lança ao mar um carneiro para provar a estupidez, em ato contínuo, o rebanho se atira ao mar atrás do primeiro. (N. do T)]. Mas parece que não houve, da parte de Swann, nenhuma insinuação nesse sentido. Como? Mais um pudim à Messelrode? A cura em Carlsbad talvez seja suficiente para me refazer de um festim de Lúculo como este. Talvez Swann se deu conta que havia resistências demais para vencer. O casamento não agradou, isto é não caiu muito bem. Falou-se da fortuna da mulher, o que é uma grande balela. Mas enfim, tudo não pareceu nada agradável. E depois Swann tem uma tia excessivamente rica e de admirável posição social, mulher de um homem que, financeiramente falando, é uma potência. E não só ela se recusou a receber a Sra. Swann, mas iniciou uma campanha em regra para que suas amigas e conhecidas fizessem outro tanto. Não quero dizer com isso que algum parisiense da boa sociedade haja faltado com o respeito à Sra. Swann. Não, cem vezes não! Aliás, o marido é pessoa de erguer a luva. Em todo caso, há uma coisa curiosa: é ver como Swann, que conhece tanta gente e da mais escolhida sociedade, mostra uma solicitude para com uma sociedade da qual o menos que se pode dizer é que é bastante mista. Eu, que o conheci outrora, confesso que senti tanta surpresa, como divertimento, ao ver um homem tão bem-educado, tão na moda nos grupos mais seletos, agradecer com efusão ao chefe de gabinete do Ministro dos Correios por ter vindo à casa deles e perguntar-lhe se a Sra. Swann poderia tomar a liberdade de ir visitar sua esposa. E contudo deve sentir-se deslocado; evidentemente, já não se trata da mesma sociedade. Entretanto, não creio que se sinta infeliz. É verdade que ocorreram, nos anos que precederam o casamento, infames manobras de chantagem por parte da mulher; ela privava Swann de ver sua filha, toda vez que ele lhe recusava algo. O pobre Swann, tão ingênuo quanto refinado, julgava sempre que o rapto da filha era uma coincidência e não queria enxergar a verdade. Além disso, ela lhe fazia cenas tão constantes que a gente pensava que, no dia em que alcançasse seus objetivos e se tornasse esposa de Swann, nada a deteria mais; e a vida de ambos seria um inferno. Pois bem, foi o contrário o que aconteceu. Graceja-se muito sobre a forma como Swann fala da mulher, chega-se a troçar abertamente dele. Certamente não pediriam que, mais ou menos consciente de o ser (vocês sabem a frase de Moliere), ele o fosse proclamar urbi et orbi; nada impede que o achem exagerado quando diz que sua mulher é uma excelente esposa. Ora, isto não é tão falso como julgam. À sua maneira, que não é aquele de todos os maridos prefeririam, mas enfim, cá entre nós, parece-me difícil que Swann, que a conhecia há muito tempo e está longe de ser um tolo, não soubesse com quem estava lidando; é inegável que ela parece sentir afeição por ele. Não digo que ela não seja volúvel e o próprio Swann não se importa em sêlo, avaliado por boas e más línguas que seguem seu caminho, como bem podem imaginar. Mas é pelo que Swann fez por ela e, contrariamente aos temores que todos sentiam, transformou-se numa doçura de anjo. Essa mudança talvez não fosse tão extraordinária como o achava o Sr. Swann de Odette; não acreditara que Swann terminasse por desposá-la; todas as vezes que lhe anunciava, tendenciosamente, que um homem distinto acabava de se casar com sua amante, vira-o manter um silêncio glacial e, quando muito, se ela falava diretamente, perguntando:
"Então, não achas que é muito bom, que é ótimo o que ele fez por uma mulher que lhe dedicou sua juventude?" ele contestava secamente:
"Mas eu não digo que seja mau, cada qual age como quiser." Ela não estava longe de crer que, como lhe dizia Swann nesses momentos ele a abandonaria de uma vez por todas, pois ouvira há pouco de uma escultora:
"Pode-se esperar tudo dos homens, eles são tão patifes!", e, assustada diante dessa máxima pessimista, que apropriara-se dela, repetia-a a qualquer um com ar desanimado que parecia dizer:
"Afinal, não seria nada impossível, é esta minha oportunidade." E, conseqüentemente, perdera toda validade a máxima, que até então havia guiado Odette na vida:
"Pode-se fazer tudo com os homens que amam, eles são tão imbecis", e que se expressava em seu rosto pelo movimento dos olhos que acompanhara frases tais como:
"Não tenham receio, que ele não há de quebrar nada." Esperando, Odette sofria ao pensar o que uma de suas amigas; casada com um homem com quem estivera menos tempo do que Swann com ela mesma; que não tinha filhos, e era relativamente bem considerada agora; para os bailes do Élysée, o que poderia pensar da conduta de Swann. Um consultor mais profundo do que o era o Sr. de Norpois, sem dúvida teria podido diagnosticar, fora o sentimento de humilhação e vergonha que havia amargurado Odette; que o caráter infernal que ela exibia não lhe era inerente, não era um mal incurável; sem dúvida teria facilmente previsto o que aconteceria, a saber: que um novo regime matrimonial, faria cessar com uma rapidez quase mágica, tais incidentes cotidianos; porém, de modo algum orgânico. Quase todos se espantavam de semelhante casamento, e isto é também espantoso. Claro que poucos compreendem o caráter puramente subjetivo do fenômeno que é o amor; uma espécie de criação, que faz uma pessoa suplementar distinta da que leva o mesmo nome no mundo e que formamos com elementos tirados do próprio interior. Há também poucas pessoas que possam considerar naturais, as proporções que acaba por adquirir para nós, uma criatura que não é a mesma que elas vêem. No entanto, parece que, no que diz respeito à Odette; embora jamais tivessem compreendido inteiramente sua inteligência; pelo menos sabia os títulos e os pormenores de seu trabalho, a ponto de Vermeer lhe ser tão familiar como o nome de sua costureira. Para Swann, eram profundos aqueles traços de caráter, os quais o resto da sociedade ignora, ou ridiculariza; dos quais somente uma amante, ou uma irmã, possuem a imagem se é amada; nos afeiçoamos de tal modo à essas características, mesmo àquelas que desejaríamos corrigir, se as velhas ligações possuem algo da doçura, das afeições de família, é porque uma mulher acaba por se acostumar de forma indulgente e amigavelmente trocista, semelhante ao hábito que bem nos vêem nossos pais. Os laços que nos unem a um ser se santificam quando ele se põe no mesmo ponto de vista nosso, para julgar nossos defeitos. E entre esses traços particulares, havia também os que tocavam tanto à inteligência, como ao caráter de Swann; que todavia, em virtude das raízes que, apesar de tudo, tinham criado nele, Odette discernia com mais facilidade. Ela se queixava que, quando Swann estava escrevendo, quando publicava seus ensaios, tais traços não se reconheciam em seus escritos, tanto como nas cartas ou na conversação, onde eram abundantes. Aconselhava-o a lhes dar mais espaço em seus trabalhos. Odette os desejava, pois era o que preferia nele, mas como os preferia por serem os mais legitimamente dele, talvez não estivesse errada em desejar que os encontrassem no que ele escrevia. Talvez pensasse igualmente que mais vivas obras, trazendo-lhe por fim o sucesso, lhe permitiriam organizar o que, na casa dos Verdurin, aprendera a colocar acima de tudo: um salão.
Dentre as pessoas que achavam ridículo aquele casamento, pessoas que perguntariam, no próprio caso: "Que pensará o Sr. de Guermantes, que dirá Bréauté, quando me casar com a Srta. de Montmorency?"; dentre as pessoas que cultivavam essa espécie de ideal social, teria figurado, vinte anos antes, o próprio Swann; aquele Swann que fizera tantos esforços para ser admitido no Jockey e contara, naquele tempo, fazer um casamento deslumbrante; que consolidando sua situação, teria feito dele um dos homens mais requisitados de Paris. Apenas, as imagens que um tal casamento por interesse representa ao interessado, como todas as imagens, precisam, para não desaparecer e se apagar de todo, ser alimentadas de fora. Digamos que o seu sonho mais ardente seja humilhar o homem que o ofendeu. Porém, se você nunca mais ouve falar nele, caso ele tenha se mudado para outras terras, seu inimigo acabará por não ter mais nenhuma importância para você. Se perdermos de vista, durante vinte anos, todas as pessoas por causa que gostaríamos de entrar para o Jockey, ou para o Instituto; a perspectiva de sermos membros de uma dessas associações já não nos tentará de modo algum. Ora, tanto como um retiro, uma doença, uma conversão religiosa, uma ligação prolongada substituem as imagens antigas por outras novas.
Não houve, da parte de Swann, quando desposou Odette, renúncia às ambições mundanas, pois de há muito Odette o desprendera dessas ambições, no sentido espiritual da palavra. Aliás, se não fosse desse modo, maior seria o mérito. Geralmente os casamentos entre amantes são os mais estimáveis de todos (e não se pode, com efeito, chamar de infame um casamento por dinheiro, não havendo por exemplo de um casal em que a mulher, ou o marido se tenham vendido, ao qual não acabem por recepcionar, nem que seja devido à tradição e com fundamento em tantos casos semelhantes, para usar de dois pesos e duas medidas), porque implicam o sacrifício de uma ação mais ou menos elogiosa a uma doçura puramente íntima. Por outro lado, senão como artista, como corrompido. Swann teria, de qualquer modo, experimentado uma certa volúpia em ligar a si próprio, um desses cruzamentos de diferentes espécies como os praticam os seguidores de Mendel; ou como relata a mitologia, um raça diferente, arquiduquesa ou cocote, em contrair uma aliança régia; ou em fazer um mau casamento. Só havia uma pessoa na sociedade com quem preocupava cada vez que pensava no casamento possível com Odette, e era, por puro esnobismo, a duquesa de Guermantes. Odette, ao contrário, não se preocupava em ficar pensando nessas pessoas, mas naquelas situadas imediatamente em escala superior à sua, em vez de se incomodar com um tão vago empíreo. Swann, quase em todas as suas horas de devaneio, via Odette como sua esposa; imaginava invariavelmente, o momento em que a levaria, e sobretudo sua filha, à casa da princesa de Laumes, que há pouco se tornara duquesa de Guermantes pela morte de sua sogra. Não tinha desejo de apresentá-la em nenhum outro lugar, mas, se emocionava inventando; pronunciando até as palavras, tudo aquilo que a duquesa diria à Odette e esta à Sra. de Guermantes; a ternura que esta testemunharia mimando-a, fazendo-o orgulhoso da filha. Representava para si mesmo a cena de apresentação, com a mesma precisão no detalhe imaginário das pessoas calculando, caso ganhassem, um prêmio cuja cifra fixam arbitrariamente. Na medida em que uma imagem ilusória acompanha uma de nossas resoluções motivando-nos; pode-se dizer que, Swann se casou com Odette, para apresentá-la e à sua filha Gilberte, sem que houvesse obstáculos; e que ninguém jamais o soubesse, à duquesa de Guermantes. Iremos ver como esta única ambição, que havia desejado para sua esposa e para sua filha, foi justamente aquela cuja realização seria proibida; por uma negativa tão absoluta que Swann morreu sem que a duquesa alguma vez as conhecesse. Veremos também que, pelo contrário a duquesa de Guermantes se ligou a Odette e Gilberte depois da morte de Swann. Talvez teria sido mais sábio à Swann, se não tivesse atribuído tanta importância a tal fato, que valia tão pouco; não fazendo a mínima idéia que tão sombria no futuro - admitindo que a reunião sonhada poderia ocorrer quando ele já não estive presente para desfrutá-la. O trabalho de causalidade que acaba por produzir quase sempre os efeitos possíveis, e, por conseguinte, também aqueles que a gente julga viáveis; esse trabalho é às vezes moroso, e se torna ainda mais lento nosso desejo - que, buscando apressá-lo, o entrava -, devido à nossa insistência e não chega a seu termo senão quando deixamos de desejar, e às vezes; viver. Por acaso Swann não o sabia por experiência própria? Acaso não houve em sua vida - como uma prefiguração do que devia acontecer após a sua morte – uma felicidade póstuma esse casamento com aquela Odette, que ele amara tanto - embora ela não tivesse lhe agradado à primeira vista - e que ele quando já não a amava, quando já era morta a imagem daquele ser; que ele tinha daquele ser que Swann, tanto desejara e se desesperara de viver a vida toda com Odette?
continua na página 21...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - d)
Volume 3Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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