Victor Hugo - Os Miseráveis
No dia seguinte, ao nascer do sol, andando Monsenhor Bemvindo a passear no jardim, viu Magloire vir a correr na sua direção com ar transtornado.
— Monsenhor! Monsenhor! — gritou ela. — Sabe onde está o açafate da prata?
— Sei — respondeu o bispo.
— Ora graças a Deus! — tornou ela. — Já não sabia o que pensar!
O bispo que naquele instante levantava o açafate de um alegrete, apresentou-o à senhora Magloire.
— Está aqui.
— Mas não tem nada dentro. E a prata?
— Ah! — replicou o bispo. — Era a prata que procurava? Não sei onde está.
— Jesus! Roubaram-na! Foi decerto o homem que cá ficou!
Num abrir e fechar de olhos, com a vivacidade própria de velha sagaz e bem conservada, Magloire correu ao oratório, entrou na alcova e voltou logo para junto do bispo. Este agachara-se havia um instante e contemplava com a maior tristeza um pé de cocleária de Guillons que o açafate tinha quebrado ao cair no meio do alegrete; ao ouvir, porém, os gritos de Magloire, ergueu-se.
— Ai, Monsenhor! O homem roubou a prata e fugiu! — Ao mesmo tempo que soltava esta exclamação, dirigiu o olhar para o muro, onde se viam os vestígios da escalada. — Olhe, foi por ali que ele fugiu! Saltou para a travessa de Cachefilet. Que crueldade! Roubar-nos a prata!
O bispo conservou-se por momentos silencioso; por fim, disse com a maior serenidade, erguendo os olhos para Magloire:
— Aquela prata pertencia-nos porventura?
Magloire ficou sem saber o que havia de responder.
Seguiu-se outra pausa, após a qual o bispo prosseguiu:
— Magloire, há muito tempo que eu era ilícito possuidor daquela prata, que pertencia de direito aos pobres. E quem era aquele homem? Não era, sem a menor dúvida, um pobre?
— Valha-me Nossa Senhora! — replicou Magloire. — Não falo por mim, nem pela senhora Baptistina, a nós não nos faz falta, mas com Monsenhor já não sucede o mesmo. Com que talher há de comer agora?
O bispo encarou-a com ar de espanto e respondeu:
— Essa agora! Pois não há colheres de estanho?
Magloire encolheu os ombros.
— O estanho tem mau cheiro.
— Nesse caso, há os de ferro.
A criada fez uma careta expressiva, dizendo:
— O ferro tem muito mau sabor.
— Pois então, colheres de pau.
Daí por alguns instantes, o bispo estava a almoçar naquela mesma mesa em que Jean Valjean, no dia antecedente, estivera sentado. No decurso do almoço, Monsenhor Bemvindo notou, gracejando, a sua irmã, que não proferira palavra, e a Magloire, que resmungava surdamente, não ser preciso garfo nem colher, mesmo de pau, para molhar um pedaço de pão numa chávena de leite.
— Nunca se viu uma coisa assim! — dizia Magloire, andando de um para outro lado. — Recolher um homem daqueles e deitá-lo quase ao pé de si! Ainda devemos dar graças a Deus por só nos ter roubado! Parece-me que ainda sinto um estremecimento quando me lembro de semelhante coisa!
No instante em que o bispo e a irmã se levantaram da mesa, bateram à porta.
— Entre — disse o bispo.
A porta abriu-se e um estranho e violento grupo assomou no limiar. Três homens traziam um quarto agarrado no meio deles. Os três eram gendarmes, o quarto era Jean Valjean.
Apenas em presença do bispo, o gendarme que parecia ser o comandante do grupo adiantou-se para ele, fazendo a continência militar e disse:
— Monsenhor...
Ouvindo este tratamento, Jean Valjean, que se mostrava sombrio e abatido, ergueu a cabeça com ar de estupefacção e murmurou:
— Monsenhor?! Pensei que era o cura...
— Silêncio! — ordenou um dos gendarmes. — É o senhor bispo.
Entretanto, Monsenhor Bemvindo aproximara-se dos homens com a presteza que lhe permitia a sua avançada idade e exclamou, com os olhos fitos em Jean Valjean:
— Ah, então voltou?! Estimo muito tornar a vê-lo. Mas agora me lembro: eu também lhe dei os castiçais, que são de prata, como o resto, e que lhe podem render duzentos francos ou mais. Porque não os levou?
Jean Valjean abriu os olhos e encarou o venerável bispo com uma expressão que nenhuma linguagem poderia traduzir.
— Então é verdade o que este homem disse, Monsenhor? — perguntou o cabo que comandava os gendarmes. — Nós encontrámo-lo como quem ia a fugir e prendemo-lo como suspeito. Levava consigo esta prata...
— E disse-lhes — atalhou o bispo, sorrindo — que um pobre padre em casa de quem passara a noite lhes tinha dado? Os senhores não acreditaram e trouxeram-no aqui. Pois disse-lhes a verdade.
— Sendo assim, podemos deixá-lo ir? — perguntou o cabo.
— Sem dúvida — respondeu o bispo.
Os gendarmes largaram Jean Valjean, que recuou estupefato.
— Então, estou livre?! — exclamou ele em voz quase inarticulada e como se falasse a dormir.
— Pois não ouviste? — disse um dos gendarmes.
— Meu amigo — tornou o bispo — não se vá embora sem levar os castiçais. Aqui os tem.
E, dirigindo-se ao fogão, pegou nos dois castiçais de prata e entregou-os a Jean Valjean.
As duas mulheres olhavam para tudo aquilo sem fazerem o menor gesto nem proferirem uma só palavra que pudesse contrariar o prelado.
Jean Valjean, que tremia como varas verdes, pegou maquinalmente nos dois castiçais,
com ar desvairado.
— Agora — disse o bispo — vá em paz. É verdade, meu amigo, se voltar é escusado passar pelo jardim. Pode entrar e sair sempre pela porta da rua, que está fechada apenas por uma simples aldraba, seja de dia ou de noite. — E, em seguida, voltando-se para os gendarmes, acrescentou: — Os senhores podem retirar-se.
Os gendarmes saíram.
Jean Valjean sentiu-se como que prestes a desfalecer.
O bispo aproximou-se dele e disse-lhe em voz baixa:
— Não se esqueça nunca de que me prometeu empregar o dinheiro desta prata em tornar-se homem de bem.
Jean Valjean, que não se recordava de lhe ter prometido coisa alguma, ficou sem saber o que havia de dizer. O bispo, que acentuara muito as suas palavras, acrescentou:
— Jean Valjean, meu irmão, lembre-se que já não pertence ao mal, mas sim ao bem. Resgatei a sua alma. Libertei-a dos maus pensamentos e do espírito de perdição para a dar a Deus.
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XI — O que ele faz
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XIII — O pequeno Gervásio
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