sexta-feira, 7 de junho de 2019

Gente Pobre - 41. Oh meu anjo querido! - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


41.




28 de setembro




Minha querida Bárbara Alexeievna:



Eu, isto é, o joalheiro diz que... está bem. Quanto a mim, infelizmente apenas tenho a comunicar-lhe que estou doente e não me posso levantar. E logo agora, que há tanto que fazer e a minha amiga precisa do meu auxílio é que havia de adoecer! Não parece um absurdo? 

Comunico-lhe também que, para cúmulo da infelicidade, sua excelência deu-lhe hoje para estar maldisposto; zangou-se com Emelia Ivanovitch e ralhou-lhe tanto que o pobre, no fim, mostrava-se extremamente sucumbido. Metia pena! Como vê, conto-lhe tudo. 

Queria escrever mais, mas receio roubar-lhe tempo que pode dedicar a outras coisas. Sou um homem simples, um ignorante, sem cultura, que escreve ao correr da pena, conforme as ideias lhe vêm à cabeça, de modo que a minha boa amiga, por vezes, há de notar alguns disparates. Não sei o que quero dizer... Ah, já me lembro: precisamos agora tanto de conversar! 

Seu



Makar Alexeievitch








28 de setembro





Querida Bárbara Alexeievna:



Encontrei hoje a Fédora e estive a conversar com ela, meu anjo. Contou-me que se realiza amanhã o seu casamento e que depois de amanhã segue viagem. O senhor Buikov já alugou os cavalos. 

Muito bem, já lhe contei o incidente com sua excelência. Estive a verificar as contas de madame Chiffon; estão certas, mas levou muito caro. Mas porque é que o senhor Buikov se zanga consigo? Olhe, desejo-lhe muitas felicidades, querida! Que a sorte a proteja sempre é a minha maior alegria; é verdade, a sua felicidade será sempre para mim motivo de satisfação. Bem queria ir amanhã à igreja, mas não posso; é demasiado violento. 

Mas como havemos de continuar a corresponder-nos? Insisto outra vez neste ponto. Quem se há de encarregar de fazer chegarem ao seu destino as nossas cartas? 

Sim, a Bárbara tem sido muito amiga da Fédora. Tem-na tratado com toda a deferência e bondade. Tal procedimento é bem digno de si. Deus abençoa-nos sempre que praticamos uma boa ação. Nada fica sem recompensa e a virtude recebe sempre o divino galardão. 

Querida, meu amor! Tinha ainda muitas coisas para lhe dizer; passaria minutos e horas seguidas a escrever-lhe; por minha vontade estaria sempre a escrever-lhe. 

Ainda tenho aqui um livro seu — Contos de Bielkin — que me esqueci de lhe devolver. Mas peço-lhe, meu anjo, que mo deixe cá ficar; não mo tire, ofereça-mo! Não é que sinta gosto de tornar a ler esses contos; mas, como sabe, o, inverno está à porta, as noites são grandes e a tristeza invade-nos... Então, farme-á muito bem dispor de um livro para ler. 

Como sabe, vou mudar deste quarto para a casa onde você morou, onde a Fédora me alugará um compartimento. Jamais me separarei desta honrada e boa velhinha. Demais, trabalha tanto! Ontem percorri os seus antigos aposentos demoradamente. Ainda se vê lá o bastidor com o trabalho principiado. Deixamos tudo exatamente como estava. Demorei-me também a ver os seus bordados. Ainda por lá ficaram uns restos de coisas. Dei com uma carta minha com linhas enroladas nela. Na sua mesinha encontrei uma folha de carta em que a Bárbara escrevera: «Meu querido Makar Alexeievitch: Apresso-me...» E nada mais. Certamente entrara alguém no momento em que principiava a carta. No canto, separada por um biombo, está a sua caminha... Oh meu anjo querido! 

Bem, com isto, adeus, adeus. Por amor de Deus, escreva-me alguma coisa em resposta à minha carta, o mais breve possível!



Makar Dievuchkin



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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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