Thomas Mann
A Montanha Mágica
Capítulo III
Satã
Seria difícil avaliar-lhe a idade. Devia ter entre trinta e quarenta anos, visto seus cabelos, nas fontes, se acharem entremeados de fios de prata e mais acima se tornarem bastante ralos, se bem que a aparência geral da sua pessoa desse a impressão de juventude. Duas entradas profundas ressaltavam ao lado da fina risca que repartia os escassos cabelos, e davam a impressão de aumentar a altura da fronte. Os trajes do forasteiro – amplas calças de xadrez amarelado e paletó muito comprido, de uma fazenda parecida com burel, com duas fileiras botões e lapelas largas –, esses trajes estavam longe de pretender elegância. O colarinho duro, de pontas arredondadas e viradas para baixo, já estava um tanto puído nas bordas, por ter sido lavado frequentemente; a gravata preta estava gasta pelo uso. Além disso, notou Hans Castorp, pelo jeito frouxo como as mangas caíam sobre pulsos, que o desconhecido não usava punhos. Contudo, era visível tratar-se de um cavalheiro; a esse respeito não deixavam dúvidas cunho de cultura, que marcava o rosto do forasteiro, nem tampouco a sua atitude natural e quase nobre. Tal mescla de desalinho e graça, combinada com uns olhos negros e o bigode suavemente ondulado, fez Hans Castorp pensar em certos músicos estrangeiros que na época do Natal tocavam nos pátios de Hamburgo, e com os olhos aveludados dirigidos para cima estendiam os chapéus de aba larga, para que, das janelas, lhes lançassem moedas de dez Pfennige. “Um tocador de realejo”, pensou Hans Castorp, e assim não se admirou nem um pouquinho do nome que ouviu, quando Joachim se levantou do banco e, com algum acanhamento, fez a apresentação.
- Meu primo Castorp... o Sr. Settembrini.
Também Hans Castorp se pusera de pé, para cumprimentar o cavalheiro. Seu rosto revelava ainda os traços daquele excesso de hilaridade. Mas o italiano, cortesmente, fez questão de que não se incomodassem, e obrigou-os a sentarem-se de novo, ao passo que ele mesmo permanecia em frente aos dois, na sua postura agradável. Esboçava um sorriso, ao manter-se assim, contemplando os primos, e principalmente a Hans Castorp; e essa expressão fina, um tanto zombeteira, que lhe aprofundava e encrespava uma das comissuras da boca, sob o espesso bigode, produzia um efeito singular, convidando, em certo sentido, à lucidez do espírito e à vigilância. Hans Castorp, de pronto sentindo-se como que desembriagado, envergonhou-se do seu anterior desenfreamento.
– Os senhores estão de bom humor. Têm motivo, têm toda a razão. Uma esplêndida manha! O azul do céu, o sol a sorrir... – E com um gesto rápido, e elegante do braço, ergueu para o céu a mãozinha amarela, enquanto enviava na mesma direção um relance alegre. – Realmente, falta pouco para esquecermos onde estamos.
Falava sem sotaque exótico, e somente a precisão da pronúncia poderia fazer adivinhar que se tratava de um estrangeiro. Seus lábios formavam as palavras com certa volúpia. Dava prazer ouvi-lo
– E o senhor teve uma viagem agradável? – perguntou a Hans Castorp. – Já lhe comunicaram a sentença? Quero dizer: já se realizou a sinistra cerimônia do primeiro exame médico? – Aqui deveria ter calado e aguardado, se realmente desejasse obter uma resposta; pois fizera a pergunta, e Hans Castorp estava a ponto de responder. Mas o forasteiro continuou imediatamente: – Tudo decorreu bem? Da sua hilaridade... – Silenciou por um instante, enquanto se acentuava o encrespamento dos seus lábios – ...pode-se tirar conclusões muito diferentes. Quantos meses lhe pespegaram os nossos Minos e Radamanto? – A palavra “pespegaram” soava particularmente engraçada em sua boca. – Deixe-me adivinhar. Seis? Ou logo nove? Ora, aqui não há parcimônia...
Hans Castorp riu-se, cheio de surpresa, e ao mesmo tempo procurou recordar quem eram Minos e Radamanto. Respondeu então: – Desculpe, mas o senhor está enganado, Sr. Septem...
- Settembrini – corrigiu o italiano, com nitidez e presteza, acrescentando uma reverência humorística.
– Sr. Settembrini, perdão! Mas, como já disse, há um equívoco da sua parte. Não estou doente. Faço apenas uma visita de algumas semanas ao meu primo Joachim e quero aproveitar esta ocasião para descansar um pouquinho...
– Vejam só! Então não é dos nossos. Goza boa saúde, está aqui apenas de passagem, como Ulisses no reino das sombras? Que audácia descer até estas profundezas, onde os mortos levam uma existência irreal, desprovida de sentido...
– Até estas profundezas, Sr. Settembrini? Não diga isso, que subi uns cinco mil pés para chegar aqui...
– É o que o senhor pensa. Palavra de honra, trata-se apenas uma ilusão – disse o italiano, com um gesto enérgico da mão. – Somos umas criaturas que caíram muito baixo; não é mesmo, tenente? – E com isso se voltou para Joachim, que se regozijou bastante ao ouvir o título, mas, esforçando-se por dissimular a sua satisfação, respondeu circunspectamente:
– Pode ser que a gente se tenha apatetado aqui. Mas, afinal de contas, há meios de se regenerar...
– Pois é, acho também que o senhor tem capacidade para isso; é um homem decente – disse Settembrini. – Sim, sim, sim! – acrescentou sibilando três vezes o “s” e fazendo estalar a língua outras tantas vezes contra o céu da boca. Depois, dirigindo-se a Hans Castorp exclamou: – Vejam só, vejam só, vejam só! – com a mesma pronúncia do “s” enquanto encarava o novato com tamanha intensidade, que seus olhos assumiam expressão fixa e cega. Por fim, reavivando o olhar prosseguiu:
– De modo que o senhor veio voluntariamente a estas alturas, para visitar esta nossa gente decaída! Quer nos conceder por algum tempo o prazer da sua companhia... Ora, é muito gentil da sua parte. E quanto tempo tenciona ficar aqui? Sou indiscreto. Mas eu gostaria de conhecer o prazo que uma pessoa se fixa a si própria, quando se decide livremente, sem depender da vontade de Radamanto.
– Três semanas – respondeu Hans Castorp, com um orgulho um tanto fátuo, ao notar que despertava inveja.
– O Dio! Três semanas! Ouviu, tenente? Não lhe parece mesmo um tanto atrevida essa maneira de dizer: “Vou passar aqui três semanas e depois partirei”? Fique sabendo, meu senhor, que nós aqui ignoramos uma medida de tempo que se chama semana. Para nós, a menor unidade é o mês. Fazemos as nossas contas em grande estilo, corno é o privilégio das sombras. Temos ainda outros privilégios, e todos eles são desse tipo. Posso perguntar que profissão o senhor exerce na vida lá de baixo, ou melhor, para que profissão se prepara? Como está vendo, não costumamos refrear a nossa curiosidade. Ela também faz parte dos nossos privilégios.
– Com o maior prazer – disse Hans Castorp, e deu a explicação desejada.
– Engenheiro naval? Magnífico! – gritou Settembrini. – Asseguro-lhe que essa profissão me parece magnífica, embora os meus próprios talentos sejam orientados num sentido diferente.
– O Sr. Settembrini é escritor – explicou Joachim com certo acanhamento. – Escreveu o necrológio de Carducci para algumas revistas alemãs. Você sabe, Carducci?... – E tornou-se ainda mais acanhado, quando o primo o olhou pasmado, como se quisesse dizer: “Que sabe você de Carducci? Não mais do que eu, se não me engano muito.”
– Exatamente – confirmou o italiano, sacudindo a cabeça. – Tive a honra de falar aos seus compatriotas da vida desse grande poeta e livre-pensador, quando essa vida tinha chegado ao fim. Conheci-o; posso chamar-me seu discípulo; em Bolonha, estive sentado aos seus pés. A ele devo o que possuo de cultura e de alegria de espírito... Mas estávamos falando do senhor. Engenheiro naval! Sabe o senhor que está subindo no meu conceito? De repente se me afigura como o representante de todo um universo de trabalho e de gênio prático.
– Ora, ora, Sr. Settembrini, por enquanto sou apenas um estudante e me acho bem no início.
– Pois é, e o primeiro passo custa. Como aliás é difícil todo trabalho que merece este nome, não é?
– Difícil como o diabo – disse Hans Castorp, e essas palavras lhe saíram do fundo do coração.
Rapidamente Settembrini franziu as sobrancelhas.
– O senhor invoca o próprio diabo para confirmar isso? – perguntou. – Satã em pessoa? Sabe talvez que meu grande mestre lhe dedicou um hino?
– Como? – admirou-se Hans Castorp. – Ao diabo?
– Em carne e osso. De vez em quando cantam esse hino na minha pátria, por ocasião de certas solenidades: O salute, o Satana, o Ribellione, o foza vindice della Ragione... Uma maravilha esse cântico! Contudo, me parece pouco provável que o senhor tenha pensado justamente nesse Diabo, que está em ótimas relações com o trabalho. O diabo ao qual se referiu o senhor, e que abomina o trabalho, porque tem motivos para temê-lo, deve ser aquele outro do qual dizem que com ele não se brinca...
Tudo isso causou uma impressão estranha ao bom Hans Castorp. Não compreendia o italiano, e o resto do que dizia Settembrini tampouco lhe inspirava muita confiança. Essas coisas cheiravam a sermão dominical, ainda que proferidas num tom de palestra leve e jocosa. Hans Castorp olhou o primo, que baixou os olhos, e depois disse:
– O senhor toma as minhas palavras muito ao pé da letra, Sr. Settembrini. O que eu disse do Diabo era apenas uma maneira de falar e nada mais.
– Deve haver uma pessoa com espírito – disse Settembrini, mirando o ar com uma expressão melancólica. Porém, reanimando-se imediatamente, e dando à conversa um caráter jovial, gracioso e conciliador continuou:
- Seja como for, posso deduzir, com razão, das suas palavras que o senhor escolheu uma profissão tão cansativa quanto honrosa. Meu Deus, eu sou humanista, sou um homo humanus, e nada entendo dessas coisas engenhosas, por mais sincero que seja o respeito que lhes voto. Mas imagino que a teoria da sua disciplina deve requerer um cérebro claro, penetrante; e a sua prática, um homem na genuína acepção da palavra. Não é assim?
– Exatamente, é assim mesmo. Não posso deixar de concordar com o senhor – respondeu Hans Castorp, empenhando-se, mau grado seu, em falar com alguma eloquência. – É enorme o que hoje em dia se exige de nós. Nem é bom pensar na extensão dessas exigências, pois do contrário arriscaríamos perder a coragem. Sim senhor, não é brinquedo. E quando uma pessoa não tem uma constituição muito robusta... Olhe, eu estou aqui apenas de visita, mas também não sou dos mais resistentes. Seria mentira se dissesse que me dou perfeitamente bem com o trabalho. Pelo contrário, devo confessar que o esforço me esgota bastante. No fundo, só me sinto à vontade quando nada faço...
– Como, por exemplo, neste momento?
– Neste momento? Ora, acabo de chegar aqui, e ando ainda meio tonto, como o senhor pode imaginar...
- Meio tonto? Ah!...
– Pois é. Não dormi muito bem e, depois, o café da manhã foi muito reforçado... Estou acostumado a uma primeira refeição abundante, mas a de hoje parece que foi completa demais para mim, too rich, como dizem os ingleses. Numa palavra, eu me sinto um pouco angustiado. E ainda houve o charuto que, esta manhã, não me deu prazer nenhum. Imagine! Coisa que quase nunca me acontece, a não ser quando estou seriamente doente. E hoje o charuto estava com gosto de couro! Tive de jogá-lo fora, não adiantava forçar. O senhor fuma, se me posso permitir a pergunta? Não? Então não pode ter idéia do aborrecimento e da decepção que um caso desses provoca numa pessoa que desde a juventude gosta tanto de fumar, como eu...
– Não tenho nenhuma experiência nesse campo – replicou Settembrini –, e com essa inexperiência não me acho em má companhia. Grande número de espíritos nobres e esclarecidos detestaram o tabaco. O próprio Carducci antipatizava com ele. Mas nesse ponto o senhor encontrará plena compreensão por parte do nosso Radamanto, que é um partidário do seu vício.
- Meu vício? Não diga isso, Sr. Settembrini.
– Por que não? É preciso chamar as coisas pelos seus nomes verdadeiros, e fazê-lo energicamente. Isto fortifica e eleva a vida. Também eu tenho vícios.
– O Dr. Behrens é, então, um apreciador de charutos? Que homem simpático!
– O senhor acha? De modo que já travou conhecimento com ele...
– Já. Faz pouco tempo, antes de sairmos. Foi quase uma consulta, mas sine pecunia, sabe? Ele notou imediatamente que estou bastante anêmico, e me deu o conselho de seguir, aqui, o mesmo regime que meu primo: passar muito tempo estendido na sacada e também tomar a minha temperatura. Assim me disse.
– Realmente? – gritou Settembrini. – Que maravilha! – exclamou então, rindo-se às gargalhadas, com o rosto levantado para céu. – Como se diz na ópera de seu mestre: “Sou caçador de pássaros, sempre risonho, sempre alegre!” Escute, essa é mesmo divertida. E o senhor seguirá o conselho? Claro! Por que deixaria de fazê-lo? É esperto como o diabo, esse Radamanto! Com efeito, “sempre alegre”, se bem que às vezes de uma alegria meio forçada. Tem tendência para a melancolia. Seu vício não lhe faz bem (se fizesse não seria um vício), e o tabaco torna-o merencório. É por isso que nossa reverenda superiora se encarregou da administração das suas provisões de fumo e lhe concede somente pequenas rações diárias. Dizem que de vez em quando ele sucumbe à tentação de lhe roubar uns charutos a mais, e nesse caso cai em melancolia. Numa palavra: uma alma atarantada. O senhor já conhece a nossa enfermeira-chefe? Não? Que lástima! Seria imperdoável da sua parte, se não solicitasse honra de lhe ser apresentado. Ela pertence à estirpe dos Von Mylendonk, prezado senhor! Da Vênus de Médicis distingue-se num único ponto: no lugar onde a deusa mostra os seios, costuma a enfermeira-chefe usar um crucifixo.
– Ah, ah, essa é boa! – riu-se Hans Castorp.
– E seu prenome é Adriática.
– Ainda isso? – exclamou Hans Castorp. – Francamente, extraordinário. Von Mylendonk e Adriática. É como se fosse uma pessoa morta há muito tempo. Parece até medieval.
- Meu caro senhor – retrucou Settembrini –, aqui existe muita coisa que “parece medieval”, para usar a sua expressão. Tenho para mim que foi exclusivamente o seu senso de estilo que fez o nosso Radamanto nomear esse fóssil diretora do seu Museu de Horrores. Pois ele é artista. Não sabia disso? Pinta a óleo. Que quer? Não é proibido, não é? Cada um tem plena liberdade de fazê-lo... Dona Adriática diz a todos quantos querem ouvi-la, e também aos que não querem, que em meados do século XIII houve uma Mylendonk que era abadessa de um convento em Bonn, às margens do Reno. Ela mesma não pode ter nascido muito tempo depois dessa época...
– Ah, ah, ah! Acho que o senhor é muito irônico, Sr. Settembrini.
– Irônico? Quer dizer: malicioso. Sim, sou um pouco malicioso – disse Settembrini. – Lamento apenas que me tenham condenado a desperdiçar a minha malícia com assuntos tão miseráveis. Espero que o senhor não se oponha à malícia, meu caro engenheiro. A meu ver, é ela a mais esplêndida arma da razão na luta contra as potências das trevas e da fealdade. A malícia, senhor, é o espírito da crítica, e a crítica representa a origem do progresso e do esclarecimento. – E de súbito pôs-se a discorrer sobre Petrarca, a quem chamou de “pai dos tempos modernos”.
– Mas acho que está na hora do repouso – disse Joachim, ponderadamente.
O escritor acompanhara suas palavras de expressivos gestos da mão. Nesse momento concluiu a mímica, apontando para Joachim e dizendo:
– O nosso tenente dá o sinal do serviço. Vamo-nos, então! Temos o mesmo caminho, “à direita, aquele que busca os muros de Dis, o Poderoso”. Ah, Virgílio, Virgílio! Ninguém o superou, meus senhores! Acredito no progresso, certamente, mas Virgílio dispõe de adjetivos que nenhum moderno encontraria... – Enquanto regressavam, começou a recitar versos latinos com pronúncia italiana. Interrompeu-se, porém, quando se encontraram com uma mocinha qualquer, aparentemente uma aldeã, e de modo algum notável pela sua beleza. Abriu então um sorriso donjuanesco e meteu-se a cantarolar. – Ts, ts, ts – estalou a língua. – Ai, ai, ai! Oh la la! Moscazinha bonitinha, quer ser minha? Vejam só, “seus olhos brilham à luz furtiva” – citou sabe Deus que autor, e enviou um beijo em direção à jovem, que lá se ia, toda confusa.
“Que grande doidivanas!”, pensou Hans Castorp, e não mudou a sua opinião, quando Settembrini, após esse acesso de galantaria, voltou a dizer mal. Tinha uma birra especial contra o Dr. Behrens. Criticou-lhe o tamanho dos pés e ironizou o título de conselheiro áulico que recebera de um príncipe que sofria de tuberculose cerebral. A região inteira falava ainda da vida escandalosa que levara esse príncipe, Radamanto fizera vista grossa, à maneira mais perfeita de um cortesão. A propósito, sabiam os senhores que Behrens foi o inventor da temporada de verão? Ele e mais ninguém! Honra ao mérito! Antigam apenas os fiéis entre os mais fiéis passavam o estio nesse vale. Porém, “o nosso humorista”, na sua clarividência incorruptível, verificou que esse inconveniente era somente o resultado de um preconceito, e estabeleceu a teoria segundo a qual, pelo menos no que tocava ao sanatório, a cura de verão era não só recomendável, mas até sumamente eficaz e mesmo imprescindível. Soube lançar essa teoria, divulgou-a por meio de artigos de jornal e interessou a imprensa por ela. De então, os negócios marcharam igualmente bem no verão como inverno. – É um gênio – disse Settembrini. – In-tu-ição! – exclamou, e a seguir se pôs a achincalhar os demais estabelecimentos do lugar, elogiando, num tom cáustico, o espírito negocista dos seus donos. Havia lá o Professor Kafka... Todos os anos, na época crítica do degelo, quando grande número de pensionistas queria partir, o Professor Kafka via-se forçado a fazer uma viagem de oito dias, mas prometia outorgar as autorizações de alta logo após o seu regresso. Entretanto, permanecia ausente durante seis semanas, e os desgraçados a esperar, enquanto cresciam -seja dito entre parênteses – as suas contas. Certa vez, Kafka foi chamado a Fiume, para examinar um doente, mas não se pôs a caminho antes que lhe garantissem uns bons cinco mil francos suíços, e entre uma coisa e outra passaram-se quinze dias. E no seguinte ao da chegada do insigne mestre, faleceu o paciente. Quanto ao Dr. Salzmann, este dizia à boca pequena que o Professor Kafka mantinha limpas as suas seringas de injeção, a ponto de infeccionar os enfermos. “Ele usa pneumáticos nas rodas de seu coche”, afirmava Salzmann, “para que seus mortos não o ouçam.” Ao que Kafka replicava que no sanatório de Salzmann obrigavam os pacientes a um consumo muito intenso do “fruto consolador da vinha” (igualmente na intenção de lhes arredondarem as contas), de maneira que ali a gente morria como moscas, não de tísica, mas de cirrose do fígado...
Enquanto Settembrini prosseguia no mesmo tom, Hans Castorp ria-se jovialmente e sem malícia, ao ouvir essa catadupa de eloqüência blasfema. A linguagem do italiano tinha um som particularmente agradável, na sua absoluta pureza e correção, livres de qualquer sotaque. Dos seus lábios volúveis, as palavras brotavam cheias, distintas e como que recém-feitas. O próprio Settembrini gozava com as locuções e formas cultas, vivas e sardônicas, de que se servia; até mesmo a flexão e conjugação gramatical dos vocábulos causavam-lhe evidente prazer, que era ao mesmo tempo expansivo e contagioso. Seu espírito parecia por demais claro e concentrado, para que lhe pudesse ocorrer, uma vez sequer, perder o fio.
– O senhor fala com tanta graça, Sr. Settembrini – disse Hans Castorp – e com tamanha vivacidade... Não sei como chamar esse seu jeito de falar...
– Plástico, não é? – respondeu o italiano, abanando-se com o lenço, apesar da temperatura bastante fresca. – Esta deve ser a palavra que o senhor procura. Quer dizer que eu falo de um modo plástico... Mas que é isto? – exclamou. – Que é que estou vendo? Ali deambulam os nossos juízes do inferno. Que visão!
Os três já haviam dobrado a curva do caminho. Seria em virtude dos discursos de Settembrini? Ou por causa do declive? Ou talvez se tivessem afastado do sanatório menos do que parecera a Hans Castorp? (Todo caminho que trilhamos pela primeira vez é muito mais longo do que o mesmo caminho quando já o conhecemos.) Fosse como fosse, o regresso realizara-se com uma rapidez surpreendente... Settembrini tinha razão. Os que ali caminhavam pelo largo que se estendia atrás do sanatório eram os dois médicos. O Dr. Behrens ia à frente – com o jaleco branco e a nuca saliente, agitando os braços como se fossem remos. O Dr. Krokowski seguia-lhe as pegadas, trajando o blusão preto e lançando em torno de si olhares tanto mais orgulhosos quanto mais a ética profissional o obrigava a manter-se atrás do chefe quando estava de serviço.
– Ah, Krokowski! – gritou Settembrini. – Lá vai ele conhece todos os segredos das nossas damas. Não deixem de reparar refinado simbolismo da sua vestimenta. Ele anda de preto para indicar que o seu peculiar campo de estudos são as trevas. Esse homem tem na cabeça um único pensamento, e esse pensamento é sórdido. Como é possível, prezado engenheiro, que ainda não tenhamos falado dele? O senhor já chegou a conhecê-lo?
– E agora? Estou disposto a acreditar que também ele lhe agrada.
– Francamente, Sr. Settembrini, não sei. Falei com ele apenas poucos instantes, e não tenho o hábito de formar uma opinião precipitada. Costumo olhar a gente e pensar: “Então és assim? Muito bem”.
– Isto é pura apatia – respondeu o italiano. – Por que não julga? É para esse fim que a natureza lhe deu os olhos e o cérebro. O senhor achou que eu era malicioso, mas quando eu falava assim talvez o fizesse com intenções pedagógicas. Nós, os humanistas temos todos uma veia pedagógica... Meus senhores, o laço histórico entre o humanismo e pedagogia é a prova do laço psicológico que existe entre ambos. Não convém privar os humanistas da sua função educadora... Não se lhes pode arrebatar essa função, porque só entre eles se encontra a tradição da dignidade e da beleza do Homem. Um dia, o humanista substituiu o sacerdote, que numa época sombria e misantrópica ousara arrogar-se a direção da juventude. Desde então, senhores não surgiu mais nenhum tipo novo de educador. O ginásio humanista – o senhor pode me chamar de reacionário, meu caro engenheiro, mas, por princípio, in abstracto, queira compreender-me bem, continuo seu adepto...
Ainda no elevador, o italiano prosseguiu no desenvolvimento do seu tema, e não se calou senão quando os primos, no segundo andar, se despediram dele. Settembrini ia até o terceiro, onde, como contou Joachim, habitava um quartinho situado na parte traseira do sanatório.
– Então não tem muito dinheiro? – perguntou Hans Castorp, que também entrara no quarto de Joachim, totalmente igual ao seu.
– Acho que não – respondeu o primo. – Ou pelo menos só o necessário para pagar a pensão. Seu pai já era escritor, sabe? e se não me engano, também o avô.
– Ora, nesse caso... – disse Hans Castorp. – E ele está seriamente doente?
– Ao que saiba, não é coisa perigosa. Mas é um mal persistente e volta uma e outra vez. Já sofre disso faz muitos anos. Uma vez partiu, mas teve que internar-se de novo.
– Coitado! Logo ele que tanto se entusiasma pelo trabalho... E com tudo isso é tão loquaz! Tem tanta facilidade em saltar de um assunto ao outro! Com aquela pequena mostrou-se bastante atrevido. Eu me senti até um pouco chocado. Mas o que disse depois sobre a dignidade humana foi mesmo notável. Tive a impressão de ouvir um discurso solene. Você se encontra frequentemente com ele?
continua pág 042...
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Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
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Capítulo III
Satã
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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