Machado de Assis
Dom Casmurro
Capítulo LXXIII
O Contra-Regra
O destino não é só dramaturgo, é também o seu próprio contra-regra, isto é, designa a entrada dos personagens em cena, dá-lhes as cartas e outros objetos, e executa dentro os sinais correspondentes ao diálogo, uma trovoada, um carro, um tiro. Quando eu era moço, representou-se aí, em não sei que teatro, um drama que acabava pelo juízo final. O principal personagem era Ashaverus, que no último quadro concluía um monólogo por esta exclamação: “Ouço a trombeta do arcanjo!” Não se ouviu trombeta nenhuma. Ashaverus, envergonhado, repetiu a palavra, agora mais alto, para advertir o contra-regra, mas ainda nada. Então caminhou para o fundo, disfarçadamente trágico, mas efetivamente com o fim de falar ao bastidor, e dizer em voz surda: “O pistão! o pistão! o pistão!” O público ouviu esta palavra e desatou a rir, até que, quando a trombeta soou deveras, e Ashaverus bradou pela terceira vez que era a do arcanjo, um gaiato da platéia corrigiu cá de baixo: “Não, senhor, é o pistão do arcanjo!”
Assim se explicam a minha estada debaixo da janela de Capitu e a passagem de um cavaleiro, um dândi, como então dizíamos. Montava um belo cavalo alazão, firme na sela, rédea na mão esquerda, a direita à cinta, botas de verniz, figura e postura esbeltas: a cara não me era desconhecida. Tinham passado outros, e ainda outros viriam atrás; todos iam às suas namoradas. Era uso do tempo namorar a cavalo. Relê Alencar: “Porque um estudante (dizia um dos seus personagens de teatro de 1858) não pode estar sem estas duas coisas, um cavalo e uma namorada.” Relê Álvares de Azevedo. Uma das suas poesias é destinada a contar (1851) que residia em Catumbi, e, para ver a namorada no Catete, alugara um cavalo por três mil-réis... Três mil-réis! tudo se perde na noite dos tempos!
Ora, o dândi do cavalo baio não passou como os outros; era a trombeta do juízo final e soou a tempo; assim faz o Destino, que é o seu próprio contra-regra. O cavaleiro não se contentou de ir andando, mas voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de Capitu, e olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava, a cabeça do homem deixava-se ir voltando para trás. Tal foi o segundo dente de ciúme que me mordeu. A rigor, era natural admirar as belas figuras; mas aquele sujeito costumava passar ali, às tardes; morava no antigo Campo da Aclamação, e depois... e depois... Vão lá raciocinar com um coração de brasa, como era o meu! Nem disse nada a Capitu; saí da rua à pressa, enfiei pelo meu corredor, e, quando dei por mim, estava na sala de visitas.
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Dom Casmurro: Capítulo LX / Querido Opúsculo
Dom Casmurro: Capítulo LXI / A Vaca de Homero
Dom Casmurro: Capítulo LXII / Uma Ponta de Iago
Dom Casmurro: Capítulo: LXIII / Metades de um Sonho
Dom Casmurro: Capítulo LXIV / Uma Ideia e um Escrúpulo
Dom Casmurro: Capítulo LXV / A Dissimulação
Dom Casmurro: Capítulo LXVI / Intimidade
Dom Casmurro: Capítulo LXVII / Um Pecado
Dom Casmurro: Capítulo LXVIII / Adiemos a Virtude
Dom Casmurro: Capítulo LXIX / A Missa
Dom Casmurro: Capítulo LXX / Depois da Missa
Dom Casmurro: Capítulo LXXI / Visita de Escobar
Dom Casmurro: Capítulo LXXII / Uma Reforma Dramática
Dom Casmurro: Capítulo LXXIV / A Presilha
Dom Casmurro: Capítulo Primeiro DO TÍTULO
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Texto de referência:
Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.
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Leia também:
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