Paulo Freire
“educação como prática da liberdade”:
AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO
E AOS QUE NELES SE
DESCOBREM E, ASSIM
DESCOBRINDO-SE, COM ELES
SOFREM, MAS, SOBRETUDO,
COM ELES LUTAM.
continuando...
Esta é a razão por que o fato de os investigadores, na primeira etapa da investigação, terem chegado à, apreensão mais ou menos aproximada do conjunto de contradições, não os autoriza a pensar na estruturação do conteúdo programático da ação educativa. Até então, esta visão é deles ainda, e não a dos indivíduos em face de sua realidade.
A segunda fase da investigação começa precisamente quando os investigadores, com os dados que recolheram, chegam à apreensão daquele conjunto de contradições.
A partir deste momento, sempre em equipe, escolherão algumas destas contradições, com que serão elaboradas as codificações que vão servir à investigação temática.
Na medida em que as codificações {pintadas ou fotografadas e, em certos casos, preferencialmente fotografadas (1) } são o objeto que, mediatizando os sujeitos descodificadores, se dá à sua análise crítica, sua preparação deve obedecer a certos princípios que são apenas os que norteiam a confecção das puras ajudas visuais.
(1) As codificações também podem ser orais. Consistem, neste caso, na apresentação, em poucas palavras, que fazem os investigadores, de um problema existencial e a que se segue sua “descodificação". A equipe do "Instituto de Desarrollo Agropecuário" – Chile, vem usando-os com resultados positivos em investigações temáticas.
Uma primeira condição a ser cumprida é que, necessariamente, devem representar situações conhecidas pelos indivíduos cuja temática se busca, o que as faz reconhecíveis por eles, possibilitando, desta forma, que nelas se reconheçam.
Não seria possível, nem no processo da investigação, nem nas primeiras fases do que a ele se segue, o da devolução da temática significativa como conteúdo programático, propor representações de realidades estranhas aos indivíduos.
É que este procedimento, embora dialético, pois que os indivíduos, analisando uma realidade estranha, comparariam com a sua, descobrindo as limitações desta, não pode preceder a um outro, exigível pelo estado de imersão dos indivíduos: aquele em que, analisando sua própria realidade, percebem sua percepção anterior, do que resulta uma nova percepção da realidade distorcidamente percebida.
Igualmente fundamental para a sua preparação é a condição de não poderem ter as codificações, de um lado, seu núcleo temático demasiado explícito; de outro, demasiado enigmático. No primeiro caso, correm o risco de transformar-se em codificações propangandisticas, em face das quais os indivíduos não têm outra descodificação a fazer, senão a que se acha implícita nelas, de forma dirigida. No segundo, o risco de fazer-se um jogo de adivinhação ou “quebra- cabeça”.
Na medida em que representam situações existenciais, as codificações devem ser simples na sua complexidade e oferecer possibilidades plurais de análises na sua descodificação, o que evita o dirigismo massificador da codificação propagandística. As codificações não são slogans, são objetos cognoscíveis, desafios sobre que deve incidir a reflexão crítica dos sujeitos descodificadores (2).
(2) As codificações, de um lado, são a mediação entre o "contexto concreto ou real”, em que se dão os fatos e o "contexto teórico", em que são analisadas; de outro, são o objeto cognoscível sobre que o educador-educando e os educandos-educadores, corno sujeitos cognoscentes, incidem sua reflexão critica. Ver Paulo Freire, Ação cultural para a libertação.
Ao oferecerem possibilidades plurais de análises, no processo de sua descodificação, as codificações, na organização de seus elementos constituintes, devem ser uma espécie de “leque temático”. Desta forma, na medida em que sobre elas os sujeitos descodificadores incidam sua reflexão critica, irão “abrindo-se” na direção de outros temas.
Esta abertura, que não existirá, no caso de seu conteúdo temático estar demasiado explicitado ou demasiado enigmático, é indispensável à percepção das relações dialéticas que existem entre o que representam e seus contrários.
Para atender, igualmente, a esta exigência fundamental, O indispensável que a codificação, refletindo uma situação existencial, constitua objetivamente uma totalidade. Daí que seus elementos devam encontrar-se em interação, na composição da totalidade.
No processo da descodificação os indivíduos, exteriorizando sua temática, explicitam sua “consciência real” da objetividade.
Na medida em que, ao fazê-lo, vão percebendo como atuavam ao viverem a situação analisada, chegam ao que chamamos antes de percepção da percepção anterior.
Ao terem a percepção de como antes percebiam, percebem diferentemente a realidade, e, ampliando o horizonte do perceber, mais facilmente vão surpreendendo, na sua “visão de fundo”, as relações dialéticas entre uma dimensão e outra da realidade.
Dimensões referidas ao núcleo da codificação sobre que incidem a operação descodificadora.
Como a descodificação é, no fundo, um ato cognoscente, realizado pelos sujeitos descodificadores, e como este ato recai sobre a representação de uma situação concreta, abarca igualmente o ato anterior com o qual os mesmos indivíduos haviam apreendido a mesma realidade, agora representada na codificação.
Promovendo a percepção da percepção anterior e o conhecimento do conhecimento anterior, a descodificação, desta forma, promove o surgimento de nova percepção e o desenvolvimento de novo conhecimento.
A nova percepção e o novo conhecimento, cuja formação já, começa nesta etapa da investigação, se prolongam, sistematicamente, na implantação do plano educativo, transformando o “inédito viável” na “ação editanda”, com a superação da “consciência real” pela “consciência máxima possível”.
Por tudo isto é que mais uma exigência se impõe na preparação das codificações – é que elas representem contradições tanto quanto possível “inclusivas” de outras, como adverte José Luís Fiori (3). Que sejam codificações com um máximo de “inclusividade” de outras que constituem o sistema de contradições da área em estudo. Mais ainda e por isto mesmo, preparada uma destas codificações “inclusivas”, capaz de “abrir-se” em “leque temático” no processo de sua descodificação, que se preparem as demais “incluídas” nela, como suas dimensões dialetizadas. A descodificação das primeiras terá uma iluminação explicativamente dialética na descodificação das segundas.
(3) Trabalho inédito.
Neste sentido, um jovem chileno, Gabriel Bode (4), que há mais de dois anos trabalha com o método na etapa de pós-alfabetização trouxe uma contribuição da mais alta importância.
(4) Funcionário especializado de uma das mais sérias instituições governamentais chilenas, o Instituto de Desarrollo Agropecuario (INDAP) – em cuja direção até bem pouco esteve o economista, de formação autenticamente humanista, Jacques Chonchol.
Na sua experiência, observou que os camponeses somente se interessavam pela discussão, quando a codificação dizia respeito, diretamente, a aspectos concretos de suas necessidades sentidas. Qualquer desvio na codificação, como qualquer tentativa do educador de orientar o diálogo, na descodificação, para outros rumos que não fossem os de suas necessidades sentidas, provocavam o seu silêncio e o seu indiferentismo.
Por outro lado, observava que, embora a codificação se centrasse nas necessidades sentidas (codificação, contudo, não “inclusiva”, no sentido de José Luís Fiori), os camponeses não conseguiam, no processo de sua análise, fixar-se, ordenadamente, na discussão, “perdendo-se”, não raras vezes, sem alcançar a síntese. Assim também não percebiam, ou raramente percebiam, as relações entre suas necessidades sentidas e as razões objetivas mais próximas ou menos próximas das mesmas.
Faltava- lhe, diremos nós, a percepção do “inédito viável” mais além das “situações-limites”, geradoras de suas necessidades.
Não lhes era possível ultrapassar a sua experiência existencial focalista, ganhando a consciência da totalidade.
Desta forma, resolveu experimentar a projeção simultânea de situações e a maneira como desenvolveu seu experimento é que constitui o aporte indiscutivelmente importante que trouxe.
Inicialmente, projeta a codificação (muito simples na constituição de seus elementos) de uma situação existencial. A esta codificação chama de “essencial” – aquela que representa o núcleo básico e que, abrindo-se em leque temático terminativo, se estenderá nas outras, que ele chama de “codificações auxiliares”.
Depois de descodificada a “essencial”, mantendo -a projetada como um suporte referencial para as consciências a ela intencionadas, vai, sucessivamente, projetando a seu lado as codificações “auxiliares”.
Com estas, que se encontram em relação direta com a “essencial”, consegue manter vivo o interesse dos indivíduos que, em lugar de “perder-se” nos debates, chegam à síntese dos mesmos.
No fundo, o grande achado de Gabriel Bode está em que ele conseguiu propor à cognoscibilidade dos indivíduos, através da dialeticidade entre a codificação “essencial” e as “auxiliares”, o sentido da totalidade. Os indivíduos imersos na realidade, com a pura sensibilidade de suas necessidades, emergem dela e, assim, ganham a razão das necessidades.
Desta forma, muito mais rapidamente, poderão ultrapassar o nível da “consciência real”, atingindo o da “consciência possível”.
Se este é o objetivo da educação problematizadora que defendemos, a investigação temática, que a ela mais que serve, porque dela é um momento, a este objetivo não pode fugir também.
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PAULO FREIRE
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
23ª Reimpressão
PAZ E TERRA
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© Paulo Freire, 1970
Capa
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Revisão
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(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)
Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)
1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido
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