quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Pedagogia do Oprimido - 4. A teoria da ação antidialógica (a)

 Paulo Freire 




“educação como prática da liberdade”: 
alfabetizar é conscientizar 







AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



4. A teoria da ação antidialógica



Neste capítulo, em que pretendemos analisar as teorias da ação cultural que se desenvolvem a partir da matriz antidialógica e da dialógica, voltaremos, não raras vezes, a afirmações feitas no corpo deste ensaio. 

Serão repetições ou voltas a pontos já referidos, ora com a intenção de aprofundá-los, ora porque se façam necessários ao esclarecimento de novas afirmações.

Desta maneira, começaremos reafirmando que os homens são seres da práxis. São seres do quefazer, diferentes, por isto mesmo, dos animais, seres do puro fazer. Os animais não “ad-miram” o mundo. Imergem nele. Os homens, pelo contrário, como seres do quefazer, “emergem” dele e, objetivando-o, podem conhecê-la e transformá-la com seu trabalho.

Os animais, que não trabalham, vivem no seu “suporte” particular, a que não transcendem. Daí que cada espécie animal viva no “suporte” que lhe corresponde e que estes “suportes” sejam incomunicáveis entre si, enquanto que franqueáveis aos homens.

Mas, se os homens são seres do quefazer é exatamente porque seu fazer é ação e reflexão. É práxis. É transformação do mundo. E, na razão mesma em que o quefazer é práxis, todo fazer do quefazer tem de ter uma teoria que necessariamente o ilumine. O quefazer é teoria e prática. É reflexão e ação. Não pode reduzir-se, como salientamos no capítulo anterior, ao tratarmos a palavra, nem ao verbalismo, nem ao ativismo.

A tão conhecida afirmação de Lênin: (1) “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário” significa precisamente que não há revolução com verbalismo, nem tampouco com ateísmo, mas com práxis, portanto, com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas.

(1) Lenin, Vlademir, What is to be done? In Essential works of Lenin, Henry M. Christman ed., Nova York, 1966, p. 69.

O esforço revolucionário de transformação radical destas estruturas não pode ter, na liderança, homens do quefazer e, nas massas oprimidas, homens reduzidos ao puro fazer.

Este é um ponto que deveria estar exigindo de todos quantos realmente se comprometem com os oprimidos, com a causa de sua libertação, uma permanente e corajosa reflexão.

Se o compromisso verdadeiro com eles, implicando na transformação da realidade em que se acham oprimidos, reclama uma teoria da aço transformadora, esta não pode deixar de reconhecer-lhes um papel fundamental no processo da transformação.

Não é possível à liderança tomar os oprimidos como meros fazedores ou executores de suas determinações; como meros ativistas a quem negue a reflexão sobre o seu próprio fazer. Os oprimidos, tendo a ilusão de que atuam, na atuação da liderança, continuam manipulados exatamente por quem, por sua própria natureza, não pode fazê-lo.

Por isto, na medida em que a liderança nega a práxis verdadeira aos oprimidos, se esvazia, consequentemente, na sua.

Tende, desta forma, a impor sua palavra a eles, tornando-a, assim, uma palavra falsa, de caráter dominador.

Instala, com este proceder, uma contradição entre seu modo de atuar e os objetivos que pretende, ao não entender que, sem o diálogo com os oprimidos, não é possível práxis autêntica, nem para estes nem para ela.

O seu quefazer, ação e reflexão, não pode dar-se sem a ação e a reflexão dos outros, se seu compromisso é o da libertação.

A práxis revolucionária somente pode opor-se à práxis das elites dominadoras. E é natural que assim seja, pois são quefazeres antagônicos.

O que não se pode realizar, na práxis revolucionária, é a divisão absurda entre a práxis da liderança e a das massas oprimidas, de forma que a destas fosse a de apenas seguir as determinações da liderança.

Esta dicotomia existe, como condição necessária, na situação de dominação, em que a elite dominadora prescreve e os dominados seguem as prescrições.

Na práxis revolucionária há uma unidade, em que a liderança – sem que isto signifique diminuição de sua responsabilidade coordenadora e, em certos momentos, diretora – não pode ter nas massas oprimidas o objeto de sua posse.

Daí que não sejam possíveis a manipulação, a sloganização, o “depósito”, a condução, a prescrição, como constituintes da práxis revolucionária. Precisamente porque o são da dominadora.

Para dominar, o dominador não tem outro caminho senão negar às massas populares a práxis verdadeira. Negar-lhes o direito de dizer sua palavra, de pensar certo.

As massas populares não têm que, autenticamente, “ad-mirar” o mundo, denunciá-lo, questioná-lo, transformá-lo para a sua humanização, mas adaptar-se à realidade que serve ao dominador. O quefazer deste não pode, por isto mesmo, ser dialógico. Não pode ser um quefazer problematizante dos homens- mundo ou dos homens em suas relações com o mundo e com os homens. No momento em que se fizesse dialógico, problematizante, ou o dominador se haveria convertido aos dominados e já não seria dominador, ou se haveria equivocado. E se, equivocando -se, desenvolvesse um tal quefazer, pagaria caro por seu equívoco.

Do mesmo modo, uma liderança revolucionária, que não seja dialógica com as massas, ou mantém a “sombra” do dominador “dentro” de si e não é revolucionária, ou está redondamente equivocada e, presa de uma sectarização indiscutivelmente mórbida, também não é revolucionária.

Pode ser até que chegue ao poder, mas temos nossas duvidas em torno da revolução mesma que resulta deste quefazer antidialógico.

Impõe-se, pelo contrário, a dialogicidade entre a liderança revolucionária e as massas oprimidas, para que, em todo o processo de busca de sua libertação, reconheçam na revolução o caminho da superação verdadeira da contradição em que se encontram, como um dos polos da situação concreta de opressão. Vale dizer que devem se engajar no processo com a consciência cada vez mais crítica de seu papel de sujeitos da transformação.

Se são levadas ao processo como seres ambíguos (2), metade elas mesmas, metade o opressor “hospedado” nelas e se chegam ao poder vivendo esta ambiguidade, que a situação de opressão lhes impõe, terão, a nosso ver, simplesmente, a impressão de que chegaram ao poder
.

(2) Mais uma razão por que a liderança revolucionária não pode repetir os procedimentos da elite opressora. Os opressores, “penetrando” os oprimidos, neles se “hospedam”; os revolucionários, na práxis com os oprimidos, não podem tentar “hospedar-se” neles. Pelo contrário, ao buscarem, com estes, o “desejo” daqueles, devem fazê-lo para conviver, para com eles estar e não para neles viver.

A sua dualidade existencial pode, inclusive, proporcionar o surgimento de um clima sectário – ou ajudá-lo – que conduz facilmente à constituição de “burocracias” que corroem a revolução. Ao não conscientizarem, no decorrer do processo, esta ambiguidade, podem aceitar sua “participação” nele com um espírito mais revanchista (3) que revolucionário.

(3) Mesmo que haja – e explicavelmente – por parte dos oprimidos, que sempre estiveram submetidos a um regime de espoliação, na luta revolucionária, uma dimensão revanchista, isto não significa que a revolução deva esgotar-se nela.




continua página 072...

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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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Pedagogia do Oprimido -  4. A teoria da ação antidialógica  (a)
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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)


Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido



"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 



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