quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Pedagogia do Oprimido - 3. A dialogicidade... A significação conscientizadora da investigação dos temas geradores (c)

Paulo Freire




“educação como prática da liberdade”:
alfabetizar é conscientizar 



AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



continuando... 


Preparadas às codificações, estudados pela equipe interdisciplinar todos os possíveis ângulos temáticas nelas contidos, iniciam os investigadores a terceira fase da investigação. 

Nesta, voltam à área para inaugurar os diálogos descodificadores, nos “círculos de investigação temática”. (1)


(1) José Luís Fiori, em seu artigo já citado, retificou com esta designação, adequada à instituição em que se processa a aço investigadora da temática significativa, a que antes lhe dávamos, realmente menos própria, de "circulo de cultura", que podia, ainda, estabelecer confusão com aquela em que se realiza a etapa que se segue à da investigação.

Na medida em que operacionalizam estes círculos (2), com a descodificação do material elaborado na etapa anterior, vão sendo gravadas as discussões que serão, na que se segue, analisadas pela equipe interdisciplinar. Nas reuniões de análise deste material, devem estar presentes os auxiliares de investigação, representantes do povo, e alguns participantes dos “círculos de investigação”. O seu aporte, além de ser um direito que lhes cabe, é indispensável à análise dos especialistas. É que, tão sujeitos quanto os especialistas, do ato do tratamento destes dados, serão ainda, e por isto mesmo, retificadores e ratificadores da interpretação que fazem estes dos achados da investigação.

(2) Em cada “circulo de investigação” deve haver um máximo de vinte pessoas, existindo tantos círculos quantos a soma de seus participantes atinja a da população da área ou da subárea em estudo

Do ponto de vista metodológico, a investigação que, desde o seu inicio, se baseia na relação simpática de que falamos, tem mais esta dimensão fundamental para a sua segurança – a presença crítica de representantes do povo desde seu começo até sua fase final, a da análise da temática encontrada, que se prolonga na organização do conteúdo programático da aço educativa, como aço cultural libertadora.

A estas reuniões de descodificação nos “círculos de investigação temática”, além do investigador como coordenador auxiliar da descodificação, assistirão mais dois especialistas – um psicólogo e um sociólogo – cuja tarefa é registrar as reações mais significativas ou aparentemente pouco significativas dos sujeitos descodificadores.

No processo da descodificação, cabe ao investigado, auxiliar desta, não apenas ouvir os indivíduos, mas desafiá -los cada vez mais, problematizando, de um lado, a situação existencial codificada e, de outro, as próprias respostas que vão dando aqueles no decorrer do diálogo.

Desta forma, os participantes do “círculo de investigação temática” vão extrojetando, pela força catártica da metodologia, uma série de sentimentos, de opiniões, de si, do mundo e dos outros, que possivelmente não extrojetariam em circunstâncias diferentes.

Numa das investigações realizadas em Santiago (esta, infelizmente não concluída) ao discutir um grupo de indivíduos residentes num “cortiço” (conventillo) uma cena em que apareciam um homem embriagado, que caminhava pela rua e, em uma esquina, três jovens que conversavam, os participantes do círculo de investigação afirmavam que “aí apenas é produtivo e útil à nação o borracho que vem voltando para casa, depois do trabalho, em que ganha pouco, preocupado com a família, a cujas necessidades não pode atender. É o único trabalhador. É um trabalhador decente como nós, que também somos borrachos .

O interesse do investigador, o psiquiatra Patrício Lopes, a cujo trabalho fizemos referência no nosso ensaio anterior, era estudar aspectos do alcoolismo. Provavelmente, porém, não haveria conseguido estas respostas se se tivesse dirigido àqueles indivíduos com um roteiro de pesquisa elaborado por ele mesmo. Talvez, ao serem perguntados diretamente, negassem, até mesmo que tornavam, vez ou outra, o seu trago. Frente, porém, à codificação de uma situação existencial, reconhecível por eles e em que se reconheciam, em relação dialógica entre si e com o investigador, disseram o que realmente sentiam.

Há dois aspectos importantes nas declarações destes homens. De um lado, a relação expressa entre ganhar pouco, sentirem-se explorados, com um “salário que nunca alcança”, e se embriagarem. Embriagarem-se como uma espécie de fuga à realidade, como tentativa de superação da frustração do seu não atuar. Uma soluço, no fundo, autodestrutiva, necrófila. De outro, a necessidade de valorizar o que bebe. Era o “único útil à nação, porque trabalhava, enquanto os outros o que faziam era falar mal da vida alheia”. E, após a valorização do que bebe, a sua identificação com ele, como trabalhadores que também bebem, E trabalhadores decentes. 

Imaginemos, agora, o insucesso de um educador do tipo que Niebuhr (3) chama de “moralista”, que fosse fazer prédicas a esses homens contra o alcoolismo, apresentando- lhes como exemplo de virtude o que, para eles, não é manifestação de virtude. 

(3) Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Society, op. cit.

O único caminho a seguir, neste como em outros casos é a conscientização da situação, a ser tentada desde a etapa da investigação temática.

Conscientização, é óbvio, que não pára, estoicamente, no reconhecimento puro, de caráter subjetivo, da situação, mas, pelo contrário, que prepara os homens, no plano da aço, para a luta contra os obstáculos à sua humanização.

Em outra experiência, de que participamos, esta, com camponeses, observamos que, durante toda a discussão de uma situação de trabalho no campo, a tônica do debate era sempre a reivindicação salarial e a necessidade de se unirem, de criarem seu sindicato para esta reivindicação, não para outra.

Discutiram três situações neste encontro e a tônica foi sempre a mesma – reivindicação salarial e sindicato para atender a esta reivindicação.

Imaginemos, agora, um educador que organizasse o seu programa “educativo” para estes homens e, em lugar da discussão desta temática, lhes propusesse a leitura de textos que, certamente, chamaria de “sadios”, e nos quais se fala, angelicalmente, de que “a asa é da ave"...


E isto é o que se faz, em termos preponderantes, na ação educativa como na política, porque não se leva em conta que a dialogicidade da educação começa na investigação temática.




continua página 066...

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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
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(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)


Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido




"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 


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