segunda-feira, 24 de abril de 2023

Memórias do Cárcere - Viagens 10

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos



Volume I 

 Editora Record 

PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 


10


CAPITÃO Mata relacionou-se com a sentinela, um rapazinho. quase garoto, que gesticulava como um macaco e fazia caretas engraçadas. Chamava-se Leite. Resistiu uns dois dias, ouvindo, porém, a gíria da caserna, viu que não estava diante de um paisano, abrandou a desconfiança e entregou os pontos. A passagem de um oficial, entesava-se em demasia, com seriedade cômica. Em seguida examinava os arredores e, afastado o perigo, derreava-se, punha-se a conversar baixinho, como se monologasse. Atirava olhadelas maliciosas ao interlocutor e largava a informação, indiretamente, sem comprometer-se. Ao ser rendido, pilheriava com o substituto: –“Já sabe as ordens. pegar no sono e deixar que estes moços vão para casa; são inocentes, coitados.” Num arrependimento burlesco, emendava-se: –“Estou brincando. Tolice. Daqui não sai nem rato.” Afastava o médio e o indicador da mão esquerda, juntava a eles, em sentido contrário, o médio e o indicador da mão direita, formava uma grade, levava-a à altura dos olhos, para significar que estávamos isolados e era indispensável muito rigor na vigilância. –“Nem rato.” Num instante se militarizava, emproado. No dia seguinte escorregava de novo nos sussurros, familiar, fazendo momices e engolindo o riso. Aparentemente as nossas relações com o exterior findavam na soleira do porta. –“Daqui não saí nem rato.” As vezes, porém, transpúnhamos essa linha divisória, e a sentinela não se mexia.
 
Foi o que sucedeu quando Sebastião Hora surgiu numa esquina próxima, de toalha ao ombro, em companhia de um soldado, subiu alguns degraus de cimento, obliquou num pátio miúdo, passou junto a nós. Saltamos a fronteira, pisamos no alpendre, desejosos de comunicar, mas Hora negou-nos a palavra, afastou-se em silêncio, grave, caminho do banheiro. Voltamos à gaiola, apreensivos. Que diabo seria aquilo? Discutimos, procuramos achar qualquer falta nossa que motivasse tal frieza, recusa a um cumprimento. Nada percebendo, entregamo-nos às pequenas distrações que se iam tornando hábitos e Embrenhei-me na leitura maquinal dos três volumes difíceis.

O faxina trouxe-me as encomendas, entre elas cuecas ordinárias, provavelmente iguais às usadas na caserna, duras como pau. Como vestir aquele suplício? Resignei-me. E decidi compor uma narrativa dos casos diários, contar a viagem a trem, a luz escassa do Recife, as noites de insônia, descrever a figura do capitão Lobo, que ia crescendo em demasia. Além das cuecas, agora havia papel, havia lápis. Mas a composição saía chocha, pingada, insignificante: as pontas dos lápis se quebravam a cada instante e era preciso recorrer aos canivetes do meu companheiro providencial. Bem. Os lápis diminuíam, pontudos e inúteis. daquelas notas arrumadas com esforço grande não sairia uma história. Desinteresse: a inteligência baixava, era uma inteligência distraída, vagabunda, indolente. Valeria a pena excitá-la? Como? Se me fosse possível conseguir um pouco de álcool, talvez desse verossimilhança a Benon Maia Gomes, a Baptista, ao sujeito que mastigava torradas e comia os beiços.

O cigarro era insuficiente. Vivia a encher-me de fumaça e arrancava a custo algumas linhas por dia, em letrinhas acavaladas, economizando papel, utilizando o espaço todo, para que o manuscrito fizesse um volume pequeno e pudesse esconder-se em momento de busca. A atenção se desviava do trabalho moroso, buscava o abscesso que se desenvolvia debaixo da unha do indicador.

Largando a literatura, ocupava-me horas num curativo desastrado com a tesourinha; o dedo, amarelo de nicotina, avermelhava-se de iodo, enrolava-se em esparadrapo. A se cura da boca e a dormência do estômago desapareciam, o aspecto desagradável da comida já não me provocava náuseas. Tentei alimentar-me, venci a tontura, a memória ressurgiu, o nevoeiro mental se adelgaçou e as figuras em redor se destacaram. Mas a deficiência interior persistia, desânimo, indecisão e a certeza de que os papéis laboriosamente rabiscados não teriam préstimo. Além disso capitão Mata parecia multiplicar-se, não tinha um minuto de sossego – e em companhia dele era impossível concentrar-me. Ria, cantava, resolveu fazer também exercícios de composição literária. Como eu lhe censurasse um período cacofônico pelo excesso de quês, resolveu suprimir esta palavra. Com habilidade escreveu à mulher uma carta onde não havia um quê. Contava anedotas, declamava sonetos. Dizia a significação dos toques de corneta, explicava-me que, para fixá-los, os recrutas decoravam versos grotescos. Estes correspondiam à meia-volta:

Quantos dentes tem sagui
Na boca?

E também estes:

Nunca vi mulher parir
Sem homem.

Havia alguns obscenos. Interrompia às vezes as facécias e ensombrava-se; afinal percebi que a corneta lhe produzia verdadeira inquietação. Estremecia ouvindo-a, traduzia-me a linguagem dela, depois serenava, escorregava na palestra, numa cantiga sem pé nem cabeça, repetida sempre. Justificava-se:

– A letra é idiota, mas gosto da música. Bonitinha. Perturbava-se de novo, enrugava a cara, apreensivo:

– Chegou o major fiscal. Chegou o comandante da companhia.

Difícil imaginar porque o agitava a chegada do major fiscal ou do comandante da companhia. Não se tratava, porém, disso. E arrancando palavra aqui, palavra ali, notei a causa da ansiedade: Mata receava o aparecimento de um general no quartel. Apenas. Estranhei ver homem tão loquaz, tão alegre, amofinar-se à toa. Não havia razão, supus. Em seguida modifiquei o juízo. Para um capitão de polícia a vista de um general, em carne e osso, deve ser caso importante demais. As esferas, o regulamento, a ordem do dia esmagam o pequeno oficial deformado pela disciplina, e se este indivíduo se ataranta numa cela, tentando adivinhar os rumores externos e decifrai as gatimônias de uma sentinela condescendente, a imagem do superior enorme torna-se obsessão dolorosa. Essa autoridade invisível, remota, com um rápido mandado nos cortara a vida social, nos trancara, a nós e a Sebastião Hora, que a alguns passos mofava numa prisão de sargentos, com vários outros. Começávamos a perceber que dependíamos exclusivamente da vontade desse cavalheiro. O interrogatório, as testemunhas, as formalidades comuns em processos não apareciam. Nem uma palavra de acusação. Permaneceríamos talvez assim. Com certeza havia motivo para nos segregarem, mas aquele silêncio nos espantava. Porque não figuramos em autos, não arranjavam depoimentos, embora falsos, num simulacro de justiça? Farsas, evidentemente, mas nelas ainda nos deixariam a possibilidade vaga de mexer-nos, enlear o promotor. Um tribunal safado sempre vale qualquer coisa, um juiz canalha hesita ao lançar uma sentença pulha: teme a opinião pública, em última análise o júri razoável. É esse medo que às vezes anula as perseguições. Não davam mostra de querer submeter-nos a julgamento. E era possível que já nos tivessem julgado e cumpríssemos pena, sem saber. Suprimiam-nos assim todos os direitos, os últimos vestígios deles. Desconhecíamos até o foro que nos sentenciava. Possivelmente operava nisso uma cabeça apenas: a do general. E capitão Mata, ouvindo a corneta, se alvoroçava.

Tentei convencê-lo e convencer-me de que não havia razão para sustos. A presença desse homem não nos poderia causar dano: dar-nos-ia algum esclarecimento. Falaríamos a uma pessoa educada, sem dúvida. No desembarque fôramos recebidos por um subalterno – e eu o tomara por oficial, tão cortês se revelara. Todas as manhãs recebíamos a visita do comandante e escutávamos, com ligeiras alterações, as mesmas palavras de amabilidade fria. Capitão Lobo continuava a divergia das minhas ideias, que nunca cheguei a mencionar. Também não consegui, entender bem as dele. Agradava-me, porém, vê-lo, sentir-lhe a franqueza meio rude, a voz clara, o gesto rápido e incisivo, no olhar agudo uma faísca a indicar tendência para descarrilamentos e doidices necessárias. Sob o alpendre passavam figuras rijas e automáticas. Mas as que tinham estado em contato conosco eram compreensivas e humanas. Até a sentinela, a criança galhofeira e estouvada que simulava uma grade com os dedos e resmungava: –“Daqui não sai nem rato.” Até o faxina. Ao desembrulhar as encomendas, eu lhe pedira que aceitasse o troco. O rapaz recusara essa gorjeta sem se formalizar, sem me ofender. Se esses viventes se comportavam assim, porque recearíamos a presença de um general? Certamente o meu companheiro devaneava. Às vezes estava cantarolando:

Onde vais tu, infante (falta um adjetivo), Com teu fuzil a pelejar?

Uma estridência de corneta perturbava-o. E durante minutos, apreensivo, de cara amarrada, abandonava a canção, o almoço, o corte das unhas, os exercícios de estilo em que se esmerava em não usar partículas motivadoras de cacofonias. Eu buscava distraí-lo:

Quantos dentes tem sagui na boca?

A verdade é que também principiava a inquietar-me. Tenho em geral uma espécie de indiferença auditiva, mas aquele desassossego me apanhava.

– Quem foi que chegou?

Não tinha sido ninguém. Era o rancho, o silêncio, a alvorada. Esses sons não tinham para mim nenhuma significação. E todos eles entravam a anunciar inimigos invisíveis.


continua página 47....
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Memórias do Cárcere - Viagens 11
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.


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