sexta-feira, 17 de julho de 2020

Pedagogia do Oprimido - 3. A dialogicidade... A significação conscientizadora da investigação dos temas geradores (a)

Paulo Freire




“educação como prática da liberdade”:
alfabetizar é conscientizar 



AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



3. A dialogicidade – essência da educação 
como prática da liberdade



A SIGNIFICAÇÃO CONSCIENTIZADORA
DA INVESTIGAÇÃO DOS TEMAS GERADORES.
OS VÁRIOS MOMENTOS DA INVESTIGAÇÃO



Por isto é que, para nós, o risco da investigação não está em que os supostos investigados se descubram investigadores, e, desta forma, “corrompam” os resultados da análise. O risco está exatamente no contrário. Em deslocar o centro da investigação, que é a temática significativa, a ser objeto da análise, para os homens mesmos, como se fossem coisas, fazendo-os assim objetos da investigação. Esta, à base da qual se pretende elaborar o programa educativo, em cuja prática educadores-educandos e educandos-educadores conjuguem sua ação cognoscente sobre o mesmo objeto cognoscível, tem de fundar-se, igualmente, na reciprocidade da ação. E agora, da ação mesma de investigar.

A investigação temática, que se dá no domínio do humano e não no das coisas, não pode reduzir-se a um ato mecânico. Sendo processo de busca, de conhecimento, por isto tudo, de criação, exige de seus sujeitos que vão descobrindo, no encadeamento dos temas significativos, a interpenetração dos problemas. 

Por isto é que a investigação se fará tão mais pedagógica quanto mais crítica e tão mais critica quanto, deixando de perder-se nos esquema s estreitos das visões parciais da realidade, das visões “focalistas” da realidade, se fixe na compreensão da totalidade.

Assim é que, no processo de busca da temática significativa, já deve estar presente a preocupação pela problematização dos próprios temas, Por suas vinculações com outros. Por seu envolvimento histórico-cultural.

Assim como não é possível – o que salientamos no início deste capítulo – elaborar um programa a ser doado ao povo, também não o é elaborar roteiros de pesquisa do universo temático a partir de pontos prefixados pelos investigadores que se julgam a si mesmos os sujeitos exclusivos da investigação.

Tanto quanto a educação, a investigação que a ela serve, tem de ser uma operação simpática, no sentido etimológico da expressão. Isto é, tem de constituir-se na comunicação, no sentir comum uma realidade que não pode ser vista mecanicistamente compartimentada, simplistamente bem “comportada”, mas, na complexidade de seu permanente vir a ser.

Investigadores profissionais e povo, nesta operação simpática, que é a investigação do tema gerador, são ambos sujeitos deste processo.

O investigador da temática significativa que, em nome da objetividade científica, transforma o orgânico em inorgânico, o que está sendo no que é, o vivo no morto, teme a mudança. Teme a transformação. Vê nesta, que não nega, mas que não quer, não um anuncio de vida, mas um anúncio de morte, de deterioração. Quer conhecer a mudança, não para estimulá-la, para aprofundá-la, mas para freá-la.

Mas, ao temer a mudança e ao tentar aprisionar a vida, ao reduzi-la a esquemas rígidos, ao fazer do povo objeto passivo de sua ação investigadora, ao ver na mudança o anúncio da morte, mata a vida e não pode esconder sua marca necrófila.

A investigação da temática, repitamos, envolve a investigação do próprio pensar do povo. Pensar que não se dá fora dos homens, nem num homem só, nem no vazio, mas nos homens e entre os homens, e sempre referido à realidade.

Não posso investigar o pensar dos outros, referido ao mundo se não penso. Mas, não penso autenticamente se os outros também não pensam. Simplesmente, não posso pensar pelos outros nem para os outros, nem sem os outros. A investigação do pensar do povo não pode ser feita sem o povo, mas com ele, como sujeito de seu pensar. E se seu pensar é mágico ou ingênuo, será pensando o seu pensar, na ação, que ele mesmo se superará. E a superação não se faz no ato de consumir ideias, mas no de produzi-las e de transformá-las na ação e na comunicação.

Sendo os homens seres em “situação”, se encontram enraizados em condições tempo-espaço que os marcam e a que eles igualmente marcam. Sua tendência é refletir sobre sua própria situacionalidade, na medida em que, desapoiados por ela, agem sobre ela. Esta reflexão implica, por isto mesmo, em algo mais que estar em situacionalidade, que é a sua posição fundamental. Os homens são porque estão em situação. E serão tanto mais quanto não só pensem criticamente sobre sua forma de estar, mas criticamente atuem sobre a situação em que estão.

Esta reflexão sobre a situacionalidade é um pensar a própria condição de existir. Um pensar critico através do qual os homens se descobrem em “situação”. Só na medida em que esta deixa de parecer-lhes uma realidade espesso que os envolve, algo mais ou menos nublado em que e sob que se acham, um beco sem saída que os angustia e a captam como a situação objetivo-problemática em que estão, é que existe o engajamento. Da imersão em que se achavam, emergem, capacitando-se para inserir-se na realidade que se vai desvelando.

Desta maneira, a inserção é um estado maior que a emersão e resulta da conscientização da situação. É a própria consciência histórica.

Daí que seja a conscientização o aprofundamento da tomada de consciência, característica, por sua vem, de toda emersão.

Neste sentido é que toda investigação temática de caráter conscientizador se faz pedagógica e toda autêntica educação se faz investigação do pensar.

Quanto mais investigo o pensar do povo com ele, tanto mais nos educamos juntos. Quanto mais nos educamos, tanto mais continuamos investigando.

Educação e investigação temática, na concepção problematizadora da educação, se tornam momentos de um mesmo processo.

Enquanto na prática “bancária” da educação, anti-dialógica por essência, por isto, não comunicativa, o educador deposita no educando o conteúdo programático da educação, que ele mesmo elabora ou elaboram para ele, na prática problematizadora, dialógica por excelência, este conteúdo, que jamais é “depositado”, se organiza e se constitui na visão do mundo dos educandos, em que se encontram seus “temas geradores”.

Por tal razão é que este conteúdo há de estar sempre renovando-se e ampliando-se.

A tarefa do educador dialógico é, trabalhando em equipe interdisciplinar este universo temático, recolhido na investigação, devolvê-lo, como problema, não como dissertação, aos homem de quem recebeu.

Se, na etapa da alfabetização, a educação problematizadora e da comunicação busca e investiga a “palavra geradora” (1), na pós-alfabetização, busca e investiga o “tema gerador”.


(1) Ver Paulo Freire, Educação como prática da liberdade, op. cit.

Numa visão libertadora, não mais “bancária” da educação, o seu conteúdo programático já não involucra finalidades a serem impostas ao povo, mas, pelo contrário, porque parte e nasce dele, em diálogo com os educadores, reflete seus anseios e esperanças. Daí a investigação da temática como ponto de partida do processo educativo, como ponto de partida de sua dialogicidade.

Daí também o imperativo de dever ser conscientizadora a metodologia desta investigação.

Que fazermos, por exemplo, se temos a responsabilidade de coordenar um plano de educação de adultos em uma área camponesa, que revele, inclusive, uma alta porcentagem de analfabetismo? O plano incluirá a alfabetização e a pós-alfabetização. Estaríamos, portanto, obrigados a realizar, tanto a investigação das “palavras geradoras”, quanto a dos “temas geradores”, á base de que teríamos o programa para uma e outra etapas do plano.

Fixemo-nos, contudo, apenas na investigação dos “temas geradores” ou da temática significativa. (2)


(2) A propósito da investigação e do “tratamento" das “palavras geradoras" ver Paulo Freire, Educação como prática da liberdade, op.cit.


Delimitada a área em que se vai trabalhar, conhecida através de fontes secundárias, começam os investigadores a primeira etapa de investigação.

Esta, como todo começo em qualquer atividade no domínio do humano, pode apresentar dificuldades e riscos. Riscos e dificuldades normais, até certo ponto, ainda que nem sempre existentes, na aproximação primeira que fazem os investigadores aos indivíduos da área.

É que, neste encontro, os investigadores necessitam de obter que um número significativo de pessoas aceite uma conversa informal com eles, em que lhes falarão dos objetivos de sua presença na área. Na qual dirão o porque, o como e o para que da investigação que pretendem realizar e que mão podem fazê- lo se não se estabelece uma relação de simpatia e confiança mútuas.

No caso de aceitarem a reunião, e de nesta aderirem, não só à investigação, mas ao processo que se segue (3), devem os investigadores estimular os presentes para que, dentre eles, apareçam os que queiram participar diretamente do processo da investigação como seus auxiliares. Desta forma, esta se inicia com um diálogo às claras entre todos.


(3) “Na razão mesma em que a ‘investigação temática’ (diz a socióloga Maria Edy Perreira, num trabalho em preparação só se justifica enquanto devolva ao povo o que a ele pertence; enquanto seja, não o ato de conhecê-lo, mas o de conhecer com ele a realidade que o desafia.”

Uma série de informações sobre a vida na área, necessárias à sua compreensão, terá nestes voluntários os seus recolhedores. Muito mais importante, contudo, que a coleta destes dados, é sua presença ativa na investigação.

Ao lado deste trabalho da equipe local, os investigadores iniciam suas visitas A área, sempre autêntica- mente, nunca forçadamente, como observadores simpáticos. Por isso mesmo, com atitudes compreensivas em face do que observam.

Se é normal que os investigadores cheguem à área da investigação movendo- se em um marco conceitual valorativo que estará presente na sua percepção do observado, isto não deve significar, porém, que devem transformar a investigação temática no meio para imporem este marco.

A única dimensão que se supõe devam ter os investigadores, neste marco no qual se movem, que se espera se faça comum aos homens cuja temática se busca investigar, é a da percepção crítica de sua realidade, que implica num método correto de aproximação do concreto para desvelá -lo. E isto não se impõe.

Neste sentido é que, desde o começo, a investigação temática se vai expressando como um quefazer educativo. Como aço cultural.


Em suas visitas os investigadores vão fixando sua “mirada” critica na área em estudo, como se ela fosse, para eles, uma espécie de enorme e sui generis “codificação” ao vivo, que os desafia. Por isto mesmo, visualizando a área como totalidade, tentarão, visita após visita, realizar a “cisão” desta, na análise das dimensões parciais que os vão impactando.

Neste esforço de “cisão” com que, mais adiante, voltarão a adentrar- se na totalidade, vão ampliando a sua compreensão dela, na interação de suas partes.

Na etapa desta igualmente sui generis descodificação, os investigadores, ora incidem sua visão critica, observadora, diretamente, sobre certos momentos da existência da área, ora o fazem através de diálogos informais com seus habitantes.

Na medida em que realizam a “descodificação” desta “codificação” viva, seja pela observação dos fatos, seja pela conversação informal com os habitantes da área, irão registrando em seu caderno de notas, à maneira de Wright Mills (4), as coisas mais aparentemente pouco importantes. A maneira de conversar dos homens; a sua forma de ser. O seu comportamento no culto religioso, no trabalho. Vão registrando as expressões do povo; sua linguagem, suas palavras, sua sintaxe, que não é o mesmo que sua pronúncia defeituosa, mas a forma de construir seu pensamento (5).

(4) Wright Mills, The Sociological Imagination.
(5) Neste sentido Guimarães Rosa nos parece um exemplo – e genial exemplo – de como pode um escritor captar fielmente, não a pronúncia, não a corruptela prosódica, mas a sintaxe do povo das Gerais – a estrutura de seu pensamento. O educador brasileiro Paulo de Tarso – escreve um ensaio cujo valor e interesse destacamos, sobre a obra de Guimarães Rosa, onde analisa o papel deste autor como descobridor dos temas fundamentais do homem do sertão brasileiro.

Esta descodificação ao vivo implica, necessariamente, em que os investigadores, em sua fase, surpreendam a área era momentos distintos. É preciso que a visitem em horas de trabalho no campo; que assistam a reuniões de alguma, associação popular, observando o procedimento de seus participantes, a linguagem usada, as relações entre diretoria e sócios; o papel que desempenham as mulheres, os jovens. É indispensável que a visitem em horas de lazer; que presenciem seus habitantes em atividades esportivas; que conversem com pessoas em suas casas, registrando manifestações em torno das relações marido-mulher, pais -filhos; afinal, que nenhuma atividade, nesta etapa, se perca para esta compreensão primeira da área.

A propósito de cada uma destas visitas de observação compreensiva devem os investigadores redigir um pequeno relatório, cujo conteúdo é discutido pela equipe, em seminário, no qual se vão avaliando os achados, quer dos investigadores profissionais, quer dos auxiliares da investigação, representantes do povo, nestas primeiras observações que realizaram. Daí que este seminário de avaliação deva realizar-se, se possível na área de trabalho, para que possam estes participar dele.

Observa-se que os pontos fixados pelos vários investigadores, só conhecidos por todos na reunião de seminário avaliativo, de modo geral coincidem, com exceção de um ou outro aspecto que impressionou mais singularmente a um ou a outro investigador.

Estas reuniões de avaliação constituem, em verdade, um segundo momento da “descodificação” ao vivo, que os investigadores estão realizando da realidade que se lhes apresenta como aquela “codificação” sui generis.

Com efeito, na medida em que, um a um, vão todos expondo como perceberam e sentiram este ou aquele momento que mais os impressionou, no ensaio “descodificador”, cada exposição particular, desafiando a todos como descodificadores da mesma realidade, Vai re-presentificando-lhes a realidade recém-presentificada à sua consciência intencionada a ela. Neste momento, “re-admiram” sua admiração anterior no relato da “ad-miração” dos demais.

Desta forma, a “cisão” que fez cada um da realidade, no processo particular de sua descodificação, os remete, dialogicamente, ao todo “cindido” que se retotaliza e se oferece aos investigadores a uma nova análise, à qual se seguirá novo seminário avaliativo e critico, de que participarão, como membros da equipe investigadora, os representantes populares.

Quanto mais cindem o todo e o re-totalizam na re-admiração que fazem de sua ad-miração, mais vão aproximando-se dos núcleos centrais das contradições principais e secundárias em que estão envolvidos os indivíduos da área.

Poderíamos pensar que, nesta primeira etapa da investigação, ao se apropriarem, através de suas observações, dos núcleos centrais daquelas contradições, os investigadores já estariam capacitados para organizar o conteúdo programático da aço educativa. Realmente, se o conteúdo desta ação reflete as contradições, indiscutivelmente estará, constituído da temática significativa da área.

Não tememos, inclusive, afirmar que a margem de acordo para a ação que se desenvolvesse a partir destes dados seria muito mais provável que a dos conteúdos resultantes das programações verticais.

Esta, contudo, não deve ser uma tentação pela qual os investigadores se deixem seduzir.

Na verdade, o básico, a partir da inicial percepção deste núcleo de contradições, entre as quais estará, incluída a principal da sociedade como uma unidade epocal maior, é estudar em que nível de percepção delas se encontram os indivíduos da área.

No fundo, estas contradições se encontram constituindo “situações-limites”, envolvendo temas e apontando tarefas.

Se os indivíduos se encontram aderidos a estas “situações-limites”, impossibilitados de “separar”-se delas, o seu tema a elas referido será necessariamente o do fatalismo e a “tarefa” a ele associada é a de quase não terem tarefa.

Por isto é que, embora as “situações-limites” sejam realidades objetivas e estejam provocando necessidades nos indivíduos, se impõe investigar, com eles, a consciência que delas tenham.

Uma “situação-limite”, como realidade concreta, pode provocar em indivíduos de áreas diferentes e até de subáreas de uma mesma área, temas e tarefas opostos, que exigem, portanto, diversificação programática para o seu desvelamento.

Daí que a preocupação básica dos investigadores deva centrar-se no conhecimento do que Goldman (6) chama de “consciência real” (efetiva) e “consciência máxima possível”.


(6) Lucien Goldman, The human Sciences and Philosophy. Londres, The Chancer Press, 1969, p. 118.

“Real consciousness is the result of the multiple obstacles and desviations that the different factors of empirical reality put into opposition and submit for realization by this potential consciousness”. Daí que, ao nível da “consciência real”, os homens se encontrem limitados na possibilidade de perceber mais além das “situações -limites”, o que chamamos de “inédito viável”.

Por isto é que, para nós, o “inédito viável”, [que mão pode ser apreendido no nível da “consciência real” ou efetiva] se concretiza a “ação editanda”, cuja viabilidade antes não era percebida. Há uma relação entre o “inédito viável” e a “consciência real” e entre a “ação editanda” e a “consciência máxima possível”.

A “consciência possível” (Goldman) parece poder identificar-se com o que Nicolai (7) chama de “soluções” praticáveis despercebidas” (nosso “inédito viável”), em oposição às “soluções praticáveis percebidas” e às “soluções efetivamente realizadas,” que correspondem a, “consciência real” (ou efetiva) de Goldman.



(7) André Nicolai, Comportement Economique et Structures Sociales . Paris, PUF, 1960.


continua página 062...

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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo
Revisão
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(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
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Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
CDD-374.012
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido




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Pedagogia do Oprimido - Paulo Freire




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