domingo, 20 de outubro de 2019

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXVI - Repouso

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 







REPOUSO


A cabeça pendida docemente
Em sonhos, sonha o sonhador inquieto,
Repousa e nesse repousar discreto
É sempre o sonho o seu bordão clemente.


Cego desta Prisão impenitente
Da Terra e cego do profundo Afeto,
O sonho é sempre o seu bordão secreto,
O seu guia divino e refulgente.


Nem no repouso encontra a paz que espera,
Para lhe adormecer toda a quimera,
Os círculos fatais do seu Inferno.


Entre a calma aparente, a estranha calma,
O seu repouso é sempre a febre d’alma,
O seu repouso é sonho, e sonho eterno.






REQUIESCAT... 


Grande, grande Ilusão morta no espaço,
Perdida nos abismos da memória,
Dorme tranquila no esplendor da glória,
Longe das amarguras do cansaço...


Ilusão, Flor do sol, do morno e lasso
Sonho da noite tropical e flórea,
Quando as visões da névoa transitória
Penetram na alma, num lascivo abraço...


Ó Ilusão! Estranha caravana
de águias soberbas, de cabeça ufana,
De asas abertas no clarão do Oriente.


Não me persiga o teu mistério enorme!
Pelas saudades que me aterram, dorme,
Dorme nos astros infinitamente...






DOCE ABISMO


Coração, coração! a suavidade,
Toda a doçura do teu nome santo
É como um cálix de falerno e pranto,
De sangue, de luar e de saudade.


Como um beijo de mágoa e de ansiedade,
Como um terno crepúsculo d’encanto,
Como uma sombra de celeste manto,
Um soluço subindo à Eternidade.


Como um sudário de Jesus magoado,
Lividamente morto, desolado,
Nas auréolas das flores da amargura.


Coração, coração! onda chorosa,
Sinfonia gemente, dolorosa,
Acerba e melancólica doçura.




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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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