domingo, 30 de junho de 2019

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (6)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




VI – DOM FELIPE HENAREZ A DOM FERNANDO





Paris, setembro


A data desta carta lhe dirá, meu caro irmão, que o chefe de sua casa não corre nenhum perigo. Se o massacre dos nossos antepassados no Pátio dos Leões [107] nos fez, contra a vontade, espanhóis e cristãos, legou-nos a prudência dos árabes; e talvez deva eu a minha salvação ao sangue de Abencerragem que ainda corre em minhas veias. O medo tornava Fernando [108] tão bom comediante que Valdez acreditava nos seus protestos. Sem mim, aquele pobre almirante estaria perdido. Os liberais jamais saberão o que é um rei. Mas o caráter desse Bourbon de há muito me é conhecido: quanto mais Sua Majestade nos assegurava sua proteção, mais despertava minha desconfiança. Um verdadeiro espanhol não tem necessidade de repetir suas promessas. Quem muito fala, pretende enganar. Valdez se foi, num navio inglês. Quanto a mim, assim que os destinos de minha querida Espanha ficaram perdidos na Andaluzia, escrevi ao meu procurador na Sardenha para prover a minha segurança. Hábeis pescadores de coral aguardavam-me com um barco, num ponto da costa. Quando Fernando recomendava aos franceses que se apoderassem da minha pessoa, eu já estava na minha baronia de Macumer, entre bandidos que desafiavam todas as leis e todas as vinganças. A última casa hispano moura de Granada tornou a encontrar os desertos da África, e até o cavalo sarraceno, numa propriedade que lhe vem dos sarracenos. Os olhos desses bandidos brilhavam de alegria e de selvagem orgulho ao saber que estavam protegendo, contra a vendeta do rei da Espanha, o duque de Sória, seu senhor, um Henarez, o primeiro que os vinha visitar desde a época em que a ilha pertencia aos mouros, eles que na véspera temiam minha justiça. Vinte e duas carabinas ofereceram-se para alvejar Fernando de Bourbon, esse filho de uma raça ainda desconhecida, no dia em que os abencerragens chegavam, como vencedores, às margens do Loire. Eu julgava poder viver das rendas daquele imenso patrimônio do qual infelizmente tão pouco nos lembramos; mas minha estada demonstrou-me meu erro e a veracidade dos relatórios de Queverdo. O pobre homem tinha vinte e duas vidas a meu serviço e nem um real; savanas de vinte mil jeiras, sem uma casa: florestas virgens e nenhum móvel! Um milhão de piastras e a presença do dono, durante meio século, é o que seria preciso para valorizar aquelas terras magníficas: pensarei nisso. Os vencidos meditam, durante a fuga, sobre si mesmos e sobre a partida que perderam. Ao ver aquele belo cadáver roído pelos monges, meus olhos se encheram de lágrimas: reconhecia nele o triste futuro da Espanha. Soube em Marselha do fim de Riego. [109] Pensei dolorosamente que também minha vida se vai terminar por um martírio, mas longo e obscuro. Será acaso existir, quando não pode uma pessoa consagrar-se ao seu país, nem viver por uma mulher? Amar, conquistar, essa dupla face da mesma ideia, era a lei gravada em nossos sabres, escrita com letras de ouro nas abóbadas de nossos palácios, incessantemente repetidos pelos repuxos que se alteavam em feixes nos nossos tanques de mármores. Essa lei, porém, inutilmente fanatiza meu coração: o sabre está partido, o palácio reduzido a cinzas, a fonte viva travada por areais estéreis.

Eis, pois, o meu testamento: 

Dom Fernando, ides compreender o motivo por que eu refreava vosso ardor, ordenando-vos que permanecêsseis fiel ao rei neto. 

Como teu irmão e teu amigo, suplico-te que obedeças; como vosso senhor, ordeno-vos. Ireis ao rei, pedir-lhe-eis minhas grandezas e meus bens, meu cargo e meus títulos; ele hesitará, talvez, fará algumas caretas reais, mas vós lhe direis que sois amado por Maria de Heredia, e que Maria não pode desposar senão o duque de Sória. Vê-lo-eis então estremecer de alegria: a imensa fortuna dos Heredia impedia-o de consumar minha ruína: assim ela lhe parecerá completa, e vós tereis imediatamente os meus despojos. Desposareis Maria: eu havia descoberto o segredo de nosso mútuo amor contrariado. Por isso, preparei o velho conde para essa substituição. Maria e eu obedecíamos às conveniências e aos desejos de nossos pais. Sois belo como um filho do amor, eu sou feio como um grande de Espanha, sois amado, eu sou objeto de uma repulsa inconfessada; vós em breve tereis vencido a pouca resistência que minha desgraça inspirará, talvez, àquela nobre espanhola. Duque de Sória, vosso antecessor, não vos quer custar nem um pesar, nem vos privar de um maravedi. Como as joias de Maria podem preencher o vácuo que os diamantes de minha mãe farão em nossa casa, mandar-me-eis esses diamantes, que bastarão para assegurar a independência de minha vida, por minha ama de leite, a velha Urraca, a única pessoa que, de entre meus serviçais, quero conservar: só ela sabe preparar bem meu chocolate. 

Durante nossa curta revolução, meus constantes trabalhos haviam limitado minha vida ao necessário e os ordenados do meu cargo bastavam para supri-lo. Encontrareis as rendas destes dois últimos anos nas mãos de vosso intendente. Essa quantia pertence-me: o casamento de um duque de Sória acarreta grandes despesas, nós a partilharemos. Não recusareis o presente de bodas de vosso irmão, o bandido. De resto, tal é minha vontade. A baronia de Macumer, não estando sob a mão do rei da Espanha, permanece minha e me deixa a faculdade de ter uma pátria e um nome se, por acaso, eu quisesse vir a ser alguma coisa. 

Deus seja louvado, são terminados os negócios, a casa de Sória está salva! 

No momento em que nada mais sou do que o barão de Macumer, os canhões franceses anunciam a entrada do duque de Angoulême. Compreendereis, senhor, o motivo pelo qual interrompo aqui minha carta...



Outubro

Ao chegar aqui eu não possuía dez dobrões. Não é bem pequeno o homem de Estado quando, em meio às catástrofes que não soube impedir, mostra uma previdência egoísta? Para os mouros vencidos, um cavalo e o deserto; para os cristãos ludibriados nas suas esperanças, o convento e algumas moedas de ouro. 

Entretanto, minha resignação, por enquanto, é apenas lassidão. Não estou ainda bastante perto do mosteiro para não pensar em viver. Ozalga, pelo sim, pelo não, dera-me cartas de recomendação, entre as quais uma havia para um livreiro que representa para os nossos compatriotas o que Galignani [110] representa aqui para os ingleses. Esse homem conseguiu-me oito alunos a três francos por lição. Vou, pois, à casa dos meus discípulos a cada dois dias, tendo portanto quatro aulas por dia e ganhando doze francos, quantia bem superior às minhas necessidades. À chegada de Urraca, farei a felicidade de algum espanhol proscrito, cedendo-lhe minha clientela. Estou alojado na rue Hillerin-Bertin, em casa de uma pobre viúva que aceita pensionistas. Meu quarto dá para sul e se abre sobre um jardinzinho. Não ouço nenhum barulho, vejo o verdor das plantas e não gasto no total senão uma piastra por dia; estou admirado dos prazeres calmos e puros que gozo nesta vida de Dionísio em Corinto. [111] Desde o despontar do dia até as dez horas, fumo e tomo o meu chocolate, sentado à minha janela, contemplando duas plantas espanholas, um la giesta que se ergue entre um maciço de jasmins: ouro sobre um fundo branco, uma imagem que fará sempre estremecer um rebento de mouros. Às dez horas ponho-me a caminho para lecionar até as quatro. A essa hora volto para jantar, fumo e leio até deitar-me. Posso levar muito tempo nesta vida, que o trabalho e a meditação, a solidão e a sociedade amenizam. Sou, pois, feliz, Fernando; a minha abdicação se realiza sem segundas intenções; não a acompanha nenhum arrependimento, como a de Carlos v, nenhum desejo de recomeçar a partida, como a de Napoleão. Cinco noites e cinco dias passaram por sobre minhas disposições testamentárias, e o pensamento fez deles cinco séculos. As dignidades, os títulos, os bens são para mim como se jamais tivessem existido. Agora que a barreira do respeito que nos separava esboroou-se, posso, querido mano, deixar-te ler em meu coração. Esse coração que a sisudez recobre com uma armadura impenetrável está cheio de ternuras e de dedicações sem destino; nenhuma mulher, porém, o adivinhou, nem mesmo aquela que desde o berço me foi destinada. É esse o segredo de minha ardente vida política. 

À falta de amante, adorei a Espanha. E a Espanha também me escapou! Agora que nada mais sou, posso contemplar o eu destruído, perguntar-me por que veio a mim a vida e quando se irá ela. Por que a raça cavalheiresca, por excelência, pôs no seu último rebento suas primitivas virtudes, seu amor africano, sua cálida poesia? Se a semente deve conservar seu rugoso envoltório sem dar nascimento a uma haste, sem esparzir seus perfumes orientais de uma radiosa corola? Que crime cometi eu antes de nascer, para não inspirar amor a ninguém? Desde o meu nascimento, seria eu, pois, um velho batel, destinado a dar às costas sobre uma praia de áridas areias? Torno a encontrar em minha alma os desertos paternos, iluminados por um sol que os requeima, sem deixar que nada neles cresça. Remanescente orgulhoso de uma raça decaída, força inútil, amor perdido, jovem velho, esperarei, pois, onde estou, melhor do que em qualquer outro lugar, o último favor da morte. Ai de mim! Sob este céu brumoso, nenhuma centelha reanimará a chama em todas estas cinzas. Assim, pois, poderei, numa última frase, dizer como Jesus Cristo: Meu Deus, por que me abandonaste? Palavras terríveis, que ninguém se animou a sondar. 

Imagina, Fernando, como não me sinto feliz por reviver em ti e em Maria! Doravante, eu vos contemplarei com o orgulho de um criador ufano de sua obra. Amem-se muito e sempre e não me deem desgostos: uma tormenta entre ambos causar-me-ia mais dores do que a vocês mesmos. Nossa mãe pressentiu que os acontecimentos, um dia, favoreceriam as suas esperanças. O desejo de uma mãe é talvez um contrato formado entre ela e Deus. De resto não era ela um desses seres misteriosos que se podem comunicar com o céu, dele trazendo uma visão do futuro? Quantas vezes pude ler nas rugas de sua fronte seu desejo de ver Fernando com as honras e os bens de Felipe! Dizia-lhe muitas vezes; ela, porém, me respondia com duas lágrimas e me mostrava as chagas de um coração que nos era devido inteiramente quer a um, quer a outro, mas que um invencível amor entregava somente a ti. Por isso a sua sombra jubilosa há de pairar por sobre as vossas cabeças, quando as inclinardes ante o altar. Virá finalmente acariciar seu Felipe, dona Clara? Bem o vê, ele cede ao seu filho dileto até a moça que com pesar a senhora lhe colocava sobre os joelhos. O que faço agrada às mulheres, aos mortos, ao rei. Deus o queria, portanto nada alteres, Fernando: obedece e cala-te.


p. s. — Recomenda a Urraca de não me chamar de outra forma senão de sr. Henarez. Não digas uma palavra a meu respeito a Maria. Deves ser o único ser vivo que conheça os segredos do último mouro cristianizado, em cujas veias morrerá o sangue da grande família nascida no deserto e que vai extinguir-se na solidão. Adeus.




____________________



Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


_____________________

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

____________________

[107]O massacre de nossos antepassados no Pátio dos Leões: dom Felipe Henarez, o autor desta carta, é um descendente, segundo sua própria afirmação, da outrora poderosa tribo moura dos Abencerragens. As lutas dessa tribo legendária com a dos Zegris teriam apressado a queda do reino de Granada (1480-1492). O amor de um Abencerragem à irmã ou à esposa do soberano Boabdil teria ocasionado o massacre dos principais membros da tribo no famoso Pátio dos Leões, de Alhambra. Esse episódio inspirou a obra de Chateaubriand, O último Abencerragem. 
[108]O Fernando de que se trata aqui é o rei Fernando VII de Espanha (1784-1833). Retido por Napoleão em Valençay, abdicou a favor do irmão deste, José Bonaparte; quando o imperador lhe devolveu a coroa, voltou em 1813 à Espanha para ali restabelecer a monarquia absoluta. Seu despotismo provocou a Revolução Liberal de 1820 — em que dom Felipe Henarez também tomou parte —, que o forçou a outorgar a constituição; ao cabo de três anos, porém, com o auxílio de um exército francês comandado pelo duque de Angoulême conseguiu derrubar as Cortes e inaugurar outro período de reação absolutista, volvendo a ser o rei neto. Uma de suas primeiras medidas nessa ocasião consistiu em ordenar a prisão de Gaetano Valdez y Flores, presidente do conselho de regência eleito pelas Cortes, apesar dos serviços que este prestou à casa real durante o assédio de Cádis. Fugindo à morte certa, Valdez y Flores emigrou para a Inglaterra, de onde só voltou para a Espanha em 1834. 
[109]General Rafael Riego y Núnes: um dos chefes dos patriotas liberais, foi enforcado por ordem de Fernando vii em 1823. 
[110]Galignani: dono de uma livraria da rue Vivienne, que vendia também livros ingleses. 
[111] Esta vida de Dionísio em Corinto: Dionísio ii ou o Jovem, tirano de Siracusa, depois de um reino odioso, foi exilado de sua pátria e retirou-se com os seus tesouros para Corinto.

__________________



Leia também:



Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (5)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (7)


Nenhum comentário:

Postar um comentário