Simone de Beauvoir
54. Fatos e Mitos
Capítulo III
O MITO da mulher desempenha um papel considerável na literatura; mas que importância tem na vida quotidiana? Em que medida afeta os costumes e as condutas individuais? Para responder a essas perguntas seria necessário determinar as relações que mantém com a realidade.
Há diversas espécies de mitos. Este, sublimando um aspecto imutável da condição humana que é o "seccionamento" da humanidade em duas categorias de indivíduos, é um mito estático; projeta em um céu platônico uma realidade apreendida na experiência ou conceitualizada a partir da experiência. Ao fato, ao valor, à significação, à noção, à lei empírica, ele substitui uma Ideia transcendente, não temporal, imutável, necessária. Essa ideia escapa a qualquer contestação porquanto se situa além do dado; é dotada de uma verdade absoluta. Assim, à existência dispersa, contingente e múltipla das mulheres, o pensamento mítico opõe o Eterno Feminino único e cristalizado; se a definição que se dá desse Eterno Feminino é contrariada pela conduta das mulheres de carne e osso, estas é que estão erradas. Declara-se que as mulheres não são femininas e não que a Feminilidade é uma entidade. Os desmentidos da experiência nada podem contra o mito. Entretanto, de certa maneira, este tem sua fonte nela. Assim é exato que a mulher é outra e essa alteridade é concretamente sentida no desejo, no amplexo, no amor; mas a relação real é de reciprocidade; como tal, ela engendra dramas autênticos: através do erotismo, do amor, da amizade e suas alternativas de decepção, ódio, rivalidade, ela é luta de consciência que se consideram essenciais, é reconhecimento de liberdades que se confirmam mutuamente, é a passagem indefinida da inimizade à cumplicidade. Pôr a Mulher é pôr o Outro absoluto, sem reciprocidade, recusando contra a experiência que ela seja um sujeito, um semelhante.
Na realidade concreta, as mulheres manifestam-se sob aspectos diversos; mas cada um dos mitos edificados a propósito da mulher pretende resumi-la inteiramente. Cada qual se afirmando único, a conseqüência é existir uma pluralidade de mitos incompatíveis e os homens permanecerem atônitos perante as estranhas incoerências da ideia de Feminilidade; como toda mulher participa de uma pluralidade desses arquétipos que, todos, pretendem encerrar sua única Verdade, os homens reencontram, assim, ante suas companheiras o velho espanto dos sofistas que mal compreendiam que o homem pudesse ser louro e moreno a um tempo. A passagem para o absoluto já se exprime nas representações sociais. As relações aí se fixam facilmente em classes, as funções em tipos, assim como na mentalidade infantil as relações fixam-se em coisas. Por exemplo, a sociedade patriarcal, apoiada na conservação do patrimônio, implica necessariamente, ao lado de indivíduos que detêm e transmitem os bens, a existência de homens e mulheres que os arrancam a seus proprietários e os fazem circular; os homens — aventureiros, vigaristas, ladrões, especuladores — são geralmente condenados pela coletividade; as mulheres, usando de sua atração erótica, têm a possibilidade de convidar os jovens, e até os pais de família, a dissiparem seu patrimônio sem sair da legalidade; apropriam-se de sua fortuna ou captam sua herança; sendo esse papel considerado nefasto, chamam "mulheres más" as que o desempenham. Na realidade, elas podem, ao contrário, apresentar-se em outro lar — o do pai, o do irmão, do marido ou do amante — como um anjo da guarda; tal ou qual cortesã, que explora ricos financistas, é um mecenas para pintores e escritores. A ambiguidade da personagem de Aspásia, de Mme de Pompadour torna-se facilmente compreensível numa experiência concreta. Mas, se se afirma que a mulher é a fêmea do louva-a-deus, a mandrágora, o demônio, confunde-se o espírito ao descobrir igualmente nela a Musa, a Deusa-Mãe, Beatriz.
Como as representações coletivas e, entre outros, os tipos sociais definem-se geralmente por pares de termos opostos, a ambivalência parecerá uma propriedade intrínseca do Eterno Feminino. A mãe santa tem como correlativo a madrasta cruel; a moça angélica, a virgem perversa: por isso ora se dirá que a Mãe é igual à Vida, ora que é igual à Morte, que toda virgem é puro espírito ou carne votada ao diabo.
Não é evidentemente a realidade que dita à sociedade ou aos indivíduos a escolha entre os dois princípios opostos de unificação; em cada época, em cada caso, sociedade e indivíduos decidem de acordo com suas necessidades. Muitas vezes projetam no mito adotado as instituições e os valores a que estão apegados. Assim, o paternalismo, que reclama a mulher no lar, define-a como sentimento, interioridade e imanência; na realidade, todo existente é, ao mesmo tempo, imanência e transcendência; quando não lhe propõem um objetivo, quando o impedem de atingir algum, quando o frustram em sua vitória, sua transcendência cai inutilmente no passado, isto é, recai na imanência; é o destino da mulher, no patriarcado; não se trata, porém, da mesma vocação tal como a escravidão não é a vocação do escravo. Percebe-se claramente, em Comte, o desenvolvimento dessa mitologia. Identificar a Mulher ao Altruísmo é garantir ao homem direitos absolutos à sua dedicação, é impor às mulheres um dever-ser categórico.
Não se deve confundir o mito com a apreensão de uma significação; a significação é imanente ao objeto; ela é revelada à consciência numa experiência viva ao passo que o mito é uma ideia transcendente que escapa a toda tomada de consciência. Quando, em Age d'homme, descreve sua visão dos órgãos femininos, Michel Leiris oferece-nos significações e não elabora nenhum mito. O deslumbramento ante o corpo feminino, a repugnância pelo sangue menstrual são apreensões de uma realidade concreta. Nada há de mítico na experiência que descobre as qualidades voluptuosas da carne feminina e não se passa ao mito quando se tenta exprimi-las mediante comparações com flores ou pedras. Mas dizer que a Mulher é a Carne, que a Carne é Noite e Morte, ou que é o esplendor do Cosmo, é abandonar a verdade da terra e alçar voo para um céu vazio. Porque o homem também é carne para a mulher; e esta é outra coisa além de um objeto carnal; e a carne assume, para cada um e em cada experiência, significações singulares. É, também, inteiramente verdade que a mulher — como o homem — é um ser arraigado na Natureza; ela é mais do que o homem escravizada à espécie, sua animalidade é mais manifesta, mas, nela como nele, o dado é assumido pela existência, pertence também ao reino humano. Assimilá-la à Natureza é um simples parti pris.
Poucos mitos foram mais vantajosos do que esse para a casta dominante: justifica todos os privilégios e autoriza mesmo a abusar deles. Os homens não precisam preocupar-se em aliviar os sofrimentos e encargos que são fisiologicamente a parte da mulher, porquanto "são da vontade da Natureza"; eles se valem do pretexto para aumentar ainda a miséria da condição feminina, para denegar, por exemplo, à mulher, qualquer direito ao prazer sexual, para fazê-la trabalhar como um animal de carga (1).
(1) Cf. Balzac, Physiologie du Mariage: "Não vos inquieteis absolutamente com esses murmúrios, esses gritos, essas dores; a natureza fê-la para nosso uso, e para tudo aguentar: filhos, tristezas, pancadas e penas do homem. Não vos acuseis de dureza. Em todos os códigos das nações ditas civilizadas, o homem escreveu as leis que regulam o destino das mulheres sob essa epígrafe sangrenta: "Vae victis! Desgraçados sejam os fracos!"
De todos esses mitos nenhum se acha mais enraizado nos corações masculinos do que o do "mistério" feminino. Tem numerosas vantagens. E primeiramente permite explicar sem dificuldades o que parece inexplicável; o homem que não "compreende" uma mulher sente-se feliz em substituir uma resistência objetiva a uma insuficiência subjetiva; ao invés de admitir sua ignorância, reconhece a presença de um mistério fora de si: é um álibi que lisonjeia a um tempo a preguiça e a vaidade. Um coração apaixonado evita, assim, muitas decepções; se as condutas da bem-amada são caprichosas, suas reflexões, estúpidas, o mistério serve de desculpa. Enfim, graças ao mistério, perpetua-se essa relação negativa que se afigurava a Kierkegaard infinitamente preferível a uma posse positiva; em face de um enigma vivo, o homem permanece só: só com seus sonhos, esperanças, temores, amor e vaidade; esse jogo subjetivo que pode ir do vício ao êxtase místico é para muitos uma experiência mais atraente do que uma relação autêntica com um ser humano. Em que bases assenta, pois, uma ilusão tão proveitosa?
Seguramente, em certo sentido, a mulher é misteriosa, "misteriosa como todo mundo", na expressão de Maeterlinck. Cada um só é sujeito para si; cada um só pode apreender a si unicamente em sua imanência. Deste ponto de vista, o outro é sempre mistério. Aos olhos dos homens a opacidade do para-si é mais flagrante no outro feminino; eles não podem, por nenhum efeito de simpatia, penetrar-lhe a experiência singular. A qualidade do prazer erótico da mulher, os incômodos da menstruação, as dores do parto, eles estão condenados a ignorá-los. Na verdade, há reciprocidade do mistério; enquanto outro, e outro do sexo masculino, há no coração de todo homem uma presença fechada sobre si mesma e impenetrável à mulher; ela ignora o que representa o erotismo do macho. Mas, segundo a regra universal que verificamos, as categorias através das quais os homens encaram o mundo são constituídas, do ponto de vista deles, como absolutas: eles desconhecem, nisso como em tudo, a reciprocidade. Mistério para o homem, a mulher é encarada como mistério em si.
A bem dizer, a situação dela a predispõe singularmente a ser considerada sob esse aspecto. Seu destino fisiológico é muito complexo; ela mesma o suporta como uma história estranha; seu corpo não é para ela uma expressão clara de si mesma; ela sente-se nele alienada; o laço que em todo indivíduo liga a vida fisiológica à vida física, ou para melhor dizer, a relação existente entre a facticidade de um indivíduo e a liberdade que a assume, é o mais difícil enigma implicado pela condição humana: é na mulher que esse enigma se põe da maneira mais perturbadora.
Mas o que se chama mistério não é a solidão subjetiva da consciência, nem o segredo da vida orgânica. É ao nível da comunicação que a palavra assume seu sentido verdadeiro: não se reduz ao puro silêncio, à noite, à ausência; implica uma presença balbuciante que malogra em se manifestar. Dizer que a mulher é mistério não é dizer que ela se cala e sim que sua linguagem não é compreendida; ela está presente, mas escondida sob véus; existe além dessas incertas aparições. Quem é ela? Um anjo, um demônio, uma inspirada, uma comediante? Ou se supõe que existem para essas perguntas respostas impossíveis de descobrir, ou antes, que nenhuma é adequada porque uma ambiguidade fundamental afeta o ser feminino; em seu coração, ela é para si mesma indefinível: uma esfinge.
continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 38. Fatos e Mitos: Mulher! És a porta do diabo
O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe
O Segundo Sexo - 40. Fatos e Mitos: A Alma e a Ideia
O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...
O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente
O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo
O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)
O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (3)
O Segundo Sexo - 45. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (1)
O Segundo Sexo - 46. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (2)
O Segundo Sexo - 47. Fatos e Mitos: Claudel e a serva do Senhor (1)
O Segundo Sexo - 48. Fatos e Mitos: Claudel e a serva do Senhor (2)
O Segundo Sexo - 49. Fatos e Mitos: Breton ou a Poesia (1)
O Segundo Sexo - 50. Fatos e Mitos: Breton ou a Poesia (2)
O Segundo Sexo - 51. Fatos e Mitos: Stendhal ou o Romanesco do Verdadeiro (1)
O Segundo Sexo - 52. Fatos e Mitos: Stendhal ou o Romanesco do Verdadeiro (2)
O Segundo Sexo - 53. Fatos e Mitos: Stendhal ou o Romanesco do Verdadeiro (3)
O Segundo Sexo - 55. Fatos e Mitos: Capítulo III (2)
Dizer que a mulher é mistério não é dizer que ela se cala e sim que sua linguagem não é compreendida; ela está presente, mas escondida sob véus; existe além dessas incertas aparições.
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