Graciliano Ramos
Volume I
Editora Record
PRIMEIRA PARTE
VIAGENS
8
– O comandante chegou.
– Como é que o senhor sabe? estranhei.
Ora! muito fácil: tinha ouvido a corneta. Como o toque me passara despercebido, imaginei-o a divagar.
Admitindo, porém, que ele tivesse considerado um som, tirado consequência dele, não me interessava esclarecer-me a respeito da presença do comandante àquela hora. Julguei isto e enganei-me: ao cabo de meia hora entrou na sala e apanhou-me de surpresa um velho calmo, polido, ar de fria dignidade, o rosto magro. As estrelas, o gesto, o apuro, identificaram-no – e diante dele o meu companheiro entesou-se em posição de sentido. O homenzinho cumprimentou-nos, examinou o aposento, quis saber se nos faltava alguma coisa e permaneceu de pé junto à mesa uns três ou cinco minutos, os minutos aplicáveis à nossa situação, dizendo com lhaneza palavras da hospitalidade regulamentar. Referiu-se à má qualidade da alimentação e desculpou-se.
– Oh! Comandante! Não se preocupe. Tudo está bem. – Não senhor. A comida é ruim, sem exagero. Vai achá-la muito ruim. Tenha paciência: é a que usamos. Não seria difícil mandar buscar outra no restaurante, mas isto é irregular.
Mortificaram-me aquelas minúcias sobre matéria insignificante, desejei mudança de assunto, em vão; o negócio culinário encheu quase toda a pequena entrevista.
– Enfim, como os senhores estão aqui de passagem, podem aguentar uns dias de maus tratos.
Aludiu outra vez, num vago oferecimento, às coisas que nos faltavam, despediu-se e retirou-se. Bem. Tínhamos uma indicação: estávamos ali de passagem. Para onde? Não nos atreveríamos a perguntar isso: a cortesia solene e burocrática revelava claramente que seguíamos os trâmites normais e o despacho viria no momento preciso. Certo o comandante não era responsável pela nossa estada no quartel; julgava-a talvez perturbadora. Mas achava-se no dever de nos visitar pela manhã e dizer algumas frases de pessoa educada. Agradecíamos. Quem era o responsável então? Provavelmente havia muitos, tantos que a responsabilidade se diluía – e ali, trancados, não divisávamos ninguém. Trouxeram-nos uma bandeja. Tomei o leite e o café, mastiguei um pedaço de pão, constrangido, sem notar nessa primeira refeição as deficiências da cozinha, mencionadas em excesso. Levantava-me quando entrou um moço grave, de olhos vivos ligeiramente estrábicos, fumando por uma longa piteira.
– Capitão Lobo.
Passeando da mesa para a janela e da janela para a mesa, deu-nos esclarecimentos:
– Os senhores ficam alojados aqui. Na sala vizinha há um oficial preso. Os senhores prometem não comunicar-se com ele.
Olhei a porta cerrada, o tabique baixo. Facilmente estabeleceríamos comunicação, mas que nos interessava isso, se nem sabíamos quem estava do outro lado? Faríamos sem custo a promessa, mas capitão Lobo não se importou com ela: não nos perguntou se prometíamos, afirmou que prometíamos e encerrou a questão. Esteve meia hora a conversar com volubilidade, afirmativo, às vezes sublinhando a frase com movimentos enérgicos. Não ria, não sorria: as ideias deviam parecer-lhe coisas terrivelmente sérias. Parava para escutar. atento, aprovando ou desaprovando com a cabeça, retomava depois o discurso e o passeio, ambos em linha reta. Curioso que apenas se movesse da mesa para a janela, onde fazia uma ligeira parada, e da janela para a mesa, onde novamente se detinha. Era como se a mesa constituísse uma barreira e o separasse da porta: os seus passos percorriam exatamente metade da sala. Também a fala tinha pequenas pausas, correspondentes àquelas estações, embora
a. o interlocutor se mantivesse calado. Não me animaria a convidá-lo a sentar-se, pois ele figurava
b. o dono da casa, mas puxei uma cadeira, desembaracei-a da roupa e da valise ali postas na
véspera, joguei à cama estes objetos. Ele fingiu não perceber o oferecimento mudo e continuou o exercício invariável.
O comandante se conservara de pé cinco minutos. Agora colaborando na palestra longa, convencia-me de que esses homens não se sentavam na minha presença para eu não me resolver a sentar-me diante deles. Esta certeza me levava a usar cautela, medir as palavras – ea conversa se reduzia quase a um solilóquio.
Impossível qualquer aproximação. Pouco inclinado a desabafos, certamente não ia expandir-me a um desconhecido, talvez disposto a analisar-me. De minha parte observava-o e a observação não me induzia a desconfiança. A linguagem clara, modos francos, às vezes estabanados, a exceder os limites da polidez comum, diziam-me que ali se achava um homem digno. O gesto rijo martelava a ideia, o olho brilhante, ligeiramente oblíquo, donde parecia desprender-se uma faísca de insensatez, fixava-se na gente, insensível e frio. Devia ser um tormento para criaturas dissimuladas suportar aquela dureza metálica de verruma. Não deixou de fumar um instante: deitava fora a ponta de cigarro, introduzia outro na piteira comprida em excesso. Súbito parou o monólogo, ofereceu-nos toalhas e convidou-nos a acompanhá-lo. Atravessamos um corredor, descemos uma pequena escada, chegamos ao pátio interno, paramos, abriu uma porta:
– Os senhores usam este banheiro. Só este.
Chamou um tipo graduado, com duas ou três divisas, e concluiu:
– Podem vir aqui acompanhados por um sargento ou cabo. Adeus.
Eu queria saber se havia inconveniência na compra de alguns troços miúdos que me faltavam. Não havia nenhuma. – Dê as suas encomendas ao faxina. Até amanhã. Entrei, e à porta ficaram capitão Mata e o sujeito das fitas. Lá dentro havia um aparelho sanitário, uma banheira, dois ou três chuveiros. Depois de me banhar, Mata substituiume – e passeei algum tempo no pátio, vigiado pelo guarda, vendo rapazes atirarem bolas a cestas presas ao muro. Em seguida regressamos à sala. Dei ao faxina uma pequena lista de coisas necessárias: papel, lápis, cuecas, lenços, fósforos. cigarros, muitos cigarros e fósforos, pois isto se consumia com grande rapidez. Pedi também um rolo de esparadrapo e iodo: um abscesso debaixo da unha do indicador começava a latejar e doer muito. E tentei acomodar-me àquela monotonia. Cheguei uma cadeira à janela, mergulhei no romance de José Geraldo, consegui ler umas cinqüenta páginas e entendê-las. Mas entendia pouco, a atenção fraquejava, os olhos se desviavam da folha para os dois canhões ornamentais. Além disso capitão Mata me interrompia com freqüência oferecendo-me observações. Tinha entrado rapidamente em contato com soldados e oficiais, falando a gíria deles, usando truques do ofício, informara-se de casos que lhe pareciam interessantes e se apressava a comunicar-me. Sabia que Sebastião Hora, o advogado Nunes Leite e diversos operários se recolhiam numa prisão de sargentos, situada numa esquina próxima. O indivíduo preso na sala contígua à nossa era Xavier, tenente embrulhado em Maceió, com alguns inferiores do 20.º Batalhão. Avizinhando-se do meu companheiro, estrelas e fitas, para mim símbolos mortos, num instante se humanizavam. Os rostos se abriam, sinais imperceptíveis ao observador comum traziam revelações. Por outro lado certas arrogâncias passavam carrancudas no alpendre, atirando-nos de soslaio olhadelas rancorosas.
– Integralistas, afirmava seguro capitão Mata. Admirava-me da conclusão precipitada e acabava admitindo-a. Eram possivelmente integralistas aqueles viventes miúdos, de rostos inexpressivos, quase microcéfalos. Esse caso me insinuou, a respeito da disciplina militar, uma opinião, talvez falsa, que ainda hoje conservo. Nela o rigor é superficial, imagino. Indispensável estarem os sapatos cuidadosamente engraxados, os fuzis brilhantes à custa de lixa e azeite, os colarinhos mais ou menos limpos, todos os botões metidos nas casas, os espinhaços tesos. As pernas direitas devem mover-se simultaneamente, depois as pernas esquerdas, e nenhum dedo se afasta dos outros na continência. É preciso olhar vinte passos em frente, e os passos, em conformidade com a marcha, têm o mesmo número de centímetros. Certo, há outros deveres, mas desse gênero, tendentes à mecanização do recruta. Decoradas certas fórmulas, aprendidos os movimentos indispensáveis, pode o soldado esquecer obrigações, até princípios morais aprendidos na vida civil. O essencial é ter aparência impecável. Desapareceu-lhe o cinturão? Falta grave, embora ele em vão remexa os miolos para saber como a desgraçada correia se sumiu. É obrigado a apresentar-se com ela na formatura. Com ela ou com outra qualquer. Nesse ponto convém desapertar, isto é, agarrar o cinturão do vizinho, que, sendo inábil, será punido, pois o maior defeito do soldado é ser besta. Desenvolvem-se a dissimulação, a hipocrisia, um servilismo que às vezes oculta desprezo ao superior, se este se revela incapaz de notar a fraude ou tacitamente lhe oferece conivência. As minhas observações foram completadas pelos informes do capitão Mata, que, percebendo-me a ignorância, desvendava paciente mistérios simples. Divergimos à hora do almoço, mas logo chegamos a acordo. Diante da bandeja, recuei: diabo, a comida era pavorosa, o comandante tinha razão. Impossível que na mesa dos oficiais pusessem aqueles pratos medonhos.
– Como não? replicou Mata com a boca cheia. A alimentação deles é esta, não tenha dúvida. E está muito boa. Aconselhou-me depois seriamente a engolir aquilo, porque a abstinência poderia ser tomada como desfeita. Consentiu afinal em receber três quartos da minha ração, devorou tudo, enquanto me resignava a mastigar pedaços de carne preta desenxabida, o feijão-preto, duas bananas pretas. De fato ignoro se a bóia era tão ruim como parecia: dois dias de jejum quase completo me embotavam o paladar: a garganta seca se contraía; difícil ingerir a massa desagradável. – Isto deve ser rancho de tropa. Os oficiais não comem semelhante horror.
Novamente o meu companheiro dissentiu – e afirmou que estávamos sendo tratados com muita consideração. Passou a tarde recitando versos, contando anedotas, rindo, mexendo-se, cantarolando, abreviando as horas com a excessiva alegria desarrazoada. Aproveitava-me dos momentos de pausa folheando as brochuras. Decidi ler as três simultaneamente. Marcava a página lida com um fósforo e pegava outro volume. Decerto não havia ali complicações, mas achava-me cada vez mais obtuso, nem chegava a entender bem as pilhérias do capitão.
A noitinha, olhando o jantar, de novo me assaltou a repugnância. Nada me preocupava em excesso. Considerava o futuro, se não com serenidade, pelo menos com indiferença. Contudo o enorme fastio não findava e o apetite do capitão me produzia invencível enjôo. Vinha talvez daí a impossibilidade alarmante de fixar atenção na leitura. E a perda de memória também. As lembranças me apareciam juntas, confusas, sumiam-se de repente, deixando-me no interior dolorosos sulcos negros. Esses hiatos sucediam-se, afastavam-me da realidade, com certeza me davam ar esquisito e vago. Que estaria dizendo o capitão? Porque se animava e se mexia tanto? Ria-me às vezes como um idiota, alheio e distante, receando que ele percebesse a minha fraqueza mental. Além disso a vista escurecia, manchas dançavam-me diante dos olhos, dificultavam-me a leitura. Aquilo devia ser efeito da idade. Envelhecia, provavelmente envelhecia muito depressa. Quando me soltassem, ver-me-ia forçado a trabalhar com óculos. Trabalhar. Trabalhar em quê? Achava-me vazio, imprestável. Desânimo, burrice. Lá fora não conseguiria fazer nada.
continua página 38....
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Leia também:
Memórias do Cárcere - Viagens 8
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Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.
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