Simone de Beauvoir
SlMONE DE BEAUVOIR
No seu desamparo infantil, a menina sentiu o contraste entre o aparato da festa familiar e o mistério animal do grande leito fechado. O lado cômico e licencioso do casamento quase não se descobre nas civilizações que não individualizam a mulher: no Oriente, na Grécia, em Roma; a função animal aí se apresenta tão geral quanto os ritos sociais; mas em nossa época, no Ocidente, homens e mulheres são tomados como indivíduos e os convidados às núpcias escarnecem porque é este homem e é esta mulher que vão consumar, numa experiência bem singular, o ato que se mascara sob os ritos, os discursos e as flores. Há sem dúvida também um contraste macabro entre a pompa dos grandes enterros e a podridão do túmulo. Mas o morto não desperta quando o enterram, ao passo que a jovem sente uma terrível surpresa quando descobre a singularidade e a contingência da experiência real que a faixa tricolor do prefeito e os órgãos da igreja lhe prometiam. Não é somente nas comédias que se veem mulheres voltarem em lágrimas para junto de suas mães na noite de núpcias; os livros de psiquiatria abundam em narrativas dessa espécie; contaram-me também pessoalmente vários casos: tratava-se de moças bem educadas demais, que não tinham recebido nenhuma educação sexual e que a brusca descoberta do erotismo transtornava. No século passado, Mme Adam imaginava que era de seu dever casar com um homem que a beijara na boca, pois pensava que era isso a forma acabada da união sexual. Mais recentemente, em Estados Nervosos de Angústia, Stekel conta, a propósito de uma jovem mulher casada: "Quando, durante a viagem de núpcias, o marido a deflorou, ela o tomou por louco e não ousou dizer palavra pensando estar lidando com um alienado". Houve mesmo uma moça tão inocente que desposou uma invertida e durante muito tempo viveu com o pseudomarido sem desconfiar de que não estava na companhia de um homem.
Se no dia de suas núpcias, ao entrar em casa, você enfiar sua mulher num poço durante a noite, ela ficará estonteada. Por mais que tenha tido uma vaga inquietude...
Engraçado, dirá ela, é então isso o casamento? Eis por que se queria que a prática fosse secreta. Eu me deixei pegar nessa armadilha.
Mas vexada com isso, ela não diz nada. Eis por que você poderá mergulhá-la no poço longamente e várias vezes, sem provocar nenhum escândalo na vizinhança.
Este fragmento de um poema de Michaux, intitulado Nuits de Noces (Cf. La Nuit remue) exprime bastante exatamente a situação. Hoje, muitas jovens são mais sabidas; mas seu consentimento permanece abstrato; e seu defloramento conserva o caráter de uma violação. "Há certamente maior número de violações cometidas no casamento que fora do casamento", diz Havelock Ellis. Em sua obra Monatsschrift für Geburlshilfe, t. IX, Neugebauer reuniu mais de cento e cinquenta casos de ferimentos infligidos a mulheres pelo pênis durante o coito; as causas eram a brutalidade, a embriaguez, uma posição errada, uma desproporção dos órgãos. Na Inglaterra, conta Havelock Ellis, uma senhora indagou de seis mulheres casadas da classe média e inteligentes qual fora sua reação na noite de núpcias: para todas o coito acontecera como um choque; duas delas ignoravam tudo, as outras pensavam saber mas nem por isso se sentiram menos magoadas psicologicamente. Adler também insiste na importância psíquica do ato de defloramento.
Esse primeiro momento em que o homem adquire todos os direitos decide muitas vezes toda a vida. O marido sem experiência e superexcitado pode semear então o germe da insensibilidade feminina e, com sua inabilidade e sua brutalidade contínuas, transformá-la em anestesia permanente.
Vimos no capítulo precedente muitos exemplos dessas iniciações infelizes. Eis mais um caso relatado por Stekel:
Mme H. N., educada muito pudicamente, tremia à ideia da noite de núpcias. O marido despiu-a quase com violência, sem lhe permitir que se deitasse. Tirou ele próprio a roupa, pedindo-lhe que o olhasse nu e admirasse o pênis. Ela escondeu o rosto nas mãos. Então ele exclamou: "Por que não ficaste em tua casa, imbecil!" Em seguida, jogou-a na cama e deflorou-a brutalmente. Naturalmente ela se tornou fria para sempre.
Examinamos, com efeito, todas as resistências que a virgem precisa vencer para realizar seu destino sexual: sua iniciação reclama todo um "trabalho" ao mesmo tempo fisiológico e psíquico. E estúpido e bárbaro querer resumi-la em uma noite; é absurdo transformar em um dever a operação tão difícil do primeiro coito. A mulher sente-se tanto mais aterrorizada quanto a estranha operação a que é submetida é sagrada, quando sociedade, religião, família a entregarem solenemente ao esposo como a um senhor; demais, o ato parece-lhe empenhar todo o seu futuro, tendo ainda o casamento um caráter definitivo. É então que ela se sente revelada no absoluto: esse homem a quem ela está para sempre votada encarna a seus olhos todo o Homem; e ele revela-se também a ela sob uma figura desconhecida, que é de terrível importância, porquanto será o companheiro para toda sua vida. Entretanto, o próprio homem sente angústia pela imposição que pesa sobre si; tem suas próprias dificuldades, seus complexos que o tornam tímido e inábil ou, ao contrário, brutal; numerosos homens mostram-se impotentes na noite de núpcias por causa da própria solenidade do casamento. Janet escreve em Les Obsessions et la Psychasthênié:
Quem não conhece esses recém-casados envergonhados de sua sorte, que não podem conseguir realizar o ato conjugal e são então perseguidos por uma obsessão de vergonha e desespero? Assistimos no ano passado a uma cena tragicômica assaz curiosa, quando um sogro carrancudo arrastou até a Salpetrière seu genro humilde e resignado: o sogro solicitava um atestado médico que lhe permitisse pedir o divórcio. O pobre rapaz explicava que antes fora capaz, mas que desde o casamento um sentimento de embaraço e vergonha tornara tudo impossível.
Um entusiasmo exagerado assusta a virgem, um respeito excessivo humilha-a; há mulheres que odeiam para sempre o homem que auferiu egoistamente seu prazer à custa do seu sofrimento; mas experimentam um rancor eterno contra quem pareceu desdenhá-las [1] e muitas vezes contra quem não tentou deflorá-las durante a primeira noite de núpcias, ou foi incapaz de fazê-lo. H. Deutsch observa (Cf. Psychology of Women) que certos maridos tímidos ou inábeis pedem ao médico que deflore a mulher mediante uma operação cirúrgica, a pretexto de que ela tem uma conformação anormal; a razão alegada não é geralmente válida. As mulheres, diz ela, votam para sempre desprezo e rancor ao marido que foi incapaz de penetrá-las normalmente. Uma das observações de Freud mostra [2] que a impotência do esposo pode engendrar um traumatismo na mulher:
[1] Ver as observações de Stekel citadas no capítulo precedente.
[2] Resumimo-la segundo Stekel: A Mulher Fria.
Uma doente tinha o hábito de correr de um quarto para outro no meio do qual se achava uma mesa. Arranjava então a toalha de certa maneira e chamava a criada que devia aproximar-se da mesa; e mandava-a embora... Quando tentou explicar essa obsessão, lembrou-se de que a toalha tinha uma mancha feia e que ela a arranjava de maneira a que a mancha saltasse aos olhos da empregada...
Era a reprodução da noite de núpcias em que o marido não se mostrara viril. Acorrera várias vezes do quarto dele ao quarto dela para tentar novamente. Com vergonha da criada que devia fazer a cama, derrubara tinta vermelha no lençol para que acreditasse que havia sangue.
A "noite de núpcias" transforma a experiência erótica numa prova, em que o receio de não saber vencer angustia a todos, afundados por demais em seus próprios problemas para pensar generosamente no outro; ela comporta uma solenidade que a torna temível; e não é espantoso que muitas vezes destine a mulher à frieza. O problema difícil que se põe ante o esposo é o seguinte: se "acaricia demasiado lascivamente a mulher", ela pode escandalizar-se e sentir-se ultrajada; parece que um tal receio paralisa os maridos norte-americanos, entre outros, principalmente nos casais que receberam uma educação universitária, observa o relatório Kinsey, porque as mulheres, mais conscientes de si mesmas, são mais profundamente inibidas. Entretanto, se o homem a "respeita", malogra em despertar a sensualidade dela. Esse dilema é criado pela ambiguidade da atitude feminina: a jovem quer o prazer e o recusa ao mesmo tempo; ela exige uma discrição pela qual sofre. Exceto no caso de uma felicidade excepcional, o marido apresentar-se-á como libertino ou inábil. Não é, portanto, de espantar que os "deveres conjugais" sejam muitas vezes para a mulher um encargo repugnante.
A submissão a um senhor que lhe desagrada é para ela um suplício, diz Diderot (cf. Sur les Femmes). Vi uma mulher honesta tremer de horror à aproximação do esposo; vi-a entrar no banho e não se acreditar bastante lavada da mácula do dever. Essa espécie de repugnância é-nos quase desconhecida. Nosso órgão é mais indulgente. Muitas mulheres morrerão sem ter experimentado a extrema volúpia. Essa sensação que eu encararia de bom grado como uma epilepsia passageira é rara para elas e a nós não deixa nunca de acontecer quando a queremos. A felicidade soberana foge-lhes entre os braços do homem que adoram. Nós a encontramos em qualquer mulher complacente ainda que nos desagrade. Menos senhoras de seus sentidos do que nós, a recompensa é menos rápida e menos segura para elas. Cem vezes sua espera é vã.
Muitas mulheres com efeito tornam-se mães e avós sem nunca ter conhecido o prazer, nem mesmo uma perturbação; tentam escapar da "mácula do dever" mediante atestados médicos ou outros pretextos. O relatório Kinsey revela que na América do Norte muitas esposas "declaram considerar sua frequência de coito já elevada e desejariam que seus maridos não quisessem relações tão frequentes. Muito poucas mulheres desejam coitos mais frequentes". Vimos entretanto que as possibilidades eróticas da mulher são quase infinitas. Esta contradição demonstra bem que o casamento, pretendendo regular o erotismo feminino, na realidade o assassina.
Em Thérèse Desqueyroux, Mauriac descreve as reações de uma jovem mulher "razoavelmente casada" em face do casamento em geral e dos deveres conjugais em particular.
Talvez ela procurasse no casamento menos um domínio, uma posse do que um refúgio. Não fora um pânico que a precipitara nele? Mocinha prática, mocinha doméstica, ansiava por ocupar seu lugar definitivo; queria garantir-se contra um perigo que não conhecia bem. Nunca parecera tão sensata como na época do noivado; incrustava-se num bloco familiar, "arrumava-se", entrava numa ordem. Salvava-se. No sufocante dia das núpcias, na estreita igreja de Saint-Clair onde a parolice das mulheres dominava a música do órgão ofegante e onde os odores triunfavam sobre o incenso, nesse dia foi que Thérèse se sentiu perdida. Entrara como uma sonâmbula na jaula e, ao ruído pesado da porta que se fechava, a pobre menina acordava. Nada mudara, mas ela tinha o sentimento de não mais poder perder-se sozinha. Ia ocultar-se no mais espesso da família como o fogo de uma brasa dormida.
... Na tarde daquele casamento meio camponês e meio burguês, alguns grupos em que brilhavam os vestidos das moças forçaram o auto dos casados a diminuir a marcha, aclamavam-nos . . . Thérèse, pensado na noite que veio depois, murmura: "Foi horrível, mas corrige: "Não. . . nem tanto". Durante a viagem aos lagos italianos tinha sofrido muito? Não, não, topava o jogo: não se trair. . . Thérèse soube dobrar o corpo a essas dissimulações e nisso experimentava um prazer amargo. Nesse mundo desconhecido de sensações em que um homem a obrigava a entrar, sua imaginação ajudava-a a conceber que talvez houvesse nele, para ela também, uma possível felicidade —- mas que felicidade? Como diante de uma paisagem escondida na chuva imaginamos o que seria com sol, Thérèse descobria a volúpia. Bernard, aquele rapaz de olhar vago.. . que homem fácil de enganar! Estava encerrado em seu prazer como os porquinhos bonitinhos que a gente acha divertido olhar através das grades quando roncam de prazer diante de uma gamela: "Eu era a gamela", pensou Thérèse... Onde aprendera ele a classificar tudo o que dizia respeito à carne, a distinguir as carícias de homem decente das do sátiro? Nunca uma hesitação. . . Pobre Bernard, não era pior do que outros! Mas o desejo transforma o ser que se aproxima de nós em um monstro que com ele não tem semelhança. "Fazia-me de morta como se esse louco, esse epiléptico houvesse querido estrangular-me ao menor gesto 'meu."
continua página 189...
O Segundo Sexo - 01. Fatos e Mitos: que é uma mulher?
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (1)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (1)
As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
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