Simone de Beauvoir
SlMONE DE BEAUVOIR
continuando...
Mesmo quando não conhecem tais obsessões, elas se assustam à ideia de que certas partes do corpo que não existiam nem para elas, nem para ninguém, que não existiam de modo algum, vão repentinamente emergir à luz. Essa figura feminina que a jovem deve assumir como sua, irá provocar nojo? Indiferença? Ironia? Não lhe cabe senão passar pelo julgamento do homem: nada lhe resta a fazer. Por isso é que a atitude do homem terá repercussões profundas. Seu ardor, sua ternura podem dar á mulher uma confiança em si mesma que resistirá a todos os desmentidos: tal ou qual mulher se acreditará uma flor até aos 80 anos, um lindo pássaro que certa noite um desejo de homem fez surgir. Ao contrário, se o amante ou o marido são inábeis, farão com que se desenvolva um complexo de inferioridade em que se enxertarão, por vezes, neuroses duradouras; e ela experimentará um rancor que se traduzirá por uma frigidez obstinada. Stekel dá-nos, a propósito, exemplos impressionantes:
Uma senhora de 36 anos sofre há 14 anos de dores lombares tão fortes que precisa ficar de cama durante semanas. . . Sentiu essa dor violenta pela primeira vez na noite de núpcias. Por ocasião do defloramento, que fora extremamente doloroso, o marido exclamara: "Tu me enganaste, não és mais virgem.. ." A dor é a fixação dessa cena penosa. A doença é o castigo do marido que teve de gastar muito com numerosos tratamentos. . . Essa mulher ficou insensível durante a noite de núpcias e assim permaneceu durante todo o casamento. A noite de núpcias foi para ela um traumatismo determinando toda a sua vida futura.
Uma jovem mulher consulta-me acerca de perturbações nervosas e em particular de uma frigidez absoluta. . . Na noite de núpcias, depois de a descobrir o marido teria dito: "Como tens as pernas curtas e grossas!" A seguir, ele tentou o coito que a deixou perfeitamente insensível e só provocou dores. . . Ela sabia muito bem que a causa de sua frigidez estava na ofensa da noite de núpcias.
Outra mulher fria conta que "durante a noite de núpcias o marido a teria profundamente ofendido: vendo-a despir-se teria dito: "Meu Deus, como és magra!" e em seguida teria resolvido acariciá-la. Para ela, esse momento teria sido inesquecível e horrível. Que brutalidade!"
Mme Z. W. é também completamente fria. O grande traumatismo da noite de núpcias está em que seu marido lhe teria dito, depois do primeiro coito: "Tens um buraco grande, tu me enganaste".
O olhar é perigo; as mãos são também uma ameaça. A mulher não tem geralmente acesso ao universo da violência; nunca passou pela prova que o rapaz enfrentou e superou através das brigas da infância e da adolescência: ser uma coisa de carne sobre a qual outro pode dominar; e agora ela é empunhada, arrastada a um corpo-a-corpo em que o homem leva a melhor; não tem mais a liberdade de sonhar, de recuar, de manobrar: está entregue ao macho que dispõe dela. Esses amplexos, análogos aos da luta, aterrorizam-na, a ela que nunca lutou. Entregava-se às carícias de um noivo, de um amigo, de um colega, de um homem civilizado e cortês: mas ele assumiu uma atitude estranha, egoísta e obstinada; não tem recurso contra esse desconhecido. Não é raro que a primeira experiência da jovem seja uma verdadeira violação e que o homem se mostre odiosamente brutal; assim, no campo, onde os costumes são rudes, acontece muitas vezes que a camponesa, em parte consentindo e em parte se revoltando, perca a virgindade à beira de uma valeta em meio à vergonha e ao terror. 0 que é entretanto extremamente frequente em todos os meios, em todas as classes, é que a virgem seja tratada com aspereza por um amante egoísta que procura sofregamente seu próprio prazer, ou por um marido ciente de seus direitos conjugais e a quem a resistência da esposa fere como um insulto, chegando até a enfurecer- -se se o defloramento é difícil.
Aliás, ainda que o homem seja atencioso e cortês, a primeira penetração é sempre uma violação. Ela deseja carícias nos seios, nos lábios, talvez um gozo conhecido ou pressentido entre as coxas, e eis que um sexo macho fere a jovem e se introduz em regiões onde não era chamado. Descreveu-se amiúde a penosa surpresa de uma virgem extasiada nos braços de um marido ou de um amante, que acredita alcançar enfim a realização de seus sonhos voluptuosos e sente no fundo secreto de seu sexo uma dor imprevista; os sonhos dissipam-se, a perturbação sensual igualmente, e o amor assume o aspecto de uma operação cirúrgica. Nas confissões recolhidas pelo Dr. Liepmann [1] , encontro o relato seguinte que é típico. Trata-se de uma moça pertencente a um meio modesto e muito ignorante sexualmente.
[1] Publicadas em francês com o título de Jeunesse et sexualité.
"Muitas vezes imaginava que se podia ter um filho com a troca de um beijo simplesmente. Aos 18 anos conheci um senhor por quem, como se diz, me enamorei realmente." Saiu com ele e, durante as conversas que tinham, ele lhe explicava que, quando uma jovem gosta de um homem, deve dar-se a ele porque os homens não podem viver sem relações sexuais e que quando não têm uma situação que lhes permita casar, precisam ter tais relações com as moças. Ela resistia. Um dia, ele organizou uma excursão de maneira a poder passarem uma noite juntos. Ela escreveu-lhe uma carta para repetir-lhe que "seria para ela um prejuízo muito grave". Na manhã do dia fixado, deu-lhe a carta, mas ele a pôs no bolso sem ler e levou-a para o hotel; dominava-a moralmente e ela o amava; acompanhou-o. "Estava como que hipnotizada. No trajeto supliquei-lhe que me poupasse... Gomo cheguei ao hotel, não sei. A única lembrança que me resta é a de que meu corpo tremia violentamente. Meu companheiro tentava acalmar-me; mas só o conseguiu após uma demorada resistência. Não me senti então mais dona de minha vontade e deixei-o fazer. Quando me encontrei de novo na rua, mais tarde, pareceu-me que tudo não passara de um sonho de que acabava de despertar." Recusou-se a repetir a experiência e durante nove anos não viu mais homem. Encontrou um então que a pediu em casamento e ela aceitou.
Neste caso, o defloramento foi uma espécie de violação. Mas mesmo a jovem consentindo, pode ser penoso. Vimos que inquietações perturbavam a jovem Isadora Duncan. Encontrou um ator admiravelmente belo por quem se apaixonou à primeira vista e que lhe fez uma corte fervorosa (Cf. Minha Vida).
Eu também me sentia perturbada, minha cabeça virava e um irresistível desejo de apertá-lo mais estreitamente contra mim me invadia, até que uma noite, perdendo todo domínio de si e como que tomado de fúria, ele me carregou para o sofá. Apavorada, extasiada e depois gritando de dor, fui iniciada no gesto de amor. Confesso que minhas primeiras impressões foram um horrível susto, uma dor atroz, como se me tivessem arrancado vários dentes ao mesmo tempo; mas a grande pena que 'me inspiravam os sofrimentos que ele próprio parecia sentir impediu-me de fugir ao que não foi a princípio senão mutilação e tortura. .. (No dia seguinte) o que então era para mim uma experiência dolorosa apenas, recomeçou em meio a meus gemidos e meus gritos de mártir. Sentia-me como que estropiada.
Devia conhecer dentro em breve, com esse amante primeiramente e com outros depois, paraísos que descreve liricamente.
Entretanto, na experiência real como antes, na imaginação virginal, não é a dor que desempenha o papel principal: a penetração é mais importante. O homem empenha no coito unicamente um órgão exterior: a mulher é atingida até no interior de si mesma. Há sem dúvida muitos rapazes que não se aventuram sem angústia nas trevas secretas da mulher; reencontram seus terrores da infância à entrada das grutas, dos sepulcros, seu pavor também diante das tenazes, das foices, das armadilhas, imaginam que o pênis inchado ficará preso na bainha das mucosas. A mulher, uma vez penetrada, não tem esse sentimento de perigo, mas em compensação sente-se carnalmente alienada. O proprietário afirma seus direitos sobre suas terras, a dona da casa sobre sua casa, proclamando "proibida a entrada"; pelo fato de serem frustradas, as mulheres em particular defendem ciumentamente sua intimidade: a cama, o armário, os cofres são sagrados. Colette conta que uma velha prostituta lhe dizia um dia: "Em meu quarto, madame, nunca entrou um homem; Paris é bastante grande para o que tenho que fazer com homens". Em não podendo defender o corpo, tinha pelo menos uma parcela de terra a defender contra outrem. A jovem, ao contrário, só possui de seu, por assim dizer, o corpo; é seu tesouro mais precioso: toma-lhe o homem que nele penetra; a expressão popular é confirmada pela experiência vivida. A humilhação que pressentia, ela a experimenta concretamente: é dominada, submetida, vencida. Como quase todas as fêmeas, fica durante o coito por baixo do homem [1] . Adler insistiu muito no sentimento de inferioridade que disso resulta. Desde a infância, as noções de superior e inferior são das mais importantes; trepar nas árvores é um ato prestigioso ; o céu está em cima da terra, o inferno embaixo; cair, descer, é degradar-se e subir é exaltar-se; na luta, a vitória pertence a quem faz os ombros do adversário tocarem no chão; ora, a mulher acha-se deitada na cama na posição da derrota; é pior ainda se o homem a cavalga como um animal preso às rédeas e ao freio. Em todo caso, ela se sente passiva: ela é acariciada, penetrada, suporta o coito enquanto o homem se empenha ativamente. Por certo, o sexo do macho não é um músculo estriado que a vontade comanda; não é relha de arado nem espada mas tão-somente carne; entretanto, o homem imprime-lhe um movimento voluntário; vai, vem, para, recomeça enquanto a mulher o recebe documente; é o homem, principalmente quando a mulher é noviça, que escolhe as posições amorosas, que decide da duração do coito e de sua frequência. Ela sente-se instrumento: toda a liberdade pertence ao outro. É o que se exprime poeticamente dizendo que a mulher é comparável a um violino e o homem ao arco que o faz vibrar. "No amor, diz Balzac [2] , posta de lado a alma, a mulher é como uma lira que só desvenda seu segredo a quem sabe tocar." Ele toma seu prazer: ela dá esse prazer. As próprias palavras não implicam reciprocidade. A mulher está imbuída de representações coletivas que dão ao ato masculino um caráter glorioso e que fazem da perturbação feminina uma abdicação vergonhosa: sua experiência íntima confirma essa assimetria. É preciso não esquecer que o adolescente e a adolescente sentem o corpo de maneira diferente: o primeiro assume-o tranquilamente e reivindica-lhe orgulhosamente os desejos; para a segunda, a despeito de seu narcisismo, esse corpo é-lhe um fardo estranho e inquietante. 0 sexo do homem é limpo e simples como um dedo; exibe-se com inocência, muitas vezes os rapazes mostram-no aos companheiros com orgulho, num desafio; o sexo feminino é misterioso até para a própria mulher, é escondido, atormentado, mucoso, úmido; sangra todos os meses e é por vezes maculado de humores, tem uma vida secreta e perigosa. É em grande parte porque a mulher não se reconhece nele que não reconhece como seus os desejos dele. Estes se exprimem de maneira vergonhosa. Enquanto o homem se entesa, a mulher molha-se; há, na própria palavra, recordações infantis da cama molhada, do abandono culposo e involuntário à necessidade de urinar; o homem experimenta o mesmo nojo diante das poluções noturnas inconscientes; projetar um líquido, urina ou esperma não humilha: é uma operação ativa. Mas há humilhação se o líquido escapa passivamente, pois o corpo não é mais então um organismo, músculos, esfíncter, nervos, comandados pelo cérebro e exprimindo o sujeito consciente, mas sim um vaso, um receptáculo feito de matéria inerte e joguete de caprichos mecânicos. Se a carne ressuma — como um muro velho ou um cadáver — a impressão não é de que está emitindo um líquido e sim de que se está liquidificando: é um processo de decomposição que causa horror. O cio feminino é a mole palpitação de uma ostra; enquanto o homem tem impetuosidade, a mulher tem somente impaciência; sua espera pode tornar-se ardente sem deixar de ser passiva; o homem cai sobre a presa como uma águia ou um falcão; ela aguarda à espreita como a planta carnívora, o pantanal em que insetos e crianças se atolam; ela é sucção, ventosa, absorção, pez e visgo, apelo imóvel, insinuante e viscoso: é pelo menos assim que surdamente se sente. Eis por que não há nela apenas resistência contra o macho que pretende submetê-la mas também conflito interior. Aos tabus e às inibições provenientes de sua educação e da sociedade, superpõem-se repugnâncias, recusas que têm sua fonte na própria experiência erótica; uns e outros se fortalecem mutuamente a tal ponto que depois do primeiro coito a mulher surge mais revoltada do que antes contra seu destino sexual.
[1] Sem dúvida a posição pode ser invertida. Mas nas primeiras experiências é extremamente raro que o homem não pratique o coito dito normal.
[2] Physiologie du Mariage. No Bréviaire de l'amour experimental, Jules Guyot diz também do marido: "É o menestrel que produz a harmonia ou a cacofonia com a mão e o arco. A mulher, desse ponto de vista, é realmente o instrumento de várias cordas que produzirá sons harmoniosos ou dissonantes segundo quem a afinou".
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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
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