quarta-feira, 8 de março de 2023

A Montanha Mágica - Brincadeira de mau gosto. Viático. Hilaridade interrompida

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo III


Brincadeira de mau gosto. Viático. Hilaridade interrompida


– Homem muito simpático – disse Hans Castorp, enquanto atravessavam o portal, após terem cumprimentado amavelmente o porteiro coxo, que se achava na sua guarita classificando cartas. Saíram a ar livre. O portal encontrava-se na parte sudeste do edifício caiado de branco, cujo corpo central tinha um andar a mais que as duas alas e era encimado por uma pequena torre coberta de zinco e guarnecida de um relógio. Quem saia por esse portal, não entrava no jardim cercado, mas penetrava logo na natureza livre, com vista sobre prados que se estendiam pelas encostas das montanhas e estavam semeados de isolados abetos de pouca altura e de pinheiros tortos, agachados no chão. O caminho pelo qual trilhavam era na realidade o único que existia, com exceção da estrada que descia ao vale. Passava em ligeiro declive atrás do sanatório, rumo à esquerda, ladeando a cozinha e a despensa, onde se viam grandes recipientes de lixo ao longo das grades da escada que conduzia ao porão. O caminho seguia ainda alguns instantes a mesma direção, para, após uma volta brusca à direita, elevar-se numa subida íngreme ao longo da encosta escassamente arborizada. Era uma vereda de chão duro, avermelhado, ainda um tanto úmido, a cuja beira jaziam de quando em quando uns blocos de pedra. Os primos não eram os únicos a passear. Alguns hóspedes, que haviam terminado a refeição quase ao mesmo tempo que eles, seguiam-nos a curta distância, e outros grupos, já de regresso, vinham-lhes ao encontro, com o passo ruidoso de pessoas que descem.
– Homem muito simpático – repetiu Hans Castorp. – Tem um jeito tão desembaraçado de falar! Dá gosto ouvi-lo. Essa do charuto de mercúrio, para designar o termômetro, é mesmo muito boa. Compreendi logo... Mas agora vou acender um charuto de verdade – disse, estacando. – Já não aguento mais sem ele. Desde o meio-dia de ontem que não fumo nada que preste. Com licença! – Tirou da charuteira de couro de verniz, enfeitada com as suas iniciais em prata, um Maria Mancini, belo exemplar da camada superior da caixa, achatado de uma face, como ele gostava especialmente. Cortou a ponta com uma pequena guilhotina de corte angular, que trazia na corrente do relógio. Acendeu o isqueiro, pôs fogo ao charuto bastante comprido, de ponta vertical, e tirou algumas baforadas gostosas. – Muito bem – disse então – quanto a mim, podemos continuar o passeio. Você não fuma, claro, devido àquele excesso de entusiasmo.

– Nunca fumei – respondeu Joachim. – Para que fumaria justamente aqui?

– Não compreendo você – disse Hans Castorp. – Simplesmente não compreendo como alguém possa viver sem fumar. Priva-se, por assim dizer, do que há de melhor na vida. Em todo caso lhe escapa um prazer magnífico. Quando acordo pela manhã, já me alegro com a ideia de poder fumar durante o dia, e quando tomo uma refeição, já penso em fumar depois. Sim senhor, posso dizer, com um pouco de exagero, que como apenas para ter uma oportunidade de fumar. Um dia sem tabaco seria para mim o cúmulo da insipidez, um dia totalmente vazio, sem o mínimo atrativo, e se eu qualquer dia despertasse sabendo que não poderia fumar, acho que não teria coragem nem para me levantar. Francamente, eu ficaria na cama. Olhe, quando a gente fuma um charuto que puxa bem... claro que não deve estar furado, o que constitui um defeito muito desagradável... quero dizer, quando a gente fuma um charuto bom, sente-se garantido e nada lhe pode acontecer. É a mesma coisa como deixar-se ficar deitado numa praia de mar; fica-se deitado, não é? Não se tem a necessidade de nada, nem de trabalho nem de distrações... E fuma-se no mundo inteiro, graças a Deus! Ao que me parece, não existe nenhum lugar onde esse prazer seja desconhecido, por mais longe que arraste o destino Até os exploradores das regiões polares levam fumo em abundância, para que possam aguentar os esforços das suas viagens. Isto sempre me pareceu simpático. Pode acontecer que uma pessoa ande muito mal... Suponhamos, por exemplo, que eu me encontre num estado lamentável... mas, enquanto tiver o meu charuto aguentarei firme, disso tenho certeza. O charuto me faria vencer qualquer obstáculo.

– Contudo, é um sinal de fraqueza – objetou Joachim – depender do fumo até esse ponto. Behrens tem toda a razão: você um paisano Ele disse isto em sentido elogioso, mas você é mesmo um paisano incorrigível. Mas, afinal de contas, anda bem de saúde e pode fazer o que quiser – acrescentou, e seus olhos assumiram uma expressão cansada.

– Sim, com exceção desta anemia – disse Hans Castorp. – E não usou luvas de pelica para me falar à queima-roupa da minha cor verde. Mas é verdade, eu mesmo notei que em comparação com o pessoal daqui, meu rosto é quase verde. Lá em casa não tinha reparado nisso. E achei muito gentil da parte dele dar-me assim, sem mais aquela, uns conselhos desinteressados, sine pecunia, como disse. Tenho a intenção de fazer o que ele me recomendou, e de adaptar o meu estilo de vida ao seu... Que mais poderia fazer aqui em cima? E não me fará mal nenhum acumular algumas proteínas, embora essa expressão me soe meio repugnante Não acha também?

Enquanto caminhava, Joachim tossiu algumas vezes. Ao que parecia, cansava-o a subida. Quando pela terceira vez teve um acesso de tosse, estacou, franzindo a testa, e disse: “Toque para a frente!” Hans Castorp apressou-se em prosseguir no caminho, sem olhar para trás. Depois diminuiu o passo, até quase parar, porque tinha a impressão de se ter adiantado muito ao primo. Mas não voltou a cabeça.
Um grupo de pensionistas de ambos os sexos vinha se aproximando dele. Hans Castorp já os vira trilhar o caminho plano a meia altura da encosta. Agora se achavam na descida, indo a seu encontro, a passo barulhento, numa confusão de vozes. Eram seis ou sete pessoas de diferentes idades, umas muito jovens, outras um tanto avançadas em anos. Hans Castorp contemplou-as, com a cabeça inclinada para o lado, enquanto seus pensamentos se ocupavam com Joachim. Andavam sem chapéu, tostados pelo sol. As senhoras vestiam pulôveres de cor, ao passo que os homens, na sua maioria, iam sem sobretudo e mesmo sem bengala, como quem sai sem cerimônias, com as mãos nos bolsos, para dar uma voltinha. Achavam-se na descida, que não exige grande esforço muscular, mas apenas um ligeiro refreamento pelas pernas fincadas no chão, para evitar o excesso de velocidade e o consequente tropeção. Assim, seu modo de andar tinha algo de alado e leve, que se comunicava às suas fisionomias e à sua atitude em geral e inspirava a quem os via o desejo de fazer parte do grupo.
E já se encontravam próximos de Hans Castorp, que se pôs a examinar-lhes os rostos. Nem todos estavam queimados pelo sol. Duas senhoras destacavam-se até pela palidez, uma magrinha como um caniço, com uma tez de marfim, e a outra, mais baixa, gorducha, com a cara salpicada de lunares. Todos o fitaram com o mesmo sorriso petulante. Uma mocinha alta, de suéter verde, com cabelos desgrenhados e uns estúpidos olhos semicerrados, passou tão perto de Hans Castorp que quase lhe roçou o braço. E ao mesmo tempo assobiava... Mas, que coisa louca! Assobiava, porém não o fazia com a boca. Nem sequer contraía os lábios; pelo contrário, mantinha-os firmemente cerrados. Havia qualquer coisa que assobiava no seu interior, enquanto ela encarava Hans Castorp, com uma mirada tola dos olhos entreabertos. Era um assobio sumamente desagradável, agudo, penetrante e todavia oco, prolongado e que pelo fim baixava de tom, assim como fazem aqueles porquinhos de borracha que se compram nas feiras, e que deixam escapar, com um som gemebundo, o ar insuflado. Tal era o ruído que partia inexplicavelmente do peito da jovem, enquanto ela se afastava com o resto do grupo.
Hans Castorp quedou-se imóvel, olhando para longe. Então se virou bruscamente, percebendo que esse assobio atroz fora um trote, uma brincadeira de antemão preparada, pois viu pelos movimentos de ombro que aquela gente se ria dele. Um rapaz atarracado e beiçudo que, para andar com as mãos nos bolsos da calça, levantava o paletó de uma forma bastante inconveniente, virou-se descaradamente para ele e riu... Nesse meio tempo, Joachim se aproximara. Passou pelo grupo, cumprimentando-o na sua maneira militar, fazendo uma quase continência, e inclinando-se, de tacões unidos. Em seguida, voltou-se para o primo com um olhar interrogador.

– Que é que há com você? – perguntou.

– Ela assobiou! – respondeu Hans Castorp. – Assobiou com a barriga, ao passar junto de mim. Tenha a bondade de me explicar como isso se faz.

– Ora! – exclamou Joachim, com uma risada desdenhosa. – Não foi com a barriga. Bobagem! É a Kleefeld, Hermine Kleefeld. Assobia com o pneumotórax.

– Com quê? – gritou Hans Castorp, sumamente excitado, sem no entanto, saber em que sentido: vacilava entre o riso e o choro quando acrescentou: – Afinal de contas não se pode esperar de mim que eu compreenda a gíria de vocês.

– Vamos adiante – disse Joachim. – Posso lhe explicar tudo isso, enquanto a gente passeia. Parece mesmo que você criou raízes. Trata-se de um negócio de cirurgia, compreende? É uma intervenção que frequentemente executam aqui. O Behrens tem grande prática nisso... Quando um pulmão está muito atacado, e o outro está bom, ou pelo menos relativamente bom, dispensa-se o lado enfermo por algum tempo de qualquer atividade, a fim de poupá-lo. Quer dizer, dão um talho nesta região, no flanco, não sei precisamente onde, mas o Behrens é um mestre nessas coisas. E depois enchem a gente de gás, de nitrogênio; sabe? E assim o pulmão carcomido é posto fora de ação. É claro que o gás introduzido no corpo não se conserva indefinidamente. Precisa ser renovado de quinze em quinze dias, mais ou menos. É a mesma coisa que reencher um balão; compreende? Ao cabo de um ano ou mais, se tudo for bem, pode o pulmão curar-se graças a esse completo descanso. Mas, nem sempre termina assim, e parece até que a intervenção é bastante arriscada. Contudo, dizem que já foram obtidos muitos bons resultados com esse pneumotórax. Toda aquela turma, que você acaba de encontrar, anda com ele. Havia lá a Srª. Iltis, aquela que tem os lunares, sabe? E a Srta. Levi, uma magrinha, se você se lembra; ela ficou de cama por muitíssimo tempo. Eles formaram um grupo, pois essa coisa do pneumotórax estabelece uma relação natural entre as pessoas. Chamam-se entre si a “Sociedade Meio-Pulmão”; são conhecidos por esse nome. Mas o orgulho da sociedade é a Hermine Kleefeld, porque sabe assobiar com o pneumotórax. É um talento especial que muito poucos têm. Como ela consegue fazê-lo, não lhe posso explicar; nem ela mesma sabe explicá-lo claramente. Depois de ter andado depressa, é capaz de assobiar interiormente, e disso se aproveita para dar um susto à gente, sobretudo aos doentes recém-chegados. Acho, aliás, que com isso perde nitrogênio, pois precisa reabastecer-se de oito em oito dias.

Agora, Hans Castorp desatou a rir. No decorrer das explicações de Joachim, a sua excitação tomara decididamente o rumo da hilaridade. Enquanto prosseguia no caminho, cobrindo os olhos com a mão e inclinando-se para a frente, sentiu os ombros sacudidos por uma rápida sucessão de risinhos silenciosos.

– É uma sociedade registrada? – perguntou, numa voz embargada, que, à força de conter o riso, soava chorona e levemente queixosa. – Tem estatutos? Que pena você não ser sócio. Olhe, nesse caso poderiam admitir-me como sócio honorário ou como... visitante. Você deveria pedir ao Behrens que lhe ponha parte dos pulmões fora de ação. Quem sabe se você não conseguiria também assobiar, se se esforçasse um pouco? Afinal de contas, isto se aprende... Em todo caso é a coisa mais engraçada que já vi – acrescentou, com um profundo suspiro. – Escute, não me leve a mal que eu fale desse jeito, mas eles mesmos andam tão bem-humorados, esses seus amigos pneumáticos. Quem vê como caminham assim, alegremente... E quando se pensa que essa era a “Sociedade Meio-Pulmão!” “Fiu-u”, sibilou ela... Que pequena! Mas isso é pura traquinice. Por que estão tão alegres, pode me explicar?

Joachim esforçou-se por encontrar uma resposta.

– Meu Deus – disse enfim – eles estão tão livres... quero diz é gente moça, e o tempo não significa nada para eles. E quem sabe se não vão morrer! Para que então ficar com a cara triste? Às vezes vem a ideia de que essa coisa da doença e da morte no fundo não séria; é antes uma espécie de relaxamento. A seriedade existe somente na vida lá de baixo. Creio que você também compreenderá isso, quando estiver mais tempo aqui em cima.

– Sem dúvida – confirmou Hans Castorp. – Tenho até certeza disso. Desde que estou aqui, comecei logo a me interessar pela vida de vocês, e quando a gente tem interesse por alguma coisa, não tarda compreendê-la, não é?... Mas, que se passa comigo? Não me agrada! – disse abruptamente, olhando o charuto. –Já faz tempo que pergunto o que é que me incomoda, e agora vejo que é o Maria que não tem sabor nenhum. Tem um gosto de papel mascado. Eu garanto que me sinto como se tivesse o estômago desarranjado. É mistério para mim. Não nego que hoje comi muita coisa, mas isso não pode ser o motivo, pois quanto mais se come, mais aroma tem charuto. Que acha você? Será porque tive uma noite muito agitada? Talvez seja isto... Não! Não há jeito! Vou jogá-lo fora – concluiu, após uma nova tentativa. – Cada tragada a mais aumenta a decepção. Não adianta forçar. – Depois de hesitar um momento, atirou o charuto encosta abaixo, por entre a brenha úmida. – Quer saber coisa? – perguntou então. – Estou convencido de que isso tem alguma relação com aquele maldito ardor no rosto, que está me incomodando outra vez, desde que me levantei. O diabo sabe por quê, mas tenho a impressão de estar todo corado... Você também sentiu isso, quando chegou aqui?

– Senti, sim – disse Joachim. – No começo estranhei também muita coisa. Mas não se preocupe. Eu já lhe disse que não é tão fácil aclimatar-se aqui em cima. Tudo isso se arranja. Olhe esse banco aí tem uma vista bonita. Vamos sentar-nos um pouquinho e depois voltar. Está quase na hora do repouso.

O caminho tomara-se plano. Corria agora na direção de Davos-Platz, e oferecia, por entre altos e delgados pinheiros, dobrados pelo vento, o panorama do povoado que se estendia branco sob a luz clara. O banco de feitio tosco, em que se sentaram, encostava-se à vertente íngreme. A seu lado, um curso d'água corria rumo ao vale, gorgolejando e cachoando através de uma calha de madeira.
Com a ponta de seu bastão alpino, Joachim pôs-se a designar ao primo os nomes dos cumes envoltos em nuvens, que pareciam fechar o vale pelo lado sul. Mas Hans Castorp limitouse a olhá-los de relance. Inclinado para a frente, desenhava na areia com a bengala fina guarnecida de prata. O que lhe interessava não era aquilo.

– Há uma coisa que eu queria lhe perguntar... – começou. – Aquela doente que ocupava o meu quarto acabava de “esticar as canelas”, quando cheguei. Já houve muitos outros óbitos, desde que você está aqui?

– Deve ter havido alguns – respondeu Joachim. – Mas são tratados com muita discrição, sabe? A gente não nota nada, ou apenas casualmente mais tarde. Quando alguém morre, passa-se tudo no mais estrito sigilo, em consideração aos outros pacientes, sobretudo às senhoras, que, sem isso, talvez teriam crises de nervos. Você nem percebe, quando alguém morre no quarto pegado ao seu. Trazem o caixão de madrugada, enquanto todos estão dormindo, e vão buscar a pessoa em questão somente em horas determinadas, por exemplo durante as refeições.

– Hum! – disse Hans Castorp, continuando a desenhar. – As coisas se passam então atrás dos bastidores.

– Sim, isto não é exagero. Mas recentemente... faz... espere um pouco, faz talvez umas oito semanas...

– Nesse caso não se pode dizer “recentemente” – objetou Hans Castorp, vigilante e crítico.

– Como? Ah, sim, então não foi recentemente. Como você é meticuloso! Eu disse o número apenas por dizer. Bem, faz pouco tem tive ocasião de lançar um olhar atrás dos bastidores, por mero acaso. Lembro-me daquele momento como se fosse hoje. Foi quando levaram o viático, o sacramento da extrema-unção, sabe? Os Santos Óleos, à pequena Hujus, Barbara Hujus, que era católica. Quando cheguei aqui, ela ainda não estava de cama, e fazia travessuras que nem uma colegial de quinze anos. Mas depois foi enfraquecendo rapidamente. Não se levantou mais. Seu quarto achava-se a três portas do meu. Por fim chegaram seus pais, e um dia, também o padre. Veio quando todo mundo estava tomando o chá da tarde e não havia ninguém nos corredores. Mas, imagine o que me aconteceu: adormeci durante o repouso geral, não ouvi o sinal do gongo e me atrasei uns quinze minutos. Assim se deu que no momento crítico, em vez de me achar entre os outros, me perdi atrás dos bastidores para usar a sua expressão. Eu estava a ponto de atravessar o corredor, quando apareceram e foram ao meu encontro, com camisas de renda e uma cruz à sua frente, uma cruz de ouro, com lanternas, como se fosse o estandarte da banda do regimento.

– É uma comparação pouco adequada – disse Hans Castorp com certa severidade.

– Ora, eu tive essa impressão. Foi sem querer que me lembrei disso. Mas ouça o que aconteceu então. Vinham em minha direção, passo apressado. Eram uns três, se não me engano; à frente o homem da cruz, depois o sacerdote, com óculos no nariz, e por fim um menino com o turíbulo. O padre levava à altura do peito o viático recoberto e mantinha a cabeça humildemente inclinada. Você compreende: era o Santo Sacramento.

– Justamente – disse Hans Castorp. – Por isso estranhei quando você falou da banda do regimento.

– Pois é. Mas espere um pouco. Se você tivesse assistido à cena, também não saberia o que pensar dessa recordação. Era uma coisa capaz de lhe causar um pesadelo...

– Por quê?...

– Bem, eu não sabia como me comportar numa circunstância dessas. Não andava de chapéu, para que o pudesse tirar...

– Está vendo? – interrompeu-o Hans Castorp mais uma vez. – Está vendo como é necessário levar chapéu? Notei naturalmente que aqui todos andam sem. Contudo, se deve usar um chapéu, para poder tirá-lo nas ocasiões oportunas... E que aconteceu então?

– Postei-me junto da parede – disse Joachim – numa atitude conveniente. Quando se aproximaram de mim, fiz uma leve mesura. Era precisamente em frente do quarto da pequena Hujus, número vinte e oito. Acho que o padre ficou satisfeito ao ver a minha reverência; agradeceu muito amavelmente, tirando o barrete. E no mesmo instante pararam. O menino com o turíbulo bateu à porta, abriu então e deu passagem ao superior. E agora imagine o meu espanto e veja se compreende o que senti! No momento em que o sacerdote atravessa o limiar do quarto, começa lá dentro um barulhão, uns berros como você nunca ouviu, umas três ou quatro vezes seguidas, e depois uma gritaria ininterrupta, contínua, gritos que pareciam sair de uma boca vastamente aberta, assim: aaaaah! Expressava-se nisso tanta desolação, tanto horror, tanto protesto, que é indescritível, e havia no meio umas súplicas tão pungentes!... E de repente tudo se torna cavo e surdo, como se a voz se tivesse sumido debaixo da terra e viesse das profundezas do porão

Hans Castorp voltou-se bruscamente para o primo:

– Era a Hujus? – gritou, nervoso. – E por que parecia a voz vir do porão?

– Ela se tinha escondido sob os cobertores – explicou Joachim. – Imagine a impressão que eu tive! O sacerdote permanecia perto da entrada, pronunciando algumas palavras tranqüilizadoras. Parece-me que o vejo ainda. Ao falar, avançava um pouco a cabeça, e depois a retraía novamente. O homem com a cruz e o coroinha achavam-se ainda no limiar do quarto, sem poderem entrar. E por entre os dois, eu podia ver o interior do quarto. É igual aos nossos, com a cama à esquerda da porta, contra a parede. À cabeceira havia algumas pessoas, os pais naturalmente, que também se inclinavam para a cama, proferindo palavras de consolo, e na cama só se via uma massa informe, que suplicava, esperneava e protestava atrozmente.

– Esperneava mesmo?

– Com todas as forças. Mas de nada lhe adiantou. Era inevitável que ela recebesse a extrema-unção. O padre aproximou-se dela, os dois outros entraram também, e a porta fechouse. Mas antes pude ainda enxergar a cabeça de Hujus, que apareceu por um segundo, com os cabelos louros totalmente revoltos. Ela cravou no sacerdote os olhos arregalados, uns olhos como que pálidos, completamente descorados e logo lançou uns gritos e voltou a esconder-se debaixo da colcha

– E você me conta essa história só agora? – disse Hans Castorp depois de um silêncio. – Não compreendo por que deixou de fazê-lo ontem à noite... Mas, meu Deus, ela devia estar muito forte ainda para se defender desse jeito. Para isso precisa-se muita força. Só deveriam buscar o padre quando uma pessoa estivesse muito fraca

– Estava fraca, sim – replicou Joachim. – Ora, não me faltam histórias para contar. O difícil é fazer a primeira seleção... Bem, e estava mesmo muito fraca. O que lhe dava tanta força era unicamente o medo. Sentia um pavor horrível, porque percebia que estava às portas da morte. Era uma mocinha, afinal, e isto justifica até certo ponto a sua conduta. Mas há também homens que se comportam assim, o que revela uma covardia imperdoável. O Behrens sabe, aliás, como lidar com esses tipos. Ele encontra o tom adequado.

– Que tom? – perguntou Hans Castorp, franzindo as sobrancelhas.

– “Não faça tanta fita!”, costuma dizer ele – respondeu Joachim. – Foi pelo menos o que disse recentemente numa ocasião dessas. Quem nos contou a história foi a enfermeira-chefe, que estava lá para segurar o agonizante. Era um daqueles que no leito de morte ainda fazem uma cena pavorosa e absolutamente não querem morrer. Então o Behrens ralhou com ele. “Deixe de fazer tanta fita!”, disse, e o paciente logo ficou quietinho e morreu com toda a calma

Hans Castorp deu uma palmada na coxa, e reclinando-se no encosto do banco, dirigiu os olhos para o céu:

– Escute, essa é muito forte! – exclamou. – Ralhar com o doente e dizer-lhe simplesmente: “Não faça tanta fita!” A um moribundo! É demais. Afinal de contas, um moribundo merece algum respeito. Não se pode dizer-lhe sem mais aquela... Parece-me que um moribundo é, de certo modo, sagrado.

– Não digo o contrário – concedeu Joachim. – Mas quando alguém se comporta covardemente...

– Não senhor! – insistiu Hans Castorp, com uma violência que não estava proporcional à oposição que se lhe fazia. – Ninguém me tirará da cabeça que um moribundo é mais nobre do que um indivíduo qualquer que passeia e ri e ganha dinheiro e enche a pança. Não é possível... – Sua voz vacilou estranhamente. – Não é possível que se trate assim... – E de súbito suas palavras se afogaram numa gargalhada que se apoderou dele e o dominou; o mesmo riso da véspera, um riso que lhe brotava das entranhas, lhe sacudia todo o corpo e não tinha fim, que lhe cerrou os olhos e extraiu lágrimas por entre as pálpebras comprimidas.

– Psiu! – fez Joachim de repente. – Cale-se! – cochichou, dando uma cotovelada ao primo que ainda se ria a bandeiras despregadas. Hans Castorp ergueu os olhos, através das lágrimas.

Vindo da esquerda, aproximava-se um forasteiro, um senhor baixinho, moreno, com bigode preto elegantemente torcido, e com calças de xadrez claro. Trocou com Joachim um “Bom dia!” – sua saudação era nítida e sonora e deteve-se à frente dos dois jovens, numa atitude graciosa, cruzando os pés e apoiando-se na bengala.

continua pág 037...

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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Brincadeira de mau gosto. Viático. Hilaridade interrompida
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.



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