segunda-feira, 13 de março de 2023

Memórias do Cárcere - Viagens 9

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos



Volume I 

 Editora Record 

PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 


9


ESSES acontecimentos de três dias foram relatados mais ou menos em ordem, apesar de apresentarem falhas, os lugares surgirem imprecisos, as figuras não se destacarem bem no ambiente novo. A 6 de março, porém, íamos entrando na rotina – e daí em diante não me seria possível redigir uma narração continuada. Menciono a visita do comandante porque ela se tornou um hábito: pela manhã, antes de qualquer outra pessoa, esteve de pé um instante na sala, grave, digno, informou-se a respeito das nossas necessidades e de novo se referiu à comida má, no que foi contestado hipocritamente. Quando ele saiu, chegou capitão Lobo, como sempre aconteceu enquanto ali permanecemos, e renovou o passeio da mesa para a janela da janela para a mesa, a discutir, a pegar-me uma palavra e alargála, às vezes a ameaçar-me com a longa piteira. Foi nesse segundo encontro, suponho que me disse umas coisas duvidosas:

– Respeito as suas ideias. Não concordo com elas, mas respeito-as. 

Olhei-o desconfiado e logo serenei. Tinha-me comprometido em excesso durante largos anos e nada valia tentar desdizer-me, ainda que tivesse este desejo. Desagradava-me pensar que aquele homem vinha falar-me com o intuito de extorquir uma confissão, mas desviei o pensamento malévolo. A sinceridade transparecia no rosto claro, no olhar um tanto vesgo, que se cravava na gente como prego, no gesto amplo. A piteira movia-se continuamente, parecia um martelo a fazer pontas em sílabas duras. Nenhuma razão para desconfiança.

– Quais são as minhas ideias? sorri. Ainda não me expliquei. Estamos a comentar as suas. 

–  Ora! ora! ora! resmungou o capitão num tom indefinível.  

E nada acrescentou. Escusavam-se explicações. A minha estada ali marcava-me. Sem alegar motivos, emprestavam-na certo número de qualidades e tendências. Poderiam, se quisessem, medi-las e pesá-las, mas contentavam-se com afirmações, pelo menos até aquele momento. Com certeza iriam especificar tudo e redigir um processo em regra. Por enquanto apenas a vaga censura, que propriamente nem tinha jeito de censura: uma interjeição repetida. O meu companheiro Mata ia muito além: confessava-me a sua ignorância em revolução (fora preso injustamente, não se cansava de afirmar isto), considerava-me um técnico neste assunto e pedia-me que o instruísse com rapidez. Se me acontecia alegar incompetência, achava-me discreto e modesto. Um fato nesse dia 6 abalou-me, o único de que tenho lembrança clara. A hora do café abri um jornal do Recife e li, em telegrama do Rio, a notícia arrasadora: Prestes havia sido preso na véspera.

– Com todos os diabos! 

Eu não tinha opinião firme a respeito desse homem. Acompanhara-o de longe em 1924, informara-me da viagem romântica pelo interior, daquele grande sonho, aparentemente frustrado. Um sonho, decerto: nenhum excesso de otimismo nos faria ver na marcha heroica finalidade imediata. Era como se percebêssemos na sombra um deslizar de fantasma ou sonâmbulo. Mas essa estranha figura de apóstolo disponível tinha os olhos muito abertos, examinava cuidadosamente a vida miserável das nossas populações rurais, ignorada pelos estadistas capengas que nos dominavam. Defendia-se com vigor, atacava de rijo; um magote de vagabundos em farrapos alvoroçava o exército, obrigado a recorrer aos batalhões patrióticos de Floro Bartolomeu, ao civismo de Lampião. Que significava aquilo? Um protesto, nada mais. Se por milagre a coluna alcançasse vitória, seria um desastre, pois nem ela própria sabia o que desejava. Sabia é que estava tudo errado e era indispensável fazer qualquer coisa. Já não era pouco essa rebeldia sem objetivo, numa terra de conformismo e usura, onde o funcionário se agarrava ao cargo como ostra, o comerciante e o industrial roíam sem pena o consumidor esbrugado, o operário se esfalfava à toa, o camponês aguentava todas as iniquidades, fatalista, sereno. Com certeza essa gente arregalava os olhos espantada – e nos de cima o espanto se mudava em ódio, nos de baixo começava a surgir uma indecisa esperança. As portas das farmácias, nas vilas, discutia-se com entusiasmo o caso extraordinário. Meu tio Abílio, matuto rude, proprietário de caminhões no alto sertão de Pernambuco, estivera uns dias a serviço dos revoltosos, lá para as bandas de Mariana. Assistira a combates, caíra numa emboscada, fugira precipitadamente, levando alguns defuntos no carro. Abílio me havia falado com ardor na disciplina, na ordem, no espírito de justiça que observara no bando foragido. O depoimento desse sertanejo bronco valia mais, para mim, que as tiradas ordeiras da imprensa livre, naturalmente interessada em conservar privilégios, fontes de chantagem, e pouco disposta a esclarecimentos perigosos. Bom que alguns repórteres tivessem rodado nos carros de meu tio. Como isto não sucedera, pouco valiam as mofinas das gazetas. Aceitávamos, pois, as notícias orais, e estas começavam a envolver o guerrilheiro teimoso em prestígio e lenda.

Depois de marchas e contramarchas fatigantes, o exílio, anos de trabalho áspero. E quando, num golpe feliz, vários antigos companheiros assaltaram o poder e quiseram suborná-lo, o estranho homem recusava o poleiro, declarara-se abertamente pela revolução. Lembrava-me dos manifestos em que o lutador fugia às divagações estéreis, largava os aproveitadores, se dizia comunista, pronto a seguir para a União Soviética. Bem. Agora essa criatura singular, incapaz do retrocesso ou hesitação, possuía um roteiro – e, sem olhar atalhos e desvios, andaria seguro para a frente, insensível a estorvos e fadigas, sacrificando-se por inteiro e em consequência nenhum escrúpulo tendo em sacrificar os outros. A experiência obtida na marcha quixotesca muito lhe iria servir Que desgosto causaria aos nossos governos apáticos e cegos quando se decidisse a entrar novamente em ação, dirigido por uma certeza? 

De repente voltava; a Aliança Nacional Libertadora surgia, tinha uma vida efêmera em comícios, vacilava e apagava-se. Estaria essa política direita? Assaltavam-me dúvidas. Muito pequeno-burguês se inflamara, julgando a vitória assegurada, depois recuara. Provavelmente dedicações enérgicas iriam esfriar, amigos ardentes se transformariam depressa em rancorosos inimigos. Seria possível uma associação, embora contingente e passageira, entre as duas classes? Isso me parecia jogo perigoso. Os interesses da propriedade, grande ou pequena, a lançariam com certeza no campo do fascismo, quando esta miséria ganhava terreno em todo o mundo. Em geral a revolução era olhada com medo ou indiferença. Os habitantes da cidade contentavam-se com discursos idiotas, promessas irrealizáveis e artigos safados, animavam-se à toa e depressa desanimavam, seriam capazes de aplaudir demagogos como os que, no princípio do século, defendiam a peste bubônica, a febre amarela e a varíola; as populações da roça distanciavam-se enormemente do litoral e animalizavam-se na obediência ao coronel e a seu vigário, as duas autoridades incontrastáveis. Muitos anos seriam precisos para despertar essas massas enganadas, sonolentas – e a propaganda feita em alguns meses naturalmente fora escassa. Organização precária. Agitação apenas, coisa superficial. Reuniões estorvadas pela polícia, folhas volantes, cartazes, inscrições em muros, pouco mais ou menos inúteis. Lembrava-me de um desses conselhos, negro, a piche: “índios, uni-vos.” Nunca vi maior disparate, pois naquele arrabalde de capital pequena não vivia nenhum índio. Difícil que essas criaturas analfabetas, espalhadas nos cafundós de Mato Grosso e do Amazonas, tomassem conhecimento da legenda. E para que nos serviria a união dos índios, santo Deus? Absurdos semelhantes pressupunham desorientação. Também me parecia que certas palavras de ordem da Aliança Nacional Libertadora haviam sido lançadas precipitadamente. A divisão da terra, por exemplo, seria um desastre na zona de criação do nordeste. Aí a terra vale pouco e praticamente não tem dono; a riqueza é constituída por açudes, casas, currais, gado. O espaço que um animal necessita para alimentar-se na vegetação rala de cardo e favela que veste a planície queimada é enorme. F a madeira indispensável para estabelecer limites escasseia: as raras cercas são de ordinário feitas de ramos secos ou de pedras soltas. Quase nenhuma lavoura: apenas touceiras de milho peco, um triste feijoal e aboboreiras amarelando na vazante dos rios periódicos. Se se oferecesse ao vaqueiro a divisão da terra, ele se alarmaria: o seu trabalho se tornaria impossível. E não podemos admitir, como se tem feito, o regime feudal nesses lugares: o que por lá existe é ainda o patriarcado bíblico. Concebendo essas restrições, tentava convencer-me de que estava em erro. Desejava que me demonstrassem isto: havia talvez falha num ou noutro pormenor, mas na generalidade isto se compensava e desaparecia. Esperava enfim um triunfo casual. Viera a derrota – e agora queria persuadir-me de que findara um episódio e a luta ia continuar. Certamente haveria mais precaução no desempenho do segundo ato. E aquele revés tinha sido conveniente, pois não existia probabilidade de se agüentar no Brasil uma revolução verdadeira. Se ela vencesse internamente, os nossos patrões do exterior fariam a intervenção. Uma escaramuça, portanto. Os ensinamentos adquiridos seriam úteis mais tarde. De qualquer modo era necessário que nos preparássemos. Incluindo-me nesse plural, intimamente me obrigava, embora me reconhecesse um soldado bem chinfrim, jogado à peleja em condições especiais. Realmente não me envolvera em nenhum barulho, limitara-me a conversas e escritas inofensivas, e imaginara ficar nisso. A convicção da própria insuficiência nos leva a essas abstenções; um mínimo de honestidade nos afasta de empresas que não podemos realizar direito. Mas as circunstâncias nos agarram, nos impõem deveres terríveis. Sem nenhuma preparação, ali me achava a embrenhar-me em dificuldades, prometendo mentalmente seguir o caminho que me parecia razoável.

Aquela notícia de poucas linhas num jornal dó Recife me abalava. Ainda não dispunha de meios para avaliar com segurança a inteligência de Prestes: dois ou três manifestos, repreensões amargas aos antigos companheiros, eram insuficientes. Admirava-lhe, porém, a firmeza, a coragem, a dignidade. E sentia que essa grande força estivesse paralisada. – Com os diabos! 

Certamente outros iriam cair, as prisões se encheriam, a ditadura mal disfarçada que humilhava um congresso poltrão grimparia. Anos perdidos. E se a agressão fascista continuasse lá fora, teríamos aqui medonhas injustiças e muita safadeza.

continua página 42....
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

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