domingo, 9 de junho de 2019

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (4)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




IV – DA MESMA PARA A MESMA








15 de dezembro


Ontem, às duas horas, fui dar um passeio nos Champs-Élysées e no Bois de Boulogne, por uma dessas tardes de outono, como tantas que admiramos nas margens do Loire. Finalmente vi Paris! O aspecto da praça Luís XV é realmente belo, mas desse belo criado pelos homens. Eu estava vestida, melancólica, embora bem-disposta para rir, o rosto calmo sob um chapéu encantador, e de braços cruzados. Não recolhi o menor sorriso, não fiz nenhum pobre rapazinho ficar boquiaberto, ninguém se virou para me ver e, contudo, o carro ia numa lentidão em harmonia com a minha atitude. Engano-me, um duque encantador, que ia passando, deu volta bruscamente ao cavalo. Esse homem que, para o público, salvou minhas vaidades, era meu pai, cujo orgulho, disse ele, acabava de ser agradavelmente lisonjeado. Encontrei minha mãe que, com a ponta dos dedos, fez-me uma saudação que se assemelhava a um beijo. Minha Griffith, que não desconfiava de ninguém, olhava a torto e a direito. Segundo meu modo de ver, uma senhorita deve sempre saber onde pousa o olhar. Eu estava ferida. Um homem examinou muito atentamente minha carruagem sem prestar a menor atenção a mim. Esse lisonjeador era provavelmente algum fabricante de carros. Enganei-me na avaliação das minhas forças: a beleza, esse raro privilégio que somente Deus dá, é mais comum em Paris do que eu pensava. Algumas melindrosas foram graciosamente saudadas. Ante rostos corados, os homens disseram consigo: “Ei-la!”. Minha mãe foi prodigiosamente admirada. Esse enigma tem uma chave, e eu a procurarei. Os homens, querida, de um modo geral pareceram-me muito feios. Os que são bonitos se assemelham a nós, para pior. Não sei qual o gênio fatídico que inventou a sua indumentária: é surpreendente a esquisitice quando a comparamos com a dos séculos precedentes; não tem brilho, nem cor, nem poesia; não impressiona nem os sentidos, nem o espírito, nem a vista, e deve ser incômoda; não tem amplitude e é muito curta. O chapéu, principalmente, me chamou a atenção: é um pedaço de coluna, que não toma a forma da cabeça; mas, segundo me disseram, é mais fácil fazer uma revolução que tornar os chapéus graciosos. A bravura em França recua ante a ideia de usar um chapéu de copa redonda, e, por falta de coragem durante um dia, fica-se toda a vida com a cabeça ridiculamente coberta. E dizem que os franceses são levianos! De resto, os homens são perfeitamente horríveis, seja qual for o chapéu que usem. Não vi senão rostos cansados e duros, nos quais não há nem calma nem tranquilidade; as feições desencontradas e as rugas revelam ambições frustradas, vaidades infelizes. Uma bela fronte é coisa rara. 

— Ah! Eis os parisienses! — dizia eu a miss Griffith.

— São homens bem amáveis e espirituosos — respondeu-me ela. Calei-me. Uma solteirona de trinta e seis anos tem muita indulgência no fundo do coração. 

À noite, fui ao baile e fiquei ao lado de minha mãe, a qual me deu o braço com um devotamento bem recompensado. As honras eram para ela, eu servi de pretexto para as mais agradáveis lisonjas. Ela teve o talento de me fazer dançar com imbecis que me falaram do calor como se eu estivesse gelada, e da beleza do baile como se eu fosse cega. Nenhum deixou de se extasiar ante uma coisa estranha, inaudita, extraordinária, singular, estupefaciente: o ver-me no baile pela primeira vez. Minha toilette que me encantava quando no meu salão branco e ouro eu pavoneava, sozinha, era apenas notada entre as maravilhosas vestimentas da maioria das mulheres. Cada uma delas tinha os seus fiéis, todas se observavam com o canto do olho, várias brilhavam com uma beleza triunfante, como acontecia com minha mãe. No baile uma mocinha é um zero, é somente uma máquina de dançar. Os homens, salvo raras exceções, não são aí melhores do que nos Champs-Élysées. São gastos, suas feições são sem caráter, ou melhor, todas têm o mesmo caráter. Aquelas fisionomias altivas e vigorosas que nossos antepassados ostentam nos seus retratos, eles que à força física aliavam a força moral, não mais existem. Entretanto, havia naquela reunião um homem de grande talento que sobressaía da multidão pela beleza de sua figura, mas que não me causou a viva sensação que devia causar. Não conheço suas obras, e ele não é gentil-homem. Seja qual for o gênio e as qualidades de um burguês ou de um homem enobrecido, não tenho no sangue uma só gota para ele. De resto, achei-o tão ocupado consigo mesmo, e tão pouco com os outros, que me fez pensar que devemos ser coisas e não seres para esses grandes caçadores de ideias. Quando os homens de talento amam, não devem mais escrever, ou então é que não amam. Há qualquer coisa em seu cérebro que tem preferência sobre a sua amada. Pareceu-me ver tudo isso na atitude daquele homem que é, dizem, professor, orador, autor e a quem a ambição transforma em servidor de todas as grandezas. Tomei-lhe o partido imediatamente, achei que era indigno de mim mesma conservar rancor à sociedade por meu pouco sucesso e pus-me a dançar sem nenhuma preocupação. Aliás, gostei de dançar. Ouvi inúmeros mexericos sem maior graça a propósito de pessoas desconhecidas; talvez seja preciso saber muita coisa que ignoro para compreendê-los, pois vi que a maioria das mulheres e dos homens se comprazia intensamente em ouvir ou em dizer certas frases. O mundo oferece uma infinidade de enigmas cuja chave parece difícil encontrar. Há muitos e muitos enredos. Tenho os olhos penetrantes e um ouvido fino, quanto à compreensão, srta. Maucombe, você bem a conhece. 

Voltei fatigada e feliz com essa lassidão. Muito ingenuamente manifestei o estado em que me achava à minha mãe, que me aconselhou não confiasse essas coisas a não ser a ela. 

— Querida filha — disse-me ela —, o bom gosto consiste tanto no conhecimento das coisas que se devem calar como nas que se devem dizer. 

Essa recomendação fez-me compreender quais as sensações cujo segredo devemos calar com todos, e talvez até com a nossa própria mãe. Num relance medi o vasto campo das dissimulações femininas. Posso assegurar-te, querida corça, que com o descaramento de nossa inocência faríamos duas comadres passavelmente espertas. Quantos avisos num dedo pousado sobre os lábios, numa palavra, num olhar. Num momento tornei-me excessivamente tímida. Como! Não poder exprimir a felicidade tão natural, causada pelo movimento da dança. “Mas”, pensei comigo mesma, “que será, então, dos nossos sentimentos?” Deitei-me triste. Sinto ainda vivamente o golpe desse primeiro choque de minha natureza franca e alegre com as duras leis do mundo. Já aqui deixo fios de minha branca lã nos espinhos da estrada. Adeus, meu anjo!





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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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