quinta-feira, 13 de junho de 2019

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXIX - Manhã

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 







MANHÃ


Alta Alvorada. – Os últimos nevoeiros 
A luz que nasce levemente espalha; 
Move-se o bosque, a selva que farfalha 
Cheia da vida dos clarões primeiros.

Da passarada os vôos condoreiros, 
Os cantos e o ar que as árvores ramalha 
Lembram combate, estrídula batalha 
De elementos contrários e altaneiros.

Vozes, trinados, vibrações, rumores 
Crescem, vão se fundindo aos esplendores 
Da luz que jorra de invisível taça.

E como um rei num galeão do Oriente 
O sol põe-se a tocar bizarramente 
Fanfarras marciais, trompas de caça.





RIR!


Rir! Não parece ao século presente 
Que o rir traduza, sempre, uma alegria... 
Rir! Mas não rir como essa pobre gente 
Que ri sem arte e sem filosofia.

Rir! Mas com o rir atroz, o rir tremente 
Com que André Gil eternamente ria. Rir! 
Mas com o rir demolidor e quente 
Duma profunda e trágica ironia.

Antes chorar! Mais fácil nos parece. 
Porque o chorar nos ilumina e nos aquece 
Nesta noite gelada do existir.

Antes chorar que rir de modo triste... 
Pois que o difícil do rir bem consiste 
Só em saber como Henri Heine rir!...





IDEAL COMUM 
               (Soneto escrito em colaboração com Oscar Rosas).


Dos cheirosos, silvestres ananases 
De casca rubra e polpa acidulosa, 
Tens na carne fremente, voluptuosa, 
Os aromas recônditos, vivazes.

Lembras lírios, papoulas e lilases; 
A tua boca exala a trevo e a rosa, 
Resplende essa cabeça primorosa 
E o dia e a noite nos teus olhos trazes.

Astros, jardins, relâmpagos e luares 
Inundam-te os fantásticos cismares, 
Cheios de amor e estranhos calafrios;

E teus seios, olímpicos, morenos, 
Propinando-me trágicos venenos, 
São, como em brumas, solitários rios.




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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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