sexta-feira, 21 de julho de 2023

A Montanha Mágica - Satã faz propostas desonrosas (a)

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo III

Satã faz propostas desonrosas

Depois perdeu a consciência. De acordo com o seu relógio de bolso eram três e meia quando o despertou uma conversa atrás da divisão de vidro do lado esquerdo. O Dr. Krokowski, que a essa hora fazia a ronda sem o acompanhamento do conselheiro áulico, falava em russo com o casal mal-educado. Informava-se, como parecia, a respeito do estado do marido e pediu que lhe mostrassem a papeleta da temperatura. Depois prosseguiu na ronda, sem, no entanto, tomar o caminho ao longo da sacada, evitando o compartimento de Hans Castorp e dando uma volta pelo corredor, a fim de entrar pela porta no quarto de Joachim. Hans Castorp sentiu-se um tanto melindrado pelo fato se ver contornado dessa maneira, se bem que não desejasse de modo algum uma entrevista a sós com o Dr. Krokowski. Sem dúvida, estava bem de saúde e não entrava em conta; pois, aqui em cima – pensou ele – estabelecera-se o princípio de não se ver considerado nem despertar interesse quem tivesse a honra de estar são; isso não deixou de agastar o jovem Castorp.
Após ter passado uns dois ou três minutos no quarto de Joachim, o Dr. Krokowski continuou seu caminho, ao longo da sacada. H Castorp ouviu o primo dizer-lhe que estava na hora de se levantar e de preparar-se para o chá da tarde. – Está bem – respondeu e ergueu-se. Mas sentiu-se tonto, por ter permanecido deitado durante tanto tempo. Ao invés de refrescá-lo, a modorra de novo lhe provocara aquele ardor penoso das faces, ao passo que o resto do corpo estava arrepiado, talvez porque não se agasalhara suficientemente. 
Lavou os olhos e as mãos; pôs em ordem os cabelos e as roupas, foi encontrar-se com Joachim, no corredor. 

– Você ouviu esse Sr. Albin? – perguntou, enquanto desciam pela escada.

– Claro! – replicou Joachim. – Deveriam ensinar disciplina a esse sujeito. Perturbou o repouso da tarde com o seu palavrório e excitou as senhoras de tal maneira, que lhes retardou a cura por semanas inteiras. É caso muito grave de insubordinação. Mas quem vai denunciá-lo? Ademais, esse tipo de conversa costuma ser bem recebido pela maioria, pois serve de distração.

– Você acha possível – indagou Hans Castorp – que ele ponha em prática aquele “processo facílimo”, como o chama, e enxerte no corpo um “corpo estranho”? 

– Por que não? – respondeu Joachim. – Impossível não é. Essas coisas acontecem aqui. Dois meses antes da minha chegada, um estudante, que estava no sanatório havia muito tempo, enforcou-se no mato, logo depois de um exame geral. Nos primeiros dias da minha estada, falavam muito do incidente.

Hans Castorp bocejou nervosamente. 

– Hum! Não me sinto bem entre vocês – declarou. – Francamente, talvez nem possa ficar aqui, sabe? e me veja obrigado a partir. Você não me levaria a mal?

– Partir? Que idéia é essa? – gritou Joachim. – Tolice! Mal acaba de chegar. Como quer formar uma opinião logo no primeiro dia? 

– Meu Deus! É ainda o primeiro dia? Já me parece que estou aqui há muito, muito tempo...

– Por favor, não volte a filosofar sobre o tempo! – disse Joachim. – Hoje de manhã me deixou todo confuso. 

– Não se preocupe, já esqueci tudo isso – tornou Hans Castorp. – Todo o vasto complexo. Não tenho mais nenhuma sutileza na cabeça. Aquilo passou... Então, haverá chá agora? 

– Sim, e depois caminharemos até o mesmo banco da manhã. 

– Se Deus quiser. Tomara que a gente não encontre o Settembrini. Sou incapaz de tomar parte numa conversa erudita; isso lhe digo desde já. 

Na sala de refeições, serviam-se todas as bebidas adequadas a essa hora. Miss Robinson tomava novamente o seu chá de roseira brava, vermelho como sangue, enquanto a sobrinha engolia colheradas de iogurte. Além disso havia leite, chá, café, chocolate e mesmo caldo de carne. Por toda parte, os hóspedes, que haviam passado deitados as duas horas após o reforçado almoço, achavam-se ocupados em passar manteiga em grandes fatias de cuca entremeada de passas. 
Hans Castorp pediu chá e embebeu um biscoito nele. Experimentou também um pouco de geleia. Examinou atentamente a cuca com passas, mas estremeceu diante da ideia de comer aquilo. Mais uma vez – a quarta – achava-se sentado no seu lugar, na sala das sete mesas, com a abóbada singelamente pintada. E um pouco mais tarde, às horas, encontrava-se ali pela quinta vez, por ocasião do jantar. O intervalo, curto e insignificante, fora preenchido por um passeio até aquele banco encostado na vertente da montanha, próximo do curso d'água, pelo caminho que a essa hora estava muito frequentado por pensionistas, de maneira que os dois primos tiveram de cumprimentar muita gente. Seguira-se ainda um repouso na sacada, de uns noventa minutos, fugazes e pouco substanciais. 
Para o jantar, mudou cerimoniosamente de traje. Comeu então -sentado entre Miss Robinson e a professora – sopa Julienne, carne frita com legumes, dois pedaços de uma torta que continha simplesmente tudo – amêndoa, creme de manteiga, chocolate, confeitos e maçapão –, bem como um excelente queijo acompanhado de pão integral. Novamente mandou vir uma garrafa de cerveja de Kulmbach. Mas, após ter bebido metade do alto copo, percebeu nitidamente que o lugar que lhe convinha era a cama. A cabeça lhe zunia; suas pálpebras pesavam feito chumbo; o coração batia qual um pequeno timbale e para aumentar a sua tortura, imaginava que a bela Marusja, que inclinando-se para a frente, escondia o rosto na mão adornada com rubi, estava se rindo à sua custa, se bem que ele tivesse feito todos esforços possíveis para não lhe dar motivos. De muitíssima distância ouviu também a Srª. Stöhr contar ou afirmar alguma coisa, que parecia a tal ponto disparatada, que já não atinava com certeza se o seu ouvido o enganava ou se, porventura, as palavras da Srª. Stöhr convertiam em absurdos no seu próprio cérebro. Afirmava ela saber preparar vinte e oito diferentes espécies de molhos para peixe, e ter coragem de se gabar desses conhecimentos, ainda que seu marido lhe tivesse desaconselhado mencioná-los. “Ninguém vai acreditar, e quem acreditar achará a coisa ridícula”. E no entanto queria quebrar o silêncio e professar abertamente que era de fato capaz de preparar vinte e oito espécies de molhos para peixe. Isso pareceu pavoroso ao pobre Hans Castorp. Espantou-se, levou a mão à testa e esqueceu-se por completo de mastigar e deglutir um bocado de queijo Chester com pão integral que tinha na boca. Ainda não o engolira, nem quando se levantou da mesa. 
Saíram pela porta envidraçada da esquerda, aquela porta infeliz que sempre se fechava com estrondo e dava diretamente para o vestíbulo. Quase todos os pensionistas tomaram esse caminho. Parecia que era costume realizar, após o jantar, uma espécie de reunião no vestíbulo e nos salões adjacentes. A maioria dos pacientes mantinha-se de pé, conversando em pequenos grupos. Jogava-se em torno de duas mesas dobráveis, forradas de verde, numa o dominó noutra o bridge; desse último jogo participavam somente pessoas jovens, entre elas o Sr. Albin e Hermine Kleefeld. No primeiro salão havia alguns aparelhos ópticos, destinados a divertir os hóspedes: um estereoscópio, através de cujas lentes se enxergavam fotografias colocadas no seu interior, como, por exemplo, um gondoleiro veneziano de uma plasticidade rígida e sem vida. Em segundo lugar existia ali um caleidoscópio em forma de óculo, a cuja lente se apoiava a vista, enquanto se acionava devagar uma roda denteada, a fim de desencadear uma fantasmagoria multicor e sempre variada de estrelas e arabescos. E finalmente, um tambor giratório, no qual eram introduzidas fitas cinematográficas, e por cujas fendas, abertas dos lados, podia-se ver um moleiro brigando com um limpa-chaminés, um mestre-escola a castigar um menino, um funâmbulo que dava saltos, e um casal de camponeses a dançar uma tirolesa. Hans Castorp, com as mãos frias repousando nas coxas, olhou demoradamente todos esses aparelhos. Também se deteve por alguns instantes na proximidade da mesa de bridge, onde o incurável Sr. Albin, crispando desdenhosamente os lábios, manejava as cartas com os movimentos displicentes de um homem mundano. Num ângulo da sala estava sentado o Dr. Krokowski, a dirigir palavras animadas e cordiais a um semicírculo de senhoras, do qual faziam parte a Srª. Stöhr, a Srª. Iltis e a Srta. Levi. O pessoal da mesa dos “russos distintos” retirara-se ao pequeno salão adjacente, separado da sala de jogo por uma simples cortina, e ali constituía espécie de grupo íntimo. Além de Mme... Chauchat havia ali um cavalheiro lasso, de barba loura, tórax côncavo e olhos esbugalhados, e uma jovem muito morena, de um tipo original e humorístico, com brincos de ouro e cabelos lanosos despenteados. O Dr. Blumenkohl, bem como dois rapazes de ombros caídos, uniram-se a eles. Mme... Chauchat trajava vestido azul com gola de renda branca. Sentada no sofá, atrás da mesa redonda, no fundo do pequeno aposento, formava o centro do grupo. Tinha o rosto voltado para a sala de jogo. Incapaz de contemplar sem reprovação aquela mulher mal-educada, Hans Castorp pensava de si para si: “Ela me lembra qualquer coisa, mas não sei dizer o quê...” Um indivíduo alto, de uns trinta anos, e cujos cabelos já começavam a tornar-se ralos, tocou três vezes seguidas no pequeno piano castanho a marcha nupcial do Sonho de uma noite de verão, e a pedido de algumas senhoras reiniciou pela quarta vez a peça melodiosa, depois de ter fitado profunda e silenciosamente os olhos de cada uma delas. 

– É permitido perguntar como se sente o senhor, meu caro engenheiro? – perguntou Settembrini, o qual, mãos nos bolsos, flanara por entre os hóspedes e agora se aproximava de Hans Castorp. Trazia ainda aquele paletó de fazenda cinzenta parecida com burel, e as calças, claras, enxadrezadas. Sorriu ao dirigir-se a Hans Castorp, que de novo se sentiu como que desembriagado à vista desses lábios finos, contraídos numa expressão zombeteira, sob a curva do negro bigode. Mesmo assim tinha a boca semi-aberta, enquanto os seus olhos injetados fixavam o italiano com um olhar bastante estúpido. 

– Ah! É o senhor? – disse. – O senhor do passeio da manhã, aquele do banco lá em cima, perto da fonte... Claro, logo o reconheci. Quer acreditar – continuou, embora sabendo que não devia dizer uma coisa dessas – que no primeiro momento tomei o senhor por um tocador de realejo?... Foi uma idéia absurda, naturalmente – acrescentou, ao notar que o olhar de Settembrini assumira um caráter frio e perscrutador –, uma rematada bobagem, numa palavra. Ainda não posso compreender por que cargas d'água eu... 

– Não faz mal; fique tranquilo – replicou Settembrini, após um instante de silêncio, durante o qual apenas contemplara o jovem. – E como passou o senhor o dia de hoje, o primeiro dia da sua estada neste sítio de prazeres? 

– Dentro do regulamento, obrigado – respondeu Hans Castorp. – Sobretudo à maneira horizontal, como o senhor costuma dizer. 

Settembrini esboçou um sorriso.

– Pode ser que em certa ocasião me tenha expressado dessa forma – disse então. – Pois é, e achou divertido esse modo de viver?

– Divertido ou aborrecido, conforme... – tornou Hans Castorp. – Isto às vezes é difícil de distinguir, sabe? Absolutamente não cheguei a me aborrecer; para isso o ambiente aqui é animado demais. A gente vê e ouve tanta coisa nova e estranha! Contudo, tenho a impressão de não estar aqui apenas há um dia, mas há muito tempo já... e até me parece que fiquei mais velho e mais inteligente...

– Mais inteligente também? – perguntou Settembrini, alçando os sobrolhos. – Permita a pergunta: quantos anos tem o senhor?

Imaginem! Hans Castorp não sabia. Não podia, nesse instante, recordar a sua idade, apesar de esforços violentos, quase desesperados que fazia para se lembrar. A fim de ganhar tempo, esperou até que a pergunta fosse repetida, e depois respondeu:

– Eu? Quantos anos? Estou no vigésimo quarto ano da... Em breve vou fazer vinte e quatro. Mas desculpe, que estou cansadíssimo – acrescentou. – Cansado é um termo muito eufemístico, quando me refiro ao meu estado. Conhece o senhor essa sensação de sonhar e de saber que se sonha, de querer despertar e não conseguir? É justamente o que se passa comigo. Tenho certeza de ter febre. Não há nenhuma outra explicação. Quer acreditar que ando com os pés frios até os joelhos? Se bem que os joelhos não façam parte dos pés... Perdão, estou totalmente confuso, e isso não é de admirar, quando a gente já de manhã cedo ouve assobios do... do pneumotórax e depois escutar o palavrório do Sr. Albin, e ainda numa posição horizontal. Imagine, não posso me livrar da ideia de que os meus cinco sentidos não merecem confiança, e isto me incomoda ainda mais que o do rosto e os pés frios. O senhor me diga com toda a franqueza: acha possível que a Srª. Stöhr saiba preparar vinte e oito molhos para peixe? Não quero saber se ela é de fato capaz de prepará-los – isto me parece completamente impossível –, mas apenas se realmente afirmou coisa dessas durante o jantar, ou se aquilo é alucinação minha... 

Settembrini olhou-o. Parecia não ter prestado atenção. Novamente seus olhos haviam-se cravado no vazio, tomando rumo fixo e cego. Como fizera durante o passeio da manhã, disse três vezes, num tom irônico e pensativo, “sim, sim, sim” e “vejam só, vejam só, vejam só”, sempre sibilando o “s”. 

– Vinte e quatro, disse o senhor? – perguntou então. 

– Não, vinte e oito – insistiu Hans Castorp. – Vinte e oito molhos para peixe! Não molhos quaisquer, mas justamente molhos para peixe; é o que me parece fantástico. 

– Meu caro engenheiro – disse Settembrini, entre irado e exortador –, trate de se dominar, e me deixe em paz com essas bobagens absurdas. Nada sei dessas coisas, nem quero saber. Vai fazer e quatro, disse o senhor? Hum... Permita-me mais uma pergunta ou talvez uma sugestão despretensiosa, se quer considerar assim. Uma vez que a estadia aqui parece que não lhe convém, uma vez que não se sente bem no nosso meio, nem física nem, se não me engano muito, psiquicamente... que acha o senhor de renunciar à oportunidade envelhecer aqui? Numa palavra, que tal se ainda esta noite preparasse as suas malas e aproveitasse amanhã o trem para ir-se embora? 

– O senhor pensa que eu deva partir? – perguntou Hans Castorp. – Ora, mal acabo de chegar. Não, senhor, como posso formar uma opinião logo no primeiro dia?  


continua pág 057...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Satã faz propostas desonrosas (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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