Simone de Beauvoir
53. Fatos e Mitos
VI
STENDHAL OU O ROMANESCO DO VERDADEIRO
continuando...
Mas esses mitos orquestram-se para cada um de maneira diferente. O Outro é singularmente definido segundo o modo singular que o Um escolhe para se pôr. Todo homem afirma-se como uma liberdade e uma transcendência, mas não dão todos os homens o mesmo sentido a essas palavras. Para Montherlant, a transcendência é um estado; é ele o transcendente e paira no céu dos heróis; a mulher vegeta na terra a seus pés; compraz--se em medir a distância que o separa dela; de vez em quando, ele a leva até junto de si, a possui e depois a rejeita; nunca se abaixa à esfera de viscosas trevas em que ela se acha. Lawrence situa a transcendência no falo; o falo não é vida e força senão graças à mulher; a imanência é, portanto, boa e necessária; o falso herói que pretende não tocar o solo, longe de ser um semideus, não chega sequer a ser um homem; a mulher não é desprezível, é riqueza profunda, cálida nascente; mas ela deve renunciar a toda transcendência pessoal e limita-se a nutrir a de seu homem. Idêntico devotamento lhe é exigido por Claudel. A mulher para ele é também quem mantém a vida, enquanto o homem lhe prolonga o impulso como seus atos; mas para o católico tudo o que se passa na terra banha-se na vã imanência: só Deus transcende; aos olhos de Deus o homem que age e a mulher que o serve são exatamente iguais; cabe a cada um superar sua condição terrestre: a salvação é, em todo caso, uma empresa autônoma. Para Breton, a hierarquia dos sexos inverte-se; a ação, o pensamento consciente em que o homem situa sua transcendência parecem-lhe uma estúpida mistificação que engendra a guerra, a tolice, a burocracia, a negação do humano; é a imanência, a simples presença opaca do real que é a verdade; a verdadeira transcendência realizar-se-ia pela volta à imanência. Sua atitude é exatamente oposta à de Montherlant: este ama a guerra porque nela está livre das mulheres, Breton venera a mulher porque ela traz a paz; um confunde espírito e subjetividade, recusa o universo dado; o outro pensa que o espírito se acha objetivamente presente no coração do mundo; a mulher compromete Montherlant porque lhe perturba a solidão; ela é para Breton revelação porque o tira da subjetividade. Quanto a Stendhal, vimos que a mulher mal assume nele um valor mítico. Ele a considera como sendo ela também uma transcendência; para esse humanista, é em suas relações recíprocas que as liberdades se realizam; basta-lhe que o Outro seja simplesmente um outro para que a vida tenha a seu ver "um sal picante"; não procura um "equilíbrio estelar", não se alimenta com o pão do nojo; não espera milagre; não deseja ter que se haver com o cosmo ou a poesia mas sim com as liberdades.
É que também ele se sente, ele próprio, como uma liberdade translúcida. Os outros — e é um ponto dos mais importantes — se põem como transcendências mas sentem-se prisioneiros de uma presença opaca no fundo de si mesmo: projetam na mulher esse "inquebrável núcleo de noite". Há, em Montherlant, um complexo adleriano de onde nasce uma má-fé espessa: é esse conjunto de pretensões e de temores que ele encarna na mulher; a repugnância que sente por ela é a que receia sentir por si mesmo; pretende espezinhar nela a prova sempre possível de sua própria insuficiência; pede ao desprezo que o salve. A mulher é a fossa em que ele precipita todos os monstros que o habitam (1). A vida de Lawrence mostra-nos que sofria de um complexo análogo, mas puramente sexual: a mulher tem em sua obra o valor de um mito de compensação; por ela se acha exaltada uma virilidade de que o escritor não estava muito seguro; quando descreve Kate aos pés de Don Cipriano acredita ter conquistado um triunfo de macho contra Frieda; não admite, ele tampouco, que sua companheira o ponha em dúvida: se ela lhe contestasse os fins, perderia, sem dúvida, confiança neles; ela tem por função tranquilizá-lo. Ele lhe pede paz, repouso, fé, como Montherlant pede a certeza de sua superioridade: exigem os que lhes falta. A confiança em si não é o de que carece Claudel: se é tímido, ele o é apenas no segredo de Deus. Por isso não há nele nenhum vestígio de luta de sexos. O homem carrega ousadamente o fardo da mulher: ela é possibilidade de tentação e de salvação. Tem-se a impressão de que, para Breton, o homem só é verdadeiro pelo mistério que o habita; apraz-lhe que Nadja veja essa estrela para a qual ele caminha e que é como "o coração de uma flor sem coração"; seus sonhos, seus pressentimentos, o desenvolvimento espontâneo de sua linguagem interior, é nessas atividades que escapam ao controle da vontade e da razão que ele se reconhece: a mulher é a figura sensível dessa presença velada, infinitamente mais essencial do que sua personalidade consciente.
(1) Stendhal julgou de antemão as crueldades com que se diverte Montherlant: "Na indiferença que fazer? O amor-prazer, mas sem os horrores. Os horrores vêm sempre de uma alma pequena que precisa tranquilizar-se acerca de seus próprios méritos".
Stendhal coincide tranquilamente consigo mesmo, mas precisa da mulher como ela dele, a fim de que sua existência dispersa se reúna na unidade de uma figura e de um destino; é como para-outrem que o homem atinge o ser mas é preciso, contudo, que esse outro lhe empreste sua consciência: os outros homens têm demasiada indiferença para com seus semelhantes; só a mulher amorosa abre o coração ao amante e nele o abriga inteiramente. Com exceção de Claudel que encontra em Deus uma testemunha de escol, todos os escritores que consideramos esperam que, segundo as palavras de Malraux, a mulher adore neles esse "monstro incomparável" só deles conhecido. Na colaboração ou na luta, os homens enfrentam-se em sua generalidade. Montherlant é para seus semelhantes um escritor, Lawrence em doutrinador, Breton um chefe de escola, Stendhal um diplomata ou um homem de espírito; é a mulher que revela em um o príncipe magnífico e cruel, noutro um fauno inquietante, noutro um deus ou um sol, ou um ser "negro e frio como um homem fulminado aos pés da Esfinge (2), noutro, enfim, um sedutor, um amante.
(2) Nadja.
Para cada um deles, a mulher ideal será a que encarnar mais exatamente o Outro capaz de o revelar a si mesmo. Montherlant, espírito solar, busca nela a animalidade pura; Lawrence, o fálico, pede-lhe que resuma o sexo feminino em sua generalidade; Claudel define-a como uma alma irmã; Breton adora Mélusine arraigada na Natureza e põe sua esperança na mulher-criança: Stendhal deseja uma amante inteligente, culta, livre de espírito e de costumes: uma igual. Mas para a igual, a mulher-criança, a alma-irmã, a mulher-sexo, o animal feminino, o único destino terrestre que se lhes reserva é sempre o homem. Qualquer que seja o ego que se procura através dela, esse ego só pode ser atingido se ela consente em lhe servir de cadinho. Exige-se dela, em todo caso, a renúncia a si mesma, e o amor. Montherlant consente em se enternecer com a mulher que lhe permite medir sua força viril; Lawrence compõe um hino entusiasta à que renuncia a si mesma a seu favor; Claudel exalta a vassala, a serva, a devotada que se submete a Deus submetendo-se ao homem; Breton espera da mulher a salvação da humanidade, porque ela é capaz do amor mais total em relação ao filho, ao amante; e até em Stendhal as heroínas são mais comoventes do que os heróis porque se entregam a sua paixão com a mais desenfreada violência; las ajudam o homem a cumprir seu destino, como Prouhèze contribui para a salvação de Rodrigo; nos romances de Stendhal acontece amiúde que elas salvem o amante da ruína, da prisão ou da morte. A dedicação feminina é exigida como um dever por Montherlant, por Lawrence; menos arrogantes, Claudel, Breton, Stendhal admiram-na como uma generosa escolha: desejam-na, essa escolha, sem pretender merecê-la. Mas, a não ser o espantoso Lamiel, todas as suas obras mostram que esperam da mulher esse altruísmo que Comte admirava nela e lhe impunha, e que a seu ver também constituía a um tempo uma inferioridade flagrante e uma equívoca superioridade.
Poderíamos multiplicar os exemplos: conduziriam-nos sempre às mesmas conclusões. Definindo a mulher, cada escritor define sua ética geral e a ideia singular que faz de si mesmo. É também nela que, muitas vezes, ele inscreve a distância entre seu ponto de vista sobre o mundo e seus sonhos egotistas. A ausência ou a insignificância do elemento feminino no conjunto de uma obra já é sintomática; esse elemento tem uma extrema importância quando resume em sua totalidade todos os aspectos do Outro como ocorre em Lawrence; conserva parte dessa importância quando a mulher é encarada simplesmente como uma outra, mas que o escritor se interessa pela aventura individual de sua vida, como é o caso de Stendhal; perde-a em uma época como a nossa em que os problemas singulares de cada um passa a segundo plano. Entretanto, a mulher enquanto outra, desempenha ainda um papel na medida em que, embora seja tão-somente para se superar, todo homem tem ainda necessidade de tomar consciência de si.
continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 38. Fatos e Mitos: Mulher! És a porta do diabo
O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe
O Segundo Sexo - 40. Fatos e Mitos: A Alma e a Ideia
O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...
O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente
O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo
O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)
O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (3)
O Segundo Sexo - 45. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (1)
O Segundo Sexo - 46. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (2)
O Segundo Sexo - 47. Fatos e Mitos: Claudel e a serva do Senhor (1)
O Segundo Sexo - 48. Fatos e Mitos: Claudel e a serva do Senhor (2)
O Segundo Sexo - 49. Fatos e Mitos: Breton ou a Poesia (1)
O Segundo Sexo - 50. Fatos e Mitos: Breton ou a Poesia (2)
O Segundo Sexo - 51. Fatos e Mitos: Stendhal ou o Romanesco do Verdadeiro (1)
O Segundo Sexo - 52. Fatos e Mitos: Stendhal ou o Romanesco do Verdadeiro (2)
O Segundo Sexo - 53. Fatos e Mitos: Capítulo III
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