terça-feira, 20 de junho de 2023

A Montanha Mágica - Uma fêmea, naturalmente!

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo III


Uma fêmea, naturalmente!


Não se deu conta do tempo que passou nesse estado. Chegada a hora ressoou o gongo. Mas, como Hans Castorp sabia, isso não representava o chamado imediato à refeição. Era, apenas, o sinal para os hóspedes se aprontarem. Assim, permaneceu deitado até que o estrondo metálico se intensificasse e depois se afastasse pela segunda vez. Quando Joachim atravessou o quarto, para buscá-lo, Hans Castorp quis mudar de roupa. Joachim, entretanto, não permitiu. Detestava e desdenhava a falta de pontualidade. Como era possível progredir na vida e recuperar a saúde, para voltar ao serviço – perguntou –, aquele que se mostrava por demais relaxado até para observar o horário das refeições? Nesse ponto, indiscutivelmente, tinha razão, e Hans Castorp limitou-se a observar que não estava doente, rias apenas se sentia sumamente sonolento. A toda pressa lavou as mãos, e em seguida desceram ao salão, pela terceira vez nesse dia.

Os hóspedes vinham afluindo por ambas as entradas. Entravam também pelas portas do avarandado, que estavam abertas. Dentro de pouco tempo, todos se encontravam sentados em torno das sete mesas, como se nunca se tivessem levantado. Tal era, pelo menos, a impressão de Hans Castorp – impressão puramente fantástica e irracional, mas que seu cérebro enevoado não logrou rechaçar por alguns instantes, e na qual encontrou mesmo algum prazer; pois, no decorrer da refeição, tentou repetidamente evocá-la, obtendo cada vez uma ilusão perfeita. A velhota jovial estava novamente a dirigir uma torrente de palavras, no seu linguajar indistinto, ao Dr. Blumenkohl, sentado do lado oposto da mesa, e que a ouvia com um ar preocupado. Sua sobrinha macilenta comia, finalmente, outra coisa que não o iogurte: o espesso crême d'orge, que as criadas serviam em pratos; mas ela não foi além de umas poucas colheradas. A bela Marusja, para abafar o riso, apertava contra a boca o lencinho, que exalava perfume de flor de laranjeira. Miss Robinson lia as mesmas cartas escritas em letra redonda que já lera de manhã. Evidentemente não sabia nem uma única palavra de alemão e fazia até questão de não saber. Joachim, em atitude diferente, proferiu algumas frases inglesas sobre o tempo, às quais ela respondeu mastigando uns monossílabos, para logo recair no silêncio. Quanto à Srª. Stöhr, com a sua blusa de padrão escocês – submetera-se ela, essa manhã, ao exame médico, cujos pormenores relatou com afetação vulgar, descortinando os seus dentes de lebre. Lamentou-se de que em cima, à direita, houvesse ainda ruídos; além disso, tinha uma diminuição do murmúrio abaixo da axila esquerda; era preciso ficar mais cinco meses, conforme lhe dissera “o Velho”. Em sua linguagem ordinária, chamava o Dr. Behrens de “o Velho”. Mostrou-se, de resto, muito indignada pelo fato de não estar “o Velho” presente à mesa. Segundo a “toumée” queria dizer: segundo o turno era hoje a vez da sua mesa, ao passo que “o Velho” novamente se sentara à mesa próxima da esquerda (onde, com efeito, se via o Dr. Behrens juntando as manzorras diante do prato). Mas, claro continuou a Srª. Stöhr –, ali tinha o lugar a gorda Srª. Salomon, de Amsterdã, que todo santo dia se apresentava às refeições num vestido muito decotado, e tal aspecto parecia que era do agrado do “Velho”, se bem que ela, a Srª. Stöhr, não soubesse explicar por que razão, uma vez que nos exames médicos ele tinha ensejo para ver o quanto queria dessa dama. Mais tarde contou, cochichando exaltadamente, que à noite anterior, no avarandado de repouso localizado no sótão, alguém apagara a luz, e isso para fins que a Srª. Stöhr qualificava de “manifestos”. “O Velho” notara o incidente e praguejara de tal maneira, que todo o sanatório o ouvira. Mas naturalmente, mais uma vez não conseguira descobrir o culpado, e entanto não era preciso ter estudado na universidade para adivinhar que fora aquele capitão Miklosich, de Bucareste para quem nunca havia escuridão suficiente em companhia de senhoras; um homem sem a mínima cultura, embora usasse espartilho, e por natureza uma fera, sim, uma fera, repetiu a Srª. Stöhr numa voz afogada, enquanto o suor lhe perlava a testa e o lábio superior. Todo o mundo em Davos sabia das relações que existiam entre ele e a esposa do Cônsul-Geral Wurmbrand, de Viena, e não podiam se chamar de “secretas”. Não somente entrava o capitão, às vezes já de manhã cedo no quarto da mulher do cônsul–geral, quando esta se encontrava ainda deitada, e assistia então a sua toilette; mas, na terça-feira passada, saíra do quarto Wurmbrand às quatro da madrugada... A enfermeira do jovem Franz do número 19, aquele que tivera recentemente o pneumotórax fracassado... essa enfermeira, pois, apanhara o capitão em flagrante delito, de tanta vergonha enganara-se na porta, de modo que se vira, de repente, no quarto do Sr. Paravant, promotor público de Dortmund... Por fim, a Srª. Stöhr entregou-se a considerações pormenorizadas sobre um instituto “cósmico” da aldeia, onde ela costumava comprar seu dentifrício. Joachim cravava os olhos no prato.

A comida era tão boa quanto abundante. Incluindo a sopa, constava de nada menos que seis pratos. Depois do peixe vinha uma sólida iguaria de carne com verduras; a seguir, ainda outro prato de legumes; fritura de aves, uma sobremesa austríaca, em nada inferior à da véspera, por fim queijo e frutas. Cada prato era servido duas vezes, e não inutilmente. Em toda parte, nas sete mesas, viam-se pratos cheios; reinava naquela sala um apetite voraz, uma fome de lobo, que seria um prazer observar, se ela não produzisse, ao mesmo tempo, uma impressão de certo modo sinistra e até repulsiva. Não somente as pessoas bem-humoradas manifestavam esse apetite, aquelas que tagarelavam e se atiravam bolinhas de pão, mas também as taciturnas e sombrias, que, nos intervalos entre os diferentes pratos, apoiavam a cabeça nas mãos e fitavam o ar. Um adolescente, na mesa vizinha da esquerda, um colegial, segundo parecia, com mangas muito curtas e óculos redondos de grossas lentes, cortava em pedacinhos tudo quanto se amontoava no seu prato, transformando-o numa papa informe; depois se inclinava para a frente e devorava a comida, passando, de vez em vez, o guardanapo por baixo dos óculos, para enxugar não se sabia o quê, lágrimas ou gotas de suor.

Dois incidentes ocorreram durante o almoço, despertando a atenção de Hans Castorp, na medida em que seu estado permitia. Primeiramente, a porta envidraçada tornou a fechar-se com estrondo; foi quando comiam o peixe. Hans Castorp sobressaltou-se, irritado, e na sua cólera veemente disse de si para si que desta vez era necessário descobrir o culpado. Não se limitou a pensar nisso intimamente, mas também formou as palavras com os lábios, por tomar muito a sério o incidente. – É preciso encontrá-lo! – murmurou com uma indignação de tal modo exagerada, que tanto Miss Robinson como a professora o olharam, pasmadas. Com essas palavras voltou-se para a esquerda e arregalou os olhos injetados.

Era uma senhora que atravessava a sala, ou melhor, uma moça, de estatura média vestida de pulôver branco e saia a fantasia, com cabelos ruivos, que ela usava numa trança enrolada em volta da cabeça. Hans Castorp mal pôde entrever-lhe uma parte do perfil. Andava sem fazer ruído, o que formava um contraste estranho com a sua entrada barulhenta; caminhando de um modo singularmente furtivo, cabeça levemente avançada, dirigiu-se à mesa situada na extrema direita da sala, perpendicular ao avarandado, a mesa dos “russos distintos”. Uma das mãos achava-se enterrada no bolso do pulôver justo, ao passo que a outra, levantada à altura da nuca, segurava e arranjava o penteado. Hans Castorp olhou essa mão – entendia de mãos e lhes devotava atenção muito crítica, tendo o hábito de examinar, antes de mais nada, essa parte do corpo das pessoas com quem travava conhecimento. Aquela mão que ali arrumava os cabelos era propriamente a mão de uma senhora distinta; não oferecia aquele aspecto cuidado e refinado que costumavam ter as mãos das esfera social de Hans Castorp. Bastante larga, de dedos curtos, tinha algo de primitivo, de infantil, que lembrava a mão de uma colegial. As unhas, evidentemente, ignoravam a manicura; estavam aparadas de maneira tosca, também de colegial, e a pele, nas bordas, parecia tanto áspera, como a de quem tivesse o vício de roer as unhas. Hans Castorp notou tudo isso mais por adivinhação do que pelos olhos, pois a distância era demasiadamente grande. A moça retardatária cumprimentou com um aceno de cabeça os companheiros de mesa e sentou-se, dando as costas à sala, ao lado do Dr. Krokowski, que presidia àquela mesa. Depois, ainda segurando os cabelos com a mão, lançou por sobre o ombro um olhar ao público, o que permiti Hans Castorp vislumbrar-lhe as maçãs salientes e os olhos rasgados... Uma recordação vaga, ele não sabia de que nem de quem, assaltou-o leve e passageiramente ao ver esse rosto.

– Uma fêmea, naturalmente! – pensou Hans Castorp, e, mais uma vez lhe aconteceu articular as palavras, de modo que a professora, Srta. Engelhart, pôde ouvir o que dizia. A insignificante solteirona deu um sorriso indulgente.

– É Mme... Chauchat – disse. – Ela é tão relaxada! Uma mulher encantadora! – Ao mesmo tempo intensificou-se o rubor aveludado das faces da Srta. Engelhart, coisa que sempre se dava quando ela abria a boca.

– Francesa? – perguntou Hans Castorp com severidade.

– Não, russa – respondeu a Srta. Engelhart. – Pode ser que o marido seja francês ou de origem francesa. Não tenho certeza.

– É aquele? – indagou Hans Castorp, ainda irritado, apontando para um senhor de ombros caídos, que se achava à mesa dos “russos distintos”.

– Não, senhor – tornou a professora. – Ele nunca esteve aqui. Ninguém o conhece.

– Ela deveria fechar a porta com mais cuidado – disse Hans Castorp. -sempre bate com a porta. É uma falta de educação.

A professora aceitou a censura com um sorriso humilde, como se ela própria fosse a culpada, e assim deixaram de falar em Mme... Chauchat. O segundo incidente consistia na temporária ausência do Dr. Blumenkohl. Era só isso e nada mais. De repente, acentuou-se a expressão levemente enojada do seu rosto, enquanto mais preocupadamente do que em geral cravava o olhar no vazio. Depois, com um movimento discreto, afastou a cadeira e saiu. Foi quando a imensa vulgaridade da Srª. Stöhr se manifestou em toda a sua crueza. Provavelmente, a baixa satisfação que lhe causava o fato de estar menos enferma do que Blumenkohl, fez com que lhe acompanhasse a saída com comentários mesclados de compaixão e desdém.

– Coitado! – disse ela. – Está com os pés na cova. Outra vez precisa conversar com o Joãozinho Azul. – Arvorando uma fisionomia de obstinada tolice, proferiu, sem o menor asco, a denominação burlesca “Joãozinho Azul”. Ao ouvi-la, Hans Castorp experimentou ao mesmo tempo horror e vontade de rir. Pouco tempo depois, voltou o Dr. Blumenkohl, do mesmo modo discreto. Sentou-se novamente e prosseguiu na refeição. Também ele comia muito; servia-se duas vezes de cada prato, taciturno, com expressão tristonha e fechada.

Finalmente, o almoço chegou ao fim. Graças ao serviço atencioso – a anã movimentavase de maneira particularmente rápida –, durara apenas uma hora. Ofegante, sem saber como subira, Hans Castorp jazia mais uma vez na magnífica espreguiçadeira da sua sacada. O repouso após o almoço prolongava-se até a hora do chá, sendo considerado como o mais importante e por isso observado com todo o rigor. Entre as divisões de vidro opaco que o separavam, de um lado, de Joachim, e do casal russo, do outro, permanecia Hans Castorp estendido, modorrando, a respirar pela boca, enquanto o seu coração martelava. Quando fez uso do lenço, notou nele manchas de sangue, mas não teve forças para refletir a esse respeito, apesar de ser muito impressionável e se inclinar, por natureza, para preocupações hipocondríacas. Tornara a acender um Maria Mancini, e dessa vez fumou o charuto até o fim, fosse qual fosse o seu sabor. Entretanto, angustiado e cismarento, analisava as coisas estranhas que lhe aconteciam ali. Duas ou três vezes, seu peito foi sacudido por uma risada interior, ao relembrar a expressão abominável que empregara, na sua vulgaridade a Srª. Stöhr.


continua pág 051...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Uma fêmea, naturalmente!
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.


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