volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Primeiro
Capítulo Primeiro
Primeira Parte
continuando...
Aliás, no que se referia ao Sr. de Charlus, percebi mais adiante que, para ele, havia diversos tipos de conjunções, das quais algumas, por sua multiplicidade, sua instantaneidade apenas visível, e principalmente pela falta de contato entre os dois atores, lembravam ainda mais essas flores que são fecundadas num jardim pelo pólen de flor vizinha que elas nunca hão de tocar. Com efeito, havia certas visitas a quem lhe bastava fazer vir até sua casa, manter durante algumas sob o domínio de sua palavra, para que seu desejo, aceso em algum controle, se satisfizesse. Por simples palavras a conjunção se realizava; simplesmente como pode realizar-se entre os infusórios. Às vezes, ocorrera sem dúvida comigo na noite em que fora chamado por ele depois do jantar dos Guermantes, a saciedade viera graças a uma violenta reprimenda que o barão lançara em rosto do visitante, como certas flores em virtude de um impulso, borrifam a distância o inseto inconscientemente cúmplice e desavisado. O Sr. de Charlus, passando de dominado à dominador, sentia-se depurado de sua inquietação e, calmo, mandava de volta o visitante que logo deixara de lhe parecer desejável. Enfim, como a própria inversão decorre de que o invertido está demasiadamente próximo da mulher para poder ter relações proveitosas com ela, enquadra-se de modo numa lei mais importante que faz com que tantas flores hermafroditas permaneçam infecundas, ou seja, a da esterilidade da autofecundação a verdade que os invertidos que estão em busca de um macho contenta muitas vezes com um invertido tão efeminado quanto eles. Mas basta não pertencerem ao sexo feminino, do qual possuem um embrião de que podem se utilizar, o que acontece com tantas flores hermafroditas e até em determinados animais hermafroditas, como o caramujo, que não podem ser fecundados por si mesmos, mas podem sê-lo por outros hermafroditas-, daí que os invertidos, que gostam de se dizer originários do Antigo Osíris ou da idade de ouro da Grécia, remontariam ainda mais além àquelas e de ensaio em que não existiam nem as flores dióicas nem os animais unissexuados, àquele hermafroditismo inicial, de que parecem conservar vestígios alguns rudimentos de órgãos masculinos na anatomia da mulher e de órgãos femininos na anatomia do homem. Eu achava a mímica de Jupien e de Charlus, a princípio tão incompreensível para mim, tão curiosa como aqueles gestos tentadores dirigidos aos insetos, conforme as flores ditas compostas, alçando os semiflósculos de seus capítulo para serem vistas de mais longe, como certa flor heterostilada que oferece seus estames, recurvando-os para dar passagem aos insetos, ou que oferece uma ablução, e simplesmente, também, nos perfumes do néctar; no brilho das corolas, que naquele momento atraíam insetos a partir daquele dia; o Sr. de Charlus devia mudar a hora de suas visitas à Sra. de Villeparisis, não que não pudesse ver Jupien em outro lugar e cômodo, mas porque, tanto quanto para mim, o sol da tarde e as flores do arbusto estavam sem dúvida ligados à sua recordação. Além disso, se contentou em recomendar os Jupien à Sra. de Villeparisis, à duquesa de Guermantes, a toda uma brilhante freguesia que foi tanto mais assídua junto à jovem bordadeira, quanto as poucas damas que haviam resistido ou apenas demorado foram, da parte do barão, objeto de terríveis represálias, ou para que servissem de exemplo, ou porque houvessem despertado o seu furor e se revoltassem contra seus projetos de dominação. O barão tornou o negócio de Jupien cada vez mais lucrativo até torná-lo definitivamente como secretário e estabelecê-lo nas condições que mais tarde veremos.
- Ah, é um homem feliz, esse Jupien! - dizia Françoise, que tinha tendência a diminuir ou a exagerar as bondades alheias, conforme visassem a ela ou aos outros. Aliás, neste caso ela não precisava exagerar e nem sentia inveja, pois gostava sinceramente de Jupien.
- Ah, é um homem tão bom - o barão acrescentava -, tão distinto, tão devoto, tão correto! Se eu tivesse uma filha casadoura e pertencesse à sociedade rica, eu a daria ao barão de olhos fechados.
- Mas, Françoise - dizia docemente minha mãe -, essa sua filha teria muitos maridos. Lembre-se de que já a prometeu a Jupien.
- Ora essa! - respondia Françoise. - Esse é outro que faria bem feliz a uma mulher. Não importa que haja ricos e pobres, isto não quer dizer nada para a natureza. O barão e Jupien são exatamente o mesmo tipo de pessoas.
Além do mais, eu então exagerava muito, diante daquela primeira revelação, o caráter eletivo de uma conjunção tão selecionada. Decerto, cada uma das pessoas idênticas ao Sr. de Charlus é uma criatura extraordinária, visto que, se não faz concessões às possibilidades da vida, procura essencialmente o amor de um homem da outra raça, ou seja, de um homem que ama as mulheres (e que, conseqüentemente, não poderá amá-lo); contrariamente ao que eu achava no pátio, onde acabava de ver Jupien girar em torno do Sr. de Charlus como a orquídea a fazer avanços ao besouro, essas criaturas de exceção, que lastimamos, formam uma multidão, como o veremos no decorrer desta obra, por um motivo que só deverá ser revelado no fim, e eles próprios se lamentam antes por serem excessivamente numerosos do que escassos. Pois os dois anjos que foram colocados às portas de Sodoma para saber se os habitantes, segundo diz o Gênesis, haviam feito inteiramente todas aquelas coisas cujo clamor subira até o Eterno tinham sido, e só podemos nos alegrar por isso, muito mal escolhidos pelo Senhor, o qual só deveria ter confiado a tarefa a um sodomita. Àquele, as desculpas:
"Pai de seis filhos, tenho duas amantes, etc." não o teria feito abaixar benevolamente a espada flamejante e suavizar as sanções. Teria respondido: "Sim, e tua mulher sofre as torturas do ciúme. Mas, ainda que essas mulheres não tenham sido escolhidas por ti em Gomorra, tu passas as noites com um tropeiro do Hebron."
E imediatamente o teria feito caminhar até a cidade que ia ser destruída pela chuva de fogo e de água. Ao contrário, deixaram fugir todos os sodomitas envergonhados, mesmo ao verem um rapaz, eles virassem a cabeça como a mulher de Loth, serem, por isso, transformados como ela em estátuas de sal. De modo que tiveram uma descendência numerosa, na qual o gesto se fez costume semelhante ao das mulheres debochadas que, dando a impressão de uma prateleira de calçados por detrás de uma vitrine, desviam a cabeça um estudante. Esses descendentes dos sodomitas, tão numerosos que se pode aplicar outro versículo do Gênesis: "se alguém puder contar a poeira da terra, poderá igualmente contar essa posteridade", fixaram-se em toda a terra, têm tido acesso a todas as profissões e entram com tanta facilidade nos clubes mais fechados que, quando um sodomita neles admitido, as bolas pretas ali são na maioria de sodomitas, mas que têm cuidado de incriminar a sodomia, como se tivessem herdado a mentira; permitiu a seus ancestrais abandonarem a cidade maldita. É possível regressem a ela um dia. Com certeza formam, em todos os países; colônia oriental, cultivada, musical, maledicente, que possui qualidades encantadoras e defeitos insuportáveis. Vê-lo-emos de modo mais aprofundado ao correr das páginas seguintes; mas quisemos prevenir o erro fato que consistiria, tal como se encorajou um movimento sionista, em criar um movimento sodomita e reconstruir Sodoma. Ora, tão logo chegassem os sodomitas abandonariam a cidade para não parecer pertencerem à ela tomariam a esposa, sustentariam amantes em outras cidades, onde, aliás encontrariam todas as distrações convenientes. Só iriam a Sodoma nos dias de extrema necessidade, quando a cidade estivesse vazia, nesses tempos em que a fome faz o lobo deixar a selva, ou seja, tudo se passaria como em Londres, em Berlim, em Roma, em Petrogrado ou em Paris.
Em todo caso, naquele dia, antes de minha visita à duquesa, eu não ia tão longe em meus pensamentos, e estava desolado por ter perdido a vez, ao prestar atenção na conjunção Jupien-Charlus, a chance de ver a fecundação da flor pelo besouro
continua na página 15...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - Aliás, no que se referia ao Sr. de Charlus)
Volume 6
Volume 7
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