quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXV - Vozinha

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 







VOZINHA


Velha, velhinha, da doçura boa 
De uma pomba nevada, etérea, mansa. 
Alma que se ilumina e se balança 
Dentre as redes da Fé que nos perdoa.

Cabeça branca de serena leoa, 
Carinho, amor, meiguice que não cansa, 
Coração nobre sempre como a lança 
Que não vergue, não fira e que não doa.

Olhos e voz de castidades vivas, 
Pão ázimo das Páscoas afetivas, 
Simples, tranquila, dadivosa, franca.

Morreu tal qual vivera, mansamente, 
Na alvura doce de uma luz algente, 
Como que morta de uma morte branca.





NO EGITO


Sob os ardentes sóis do fulvo Egito 
De areia estuosa, de candente argila, 
Dos sonhos da alma o turbilhão desfila, 
Abre as asas no páramo infinito.

O Egito é sempre o antigo, o velho rito 
Onde um mistério singular se asila 
E onde, talvez mais calma, mais tranquila, 
A alma descansa do sofrer prescrito.

Sobre as ruínas d’ouro do passado, 
No céu cavo, remoto, ermo e sagrado, 
Torva morte espectral pairou ufana...

E no aspecto de tudo em torno, em tudo, 
Árido, pétreo, silencioso, mudo, 
Parece morta a própria dor humana!





OCASOS



Morrem no Azul saudades infinitas, 
Mistérios e segredos inefáveis... 
Ah! Vagas ilusões imponderáveis, 
Esperanças acerbas e benditas.

Ânsias das horas místicas e aflitas, 
De horas amargas das intermináveis 
Cogitações e agruras insondáveis 
De febres tredas, trágicas, malditas.

Cogitações de horas de assombro e espanto 
Quando das almas num relevo santo 
Fulgem de outrora os sonhos apagados.

E os braços brancos e tentaculosos 
Da Morte, frios, álgidos, nervosos, 
Abrem-se para mim torporizados.





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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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