Manoel Bomfim
O Brasil Nação volume 2
SEGUNDA PARTE
TRADIÇÕES
À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
capítulo 8
A Revolução Republicana
§ 70 – A farda na República
Quanto aos militares, o mal não foi que deles viesse a garantia do triunfo. Já o lembramos: assim se deu em 1831 e em 1888; mas foi desastre que o destino lhes desse a iniciativa da República, e o pleno domínio sobre ela. Um chefe, em ditadura republicana, e sem nenhuma concepção de política democrática, sem nenhum sentimento republicano, sem ligações, sequer, com a propaganda, como sem experiência política. Pelo contrário: Deodoro, chefe da nação republicanizada, senhor discricionário das novas formas a instituir, não tinha nenhuma das qualidades próprias a tal função. Mentalidade sem profundeza e sem horizontes, já emperrada no círculo e conceitos de um velho soldado indiferente às coisas de pensamento, ele nem podia julgar do que se continha naquele momento da nação brasileira. São de caráter, esse ditador não possuía, sequer, a dura tessitura moral em que se trama a ação de um verdadeiro político. O melhor da sua pessoa estava por fora: esbelto, brônzeo, arrogante sem dureza, desimpedido e franco de gestos. Fronte miúda, vazio olhar leonino lampejando sobre a linha aquilina do perfil, barba eriçada, rudemente aberta, a guardar o gesto de franca expressão... ele faria um magnífico general de ordenanças, a dominar uma corte com toda a irradiação de brio, lealdade e valentia. A vê-lo, ninguém podia pensar em política. No seu conjunto, impetuoso e superficial, não havia onde fazer a condensação de existência, para as intuições que a instituição de um regime e a transmutação de um Estado exigem.
Com esse ostensivo predomínio do Exército, entrou para a atividade política desproporcionado número de militares. Teria sido um bem – essa partilha da organização republicana com agaloados revolucionários. Homens novos e puros, teriam aperfeiçoado os motivos e processos da obra política, se a politicagem tradicional os não absorvesse, se fossem os mais puros e capazes que viessem para essa obra. Infelizmente não podia ser assim: aproveitaram-se da política, na maioria dos casos, justamente aqueles já tentados para ela, prontos a adaptarem-se às suas formas. Como quem se entrega a um ideal, Benjamin Constant, Floriano, e, mesmo, Deodoro, foram exemplos de abnegação, honestidade e desinteresse pessoal, a par de uns raros capitães e tenentes intransigentes de pureza e coerência republicana; mas, para estes poucos, quantos para quem os galões foram, apenas, as senhas na arrancada fácil para a carreira política, em todas as misérias da política nacional?!... Para isto, concorreu especialmente a onda de lisonja e servilismo que, aqui, como em qualquer outro país, se espraiou e veio aos pés dos vencedores: rara terá sido a unidade política, na Federação, que não procurasse a honra – de incluir galões na sua representação parlamentar e nos altos postos da sua administração. E houve, até, oficiais que rejeitaram a honraria. Resultou, assim, que a incorporação de militares na política republicana foi antes um malefício.
Junte-se, a tudo isto, o que aconteceu como inevitável degradação da vitória do Exército: imediata elevação de soldos, acentuação de privilégios, exploração sediciosa do prestígio da vitória. Pode haver nada mais monstruoso, numa organização democrática, do que os privilégios das patentes militares, conferidos nessa constituição republicana, que, no entanto, aboliu todos os outros? E a negação do voto às praças de pré?! Não se conhece, na vida moderna, mais flagrante desigualização perante a lei. Daí resultou a atual monstruosidade: obrigado ao tempo de fileira, o brasileiro decai da situação de eleitor; isto é, o serviço da nação determina diminuição da personalidade política do cidadão. E, mais turbador ainda: desencadeados pela vitória fácil, alguns agaloados nem souberem frear as ambições, e, explorando a exaltação do refazer político, tomaram de qualquer pretexto para tentativa de assalto ao poder, tentativa muitas vezes justificada pelo mesmo fracasso da República. Assim se explicam, neste Brasil tão avesso a levantes militares, ao caudilhismo e às guerras civis, tantas sedições armadas contra o governo. Por isso mesmo, a nação as condenou todas, que só foram agravação de males, e só serviram, muitas vezes, para amparar a autoridade desprestigiada de politiqueiros ignóbeis, repelidos cordialmente pela nação, e que, assim, em legítima defesa, despojaram-se em violências, desmandos, tiranias e negociatas.
Como a arranjaram, a realização da República teve de chegar a tudo isso, quando, no entanto, aqueles primeiros tempos se limparam numa atmosfera de ideal. O chefe militar da República, apesar de absolutamente impróprio para a tarefa, não desmentiu em insinceridades, o arrojo desinteressado com que se atirou ao movimento; mas, no conjunto do seu caráter, impetuoso e superficial, não havia onde fazer a condensação de experiência social e política, que brotasse em instituições decisivas, como o exigia o momento revolucionário. Ostensivamente leal e franco, ele aceitou, no entanto, as inteligências civis que a situação pareceria indicar, e organizou o seu ministério bem dentro da crise, de acordo com os próximos antecedentes dela. Todavia, dado que ele, chefe, era insuficiente como inspiração, e que a situação do momento era dispersa, partida em diversas orientações, o ministério não podia fazer obra coerente, realmente vivaz e organizadora. O fulgurante prestígio mental de Rui Barbosa deu-lhe, desde logo, acentuado ascendente sobre o ditador, desnivelando o resto do governo, e cada um dos outros veio confinar-se dentro da sua pasta, se bem que as resoluções se anunciassem em conjunto do gabinete. Não tardou que o ministro positivista discordasse (com razão) de uma qualquer medida resultante da abundante finançaria ruidesca. Foi o primeiro dissídio da República, dissídio agravado da imiscibilidade das ideologias – liberal e positivista. E o dissídio se multiplicou em fendas por todo o primeiro decênio da República, principalmente porque intransigências e ambições, mascaradas nas mesmas doutrinas positivistas, davam pretextos a repetidas disputas estéreis, para o fermentar dessa oposição que, alastrando, atirou o soldado desinteressado e franco de 15 de novembro nos braços do reacionarismo, para os dias tristes do golpe de Estado, e tudo mais... que ainda não acabou.
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O Brasil nação - v1: Prefácio - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário (fim)
O Brasil Nação - v2: § 50 – O poeta - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 51 – O influxo da poesia nacional - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 52 – De Gonçalves Dias a Casimiro de Abreu... - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 53 – Álvares de Azevedo - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 54 – O lirismo brasileiro - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 55 – De Casimiro de Abreu a Varela - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 56 – O último romântico - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 57 – Romanticamente patriotas - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 58 – O indianismo - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 59 – O novo ânimo revolucionário - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 60 – Incruentas e falhas... - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 61 – A Abolição: a tradição brasileira para com os escravos - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 62 – Infla o Império sobre a escravidão - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 63 – O movimento nacional em favor dos escravizados - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 64 – O passe de 1871 e o abolicionismo imperial - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 65 – Os escravocratas submergidos - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 66 – Abolição e República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 67 – A propaganda republicana - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 67 – A propaganda republicana (2) - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 68 – A revolução para a República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 69 – Mais Dejanira... e nova túnica - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 71 – O positivismo na República - Manoel Bomfim
Com esse ostensivo predomínio do Exército, entrou para a atividade política desproporcionado número de militares. Teria sido um bem – essa partilha da organização republicana com agaloados revolucionários. Homens novos e puros, teriam aperfeiçoado os motivos e processos da obra política, se a politicagem tradicional os não absorvesse, se fossem os mais puros e capazes que viessem para essa obra. Infelizmente não podia ser assim: aproveitaram-se da política, na maioria dos casos, justamente aqueles já tentados para ela, prontos a adaptarem-se às suas formas. Como quem se entrega a um ideal, Benjamin Constant, Floriano, e, mesmo, Deodoro, foram exemplos de abnegação, honestidade e desinteresse pessoal, a par de uns raros capitães e tenentes intransigentes de pureza e coerência republicana; mas, para estes poucos, quantos para quem os galões foram, apenas, as senhas na arrancada fácil para a carreira política, em todas as misérias da política nacional?!... Para isto, concorreu especialmente a onda de lisonja e servilismo que, aqui, como em qualquer outro país, se espraiou e veio aos pés dos vencedores: rara terá sido a unidade política, na Federação, que não procurasse a honra – de incluir galões na sua representação parlamentar e nos altos postos da sua administração. E houve, até, oficiais que rejeitaram a honraria. Resultou, assim, que a incorporação de militares na política republicana foi antes um malefício.
Junte-se, a tudo isto, o que aconteceu como inevitável degradação da vitória do Exército: imediata elevação de soldos, acentuação de privilégios, exploração sediciosa do prestígio da vitória. Pode haver nada mais monstruoso, numa organização democrática, do que os privilégios das patentes militares, conferidos nessa constituição republicana, que, no entanto, aboliu todos os outros? E a negação do voto às praças de pré?! Não se conhece, na vida moderna, mais flagrante desigualização perante a lei. Daí resultou a atual monstruosidade: obrigado ao tempo de fileira, o brasileiro decai da situação de eleitor; isto é, o serviço da nação determina diminuição da personalidade política do cidadão. E, mais turbador ainda: desencadeados pela vitória fácil, alguns agaloados nem souberem frear as ambições, e, explorando a exaltação do refazer político, tomaram de qualquer pretexto para tentativa de assalto ao poder, tentativa muitas vezes justificada pelo mesmo fracasso da República. Assim se explicam, neste Brasil tão avesso a levantes militares, ao caudilhismo e às guerras civis, tantas sedições armadas contra o governo. Por isso mesmo, a nação as condenou todas, que só foram agravação de males, e só serviram, muitas vezes, para amparar a autoridade desprestigiada de politiqueiros ignóbeis, repelidos cordialmente pela nação, e que, assim, em legítima defesa, despojaram-se em violências, desmandos, tiranias e negociatas.
Como a arranjaram, a realização da República teve de chegar a tudo isso, quando, no entanto, aqueles primeiros tempos se limparam numa atmosfera de ideal. O chefe militar da República, apesar de absolutamente impróprio para a tarefa, não desmentiu em insinceridades, o arrojo desinteressado com que se atirou ao movimento; mas, no conjunto do seu caráter, impetuoso e superficial, não havia onde fazer a condensação de experiência social e política, que brotasse em instituições decisivas, como o exigia o momento revolucionário. Ostensivamente leal e franco, ele aceitou, no entanto, as inteligências civis que a situação pareceria indicar, e organizou o seu ministério bem dentro da crise, de acordo com os próximos antecedentes dela. Todavia, dado que ele, chefe, era insuficiente como inspiração, e que a situação do momento era dispersa, partida em diversas orientações, o ministério não podia fazer obra coerente, realmente vivaz e organizadora. O fulgurante prestígio mental de Rui Barbosa deu-lhe, desde logo, acentuado ascendente sobre o ditador, desnivelando o resto do governo, e cada um dos outros veio confinar-se dentro da sua pasta, se bem que as resoluções se anunciassem em conjunto do gabinete. Não tardou que o ministro positivista discordasse (com razão) de uma qualquer medida resultante da abundante finançaria ruidesca. Foi o primeiro dissídio da República, dissídio agravado da imiscibilidade das ideologias – liberal e positivista. E o dissídio se multiplicou em fendas por todo o primeiro decênio da República, principalmente porque intransigências e ambições, mascaradas nas mesmas doutrinas positivistas, davam pretextos a repetidas disputas estéreis, para o fermentar dessa oposição que, alastrando, atirou o soldado desinteressado e franco de 15 de novembro nos braços do reacionarismo, para os dias tristes do golpe de Estado, e tudo mais... que ainda não acabou.
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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."
Cecília Costa Junqueira
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Bomfim, Manoel, 1868-1932
O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).
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Leia também:
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário (fim)
O Brasil Nação - v2: § 50 – O poeta - Manoel Bomfim
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