quarta-feira, 28 de junho de 2023

Memórias do Cárcere - Viagens 11

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos



Volume I 

 Editora Record 

PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 


11


UM dia capitão Lobo entrou carrancudo e falou-me: 

.– O senhor ontem cometeu uma falta muito grave. Uma falta grave, capitão, respondi aturdido. Não entendo. 

– Muito grave. Na sua chegada eu lhe disse que usasse o banheiro dos oficiais. O senhor ontem tomou banho no banheiro dos sargentos. 


Era verdade, mas achei graça na repreensão e sosseguei: – Ora, capitão! Foi essa a falta grave? Julguei que se tratasse de coisa séria, assustei-me. 

O oficial acolheu minha resposta com indignação muda, repetiu depois o que havia dito, enérgico. Tentei justificar-me – Encontrei um banheiro ocupado e entrei noutro.

– O senhor não podia fazer isso. 

Esforcei-me por manifestar que, no meu parecer, culpa seria utilizar um banheiro de categoria superior ao permitido a mim, um banheiro de generais, por exemplo; contentando me com um de sargentos, não praticava nenhum ato censurável. Mas o meu parecer nada valia: responsabilizavam-me por uma infração, desenvolviam-na, e era inútil querer defender-me. Quanto mais me desculpava mais o capitão se arreliava evidentemente a minha resistência ofendia as normas Em certo ponto, finda a paciência, bradou: 

– Se o senhor fosse militar, seria punido e compreenderia o que fez. 

.– É possível.

– Dificuldade meter qualquer coisa na cabeça desses paisanos, rosnou. 

.Em seguida propôs: 

.– Se não está satisfeito aqui, posso arranjar-lhe transferência para uma prisão de sargentos. 

– Obrigado, não se incomode. 

Surpreendente nesse diálogo foi que de modo nenhum me susceptibilizei. Em geral me envergonhava por objeções vagas, qualquer dito que revelasse a mais leve censura me tocava melindres bestas. Talvez isso fosse consequência de brutalidades e castigos suportados na infância: encabulava sem motivo e andava a procurar intenções ocultas em gestos e palavras. O certo é que em tempo de adulto não me lembrava de ter ouvido semelhante linguagem. Pois o que ela me produziu foi um desejo enorme de rir. Achava-me em situação realmente singular, advertido como uma criança, e isto não me vexava, talvez por julgar aquilo estapafúrdio, talvez por estimar a franqueza nua. Se me falassem lá fora de tal maneira, provavelmente me zangaria, mas não sentiria o acanhamento que avermelha o rosto e esmorece o coração. De fato o que mais nos choca não é a sinceridade, às vezes impertinente: é a arranhadela feita com mão de gato, a perfídia embrulhada num sorriso, a faca de dois gumes, alfinetes espalhados numa conversa. Agra não podia molestar-me.

Finda a surpresa, contida a explosão de riso motivada pela extravagância aparente, aceitei a reprimenda, considerei que devia existir uma razão para ela. Haveria bazófia nisso, vaidade por me alojarem perto da gente de cima? Creio que não: tinha ido misturar-me involuntariamente aos outros, arriscando-me a degradar-me. Essa degradação era convencional. De nenhum modo me supunha diminuído na companhia de sargentos. Numa prisão deles, a alguns passos de distância, agasalhavam-se um médico e um advogado – e seria tolice imaginar-me com mais direitos que esses_ homens. Ofereciam-me na verdade uma cela confortável, mas isto era casual e, para ser franco, nunca desejei conforto: suponho até que ele nos prejudica. Possivelmente eu devia essa vantagem, esse acidente, à influência de alguém desejoso de beneficiar-me: capitão Lobo, neste caso: o despropósito dele era uma indicação. E também era presumível que, deixando-me na superfície algum tempo, quisessem dar-me um súbito mergulho nas profundidades, submeter-me a variações dolorosas. Mais tarde esta segunda hipótese pareceu confirmar-se, embora eu hesite em afirmar que na modificação operada tenha havido um desígnio. Provavelmente não houve: a nossa presunção é que nos leva a enxergar nos casos intuitos referentes a nós. Numa perseguição generalizada, éramos insignificâncias, miudezas supressas do organismo social, e podíamos ser arrastados para cima e para baixo, sem que isto representasse inconveniência. Informações vagas e distantes, aleivosias, o rancor de um inimigo, deturpações de fatos de repente nos causariam choques e mudanças. Dependíamos disso. E também dependíamos do humor dos nossos carcereiros. Aquele que me falava, irritado, era um homem justo:

– O senhor não podia fazer isso. Dificuldade meter qualquer coisa na cabeça desses paisanos. 

Evidentemente eu me comportara mal: introduzira-me num lugar reservado a outros indivíduos, comprometera a ordem. Inútil argumentar que me reduzia por gosto: aquilo não me pertencia. E estava acabado – era como se eu tivesse agarrado o quepe ou o cinturão de um sargento. Com certeza foram essas considerações que me induziram a suportar resignado a objurgatória. Realmente ela viria de qualquer modo: a minha resignação tinha pouco valor, mas evitou-me constrangimento, idéias de revolta, ingratidão. Um homem justo.

– Se o senhor fosse militar, seria punido e compreenderia o que fez.  

Esta frase, porém, se referia à justiça da tarimba, que prende um sujeito para convencê-lo.

Garantiria eu que, fora daí, capitão Lobo era um homem justo? Não garantiria. Tanto quanto posso julgar, a justiça dele se assemelhava à de Benon Maia Gomes, à do bacharel José da Rocha, deputado e usineiro. Sem investigação, o primeiro desses cavalheiros me reprovara os intentos desordeiros; o segundo se afastara resmungando o fastio: –“Comunista!” Desconhecendo-me o interior, capitão Lobo dissera: –“Não concordo com as suas ideias, mas respeito-as.” E mandara buscar em casa, para nós, roupa de cama e toalhas. Porque se capacitava ele de que eu merecia tanta condescendência? Juízo precipitado, como o do agrônomo e o do bacharel, embora as atitudes se dessemelhassem. Se eu fosse um elemento pernicioso, haveria grande erro naquela generosidade Na semana anterior ali se ignorava completamente a minha existência. Quem dizia que eu não me dedicava então a perigosos exercícios conspirativos? Nem eu próprio dizia isso: guardava silêncio, evitava defender-me de acusações imprecisas. Fora do regulamento, pois capitão Lobo se desviava da justiça. E era isso talvez que me prendia a ele. me fazia baixar a cabeça, sem me considerar humilhado, ouvindo-lhe os propósitos rabugentos. Desejo de ir além das aparências, tentar descobrir nas pessoas qualquer coisa imperceptível aos sentidos comuns. Compreensão de que as diferenças não constituem razão para nos afastarmos, nos odiarmos. Certeza de que não estamos certos, aptidão para enxergarmos pedaços de verdades nos absurdos mais claros. Necessidade de compreender, e se isto é impossível, a pura aceitação do pensamento alheio.   

– Não concordo com as suas ideias, mas respeito-as. Irreflexão discordar do que não foi expresso? Em todo o caso tolerância, uma admirável tolerância imprudente que, sem exame, tudo chega a admitir. Era o que me levava a admirar capitão Lobo. Isso e a suspeita de me achar diante de uma criatura singular. Observava-lhe a máscara expressiva, esforçava-me também por ultrapassá-la, divisar lá no íntimo embriões de atos generosos. 

continua página 50....
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

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