Livro II
Ela não é galante,
não usa ruge algum.
não usa ruge algum.
Sainte-Beuve
Capítulo XXVI
O MINISTÉRIO DA VIRTUDE
There also was of course in Adeline
That calm patrician polish in the address,
Which ne’er can pass the equinoctial line
Of any thing which Nature would express;
Just as a Mandarin finds nothing fine,
At least his manner suf ers not to guess
That anything he views can greatly please.
DON JUAN, C. XIII, est. 84
HÁ UM POUCO de loucura na maneira de ver de toda essa família, pensava a marechala: todos estão entusiasmados com seu jovem abade, que não sabe senão escutar – com olhos muito belos, é verdade.
Julien, por seu lado, via nas maneiras da marechala um exemplo mais ou menos perfeito daquela calma patrícia que respira uma polidez exata e, mais ainda, a impossibilidade de qualquer emoção viva. O imprevisto nos movimentos, a falta de domínio sobre si mesmo teriam escandalizado a sra. de Fervaques quase tanto quanto a ausência de majestade para com os inferiores. O menor sinal de sensibilidade teria sido, para ela, uma espécie de embriaguez moral passível de vergonha e muito prejudicial ao que uma pessoa de condição elevada deve a si mesma. Sua grande felicidade consistia em falar da última caçada do rei; seu livro favorito eram as Memórias do duque de Saint-Simon, sobretudo a parte genealógica.
Julien sabia o lugar que, conforme a disposição das luzes, convinha ao gênero de beleza da sra. de Fervaques. Antecipadamente punha-se ali, mas com muito cuidado de virar sua cadeira de modo a não ver Mathilde. Surpresa com essa constância em ocultar-se dela, um dia ela deixou o canapé azul e veio para junto de uma mesinha ao lado da poltrona da marechala. Julien a via, muito próxima, por baixo do chapéu da sra. de Fervaques. Aqueles olhos, que dispunham de sua sorte, primeiro o assustaram, depois o tiraram violentamente de sua apatia habitual; ele falou, e falou bem.
Dirigia a palavra à marechala, mas seu objetivo único era agir sobre a alma de Mathilde. Animou-se de tal forma que a sra. de Fervaques passou a não compreender mais o que ele dizia.
Era um primeiro mérito. Se Julien tivesse tido a ideia de completá-lo com algumas frases de misticismo alemão, de alta religiosidade e de jesuitismo, a marechala o teria classificado imediatamente entre os homens superiores chamados a regenerar o século.
Já que ele tem o mau gosto, pensava a srta. de La Mole, de falar por tanto tempo e com tanto ardor à sra. de Fervaques, não o escutarei mais. Durante o resto da noite, ela cumpriu sua palavra, embora com dificuldade.
À meia-noite, quando pegou o candelabro da mãe para acompanhá-la ao quarto, a sra. de La Mole deteve-se na escada para fazer um elogio completo de Julien, o que veio completar a irritação de Mathilde; ela não pôde conciliar o sono. Uma ideia a acalmou: aquilo que desprezo pode ainda representar um grande mérito aos olhos da marechala.
Quanto a Julien, ele agira e sentia-se menos infeliz; seus olhos pousaram casualmente na pasta em couro da Rússia contendo as cinquenta e três cartas de amor que o príncipe Korasoff lhe presenteara. Leu anotado, embaixo da primeira carta: Enviar o n o 1 oito dias após o primeiro encontro.
– Estou atrasado!, exclamou Julien, pois venho falando com a sra. de Fervaques há mais tempo. Pôs-se a transcrever de imediato essa primeira carta de amor; era uma homilia cheia de frases sobre a virtude e enfadonha até a morte; Julien teve a felicidade de adormecer na segunda página.
Algumas horas depois, o sol surpreendeu-o apoiado sobre a mesa. Um dos momentos mais penosos de sua vida era aquele, ao despertar toda manhã, em que tomava consciência de sua infelicidade. Naquele dia, terminou a cópia da carta quase rindo. Será possível, pensava, que um homem possa escrever assim? Contou várias frases de nove linhas. Escrita a lápis no original, leu esta observação:
Levar as cartas pessoalmente: a cavalo, de gravata escura, sobrecasaca azul. Entregar a carta ao porteiro com um ar contrito; profunda melancolia no olhar. Se avistar alguma camareira, enxugar furtivamente os olhos. Dirigir a palavra à camareira.
Tudo isso foi fielmente executado.
O que faço é bastante ousado, pensou Julien, ao sair da mansão de Fervaques, mas tanto pior para Korasoff. Ousar escrever a uma virtude tão célebre! Serei tratado com o último desprezo e nada me divertirá tanto. No fundo, é a única comédia a que posso ser sensível. Sim, será divertido cobrir de ridículo essa criatura odiosa que chamo eu. Se acreditasse em mim, cometeria algum crime para distrair-me.
Há um mês, o mais belo momento da vida de Julien era aquele em que repunha seu cavalo na estrebaria. Korasoff proibira-lhe expressamente olhar, sob qualquer pretexto, a amante que o abandonara. Mas o passo desse cavalo que ela conhecia tão bem, a maneira como Julien batia com o relho na porta da estrebaria para chamar um criado, atraíam às vezes Mathilde por trás da cortina de sua janela. Olhando de certo modo sob a aba do chapéu, ele avistava a silhueta de Mathilde sem ver seus olhos. Portanto, pensava, ela não pode ver os meus, e isso não é olhar para ela.
À noite, a sra. de Fervaques comportou-se exatamente como se não tivesse recebido a dissertação filosófica, mística e religiosa que, de manhã, ele entregara ao porteiro com tanta melancolia. Na véspera, o acaso revelara a Julien o meio de ser eloquente; ele colocou-se de modo a ver os olhos de Mathilde. Ela, por sua vez, um instante após a chegada da marechala, deixou o canapé azul: o que significava abandonar sua roda habitual. O sr. de Croisenois pareceu consternado com esse novo capricho; sua dor evidente tirou de Julien o que havia de mais atroz em sua infelicidade.
Esse imprevisto em sua vida o fez falar como um anjo; e, como o amor-próprio insinua-se mesmo nos corações que servem de templo à virtude mais augusta, a marechala, ao deixar a mansão, pensou: Esse jovem padre tem distinção, como disse a sra. de La Mole. É provável que, nos primeiros dias, minha presença o tenha intimidado. Em realidade, tudo é muito leviano nessa casa; só vejo virtudes auxiliadas pela velhice e que precisaram muito dos gelos da idade. Esse jovem terá sabido perceber a diferença; ele escreve bem; mas temo que o pedido de esclarecê-lo com meus conselhos, que ele me faz na carta, seja no fundo apenas um sentimento que se ignora.
Todavia, quantas conversões começaram assim! O que me faz augurar muito, é esta diferença entre seu estilo e o dos jovens de quem tive a ocasião de ver as cartas. É impossível não reconhecer unção, seriedade profunda e muita convicção na prosa desse jovem levita; ele parece ter a suave virtude de Massillon.
continua página 282...
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.
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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.
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Leia também:
O Vermelho e o Negro: Os Prazeres do Campo (I-2)
O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (II)
O Vermelho e o Negro: Os Primeiros Passos (III)
O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-1)
O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-2)
O Vermelho e o Negro: O Amor Moral (XXVI)
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