sexta-feira, 21 de junho de 2019

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, V — Tranquilidade

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Segundo - A Queda



V — 
Tranquilidade 


Monsenhor Bemvindo, depois de se ter despedido da irmã, pegou num dos castiçais de prata que estavam em cima da mesa e entregou o outro ao seu hóspede, dizendo-lhe ao mesmo tempo: 

— Vou conduzi-lo ao seu quarto. 

O homem seguiu-o. 

Como acima dissemos, a casa era dividida de tal modo que para se passar para o oratório, em que ficava a alcova, ou sair dele, era necessário atravessar o quarto do bispo. 

Na ocasião em que ambos o atravessavam, Magloire guardava os talheres de prata no armário que ficava à cabeceira da cama. Era o último serviço que fazia todas as noites antes de se ir deitar. 

O bispo conduziu o hóspede à alcova, onde se via uma cama preparada com toda a limpeza e uma mesinha, sobre a qual o homem pousou o castiçal. 

— Ora vamos — disse-lhe o bispo — durma bem e pela manhã não se vá sem primeiro tomar uma chávena de leite quente das nossas vacas. 

— Muito obrigado, senhor cura — respondeu o homem. 

Mal proferira, porém, estas palavras cheias de serenidade, teve de repente e sem transição um movimento impetuoso, que gelaria de susto as duas boas mulheres, se dele fossem testemunhas. Ainda mesmo hoje é para nós difícil fixar a causa que, naquele momento, operava sobre ele. Seria acaso sua intenção fazer uma advertência ou uma ameaça? Teria obedecido a uma espécie de impulso instintivo e para ele mesmo obscuro? A verdade é que se voltou de repente para o velho, cruzou os braços e, fitando-o com um olhar selvagem, exclamou com voz rouca: 

— Então recolhe-me em sua casa e dá-me um quarto assim tão próximo do seu? — E, interrompendo-se, acrescentou com um sorriso em que havia o que quer que fosse de monstruoso: — Já pensou bem? Quem lhe assegura que eu não seja um assassino? 

— Isso só pertence a Deus! — respondeu o bispo. 

Depois, com a maior gravidade, elevou os dois dedos da mão direita e, mexendo os lábios como quem reza ou fala consigo mesmo, abençoou o homem, que não se inclinou. Em seguida, e sem voltar a cabeça, dirigiu-se para o seu quarto. 

Sempre que na alcova ficava alguém, Magloire tinha o cuidado de correr uma corna que havia no oratório, ocultando assim inteiramente o altar. O bispo, ao passar por diante da cortina, ajoelhou e fez uma breve oração. 

Um momento depois, encontrava-se a passear no quintal, meditando, contemplando, com a alma e o pensamento alheados nessas sublimes e misteriosas coisas que Deus mostra de noite aos olhos que velam. 

Quanto ao hóspede, estava realmente tão cansado que nem se aproveitou dos lençóis lavados. Apagou a luz com um sopro das ventas, segundo o uso dos forçados e arou-se vestido para cima da cama, adormecendo logo profundamente. 

Batia meia-noite quando o bispo, interrompendo o seu costumado passeio no jardim, entrou no seu quarto. 

Decorridos mais alguns minutos, a casa jazia no mais profundo silêncio.





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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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