domingo, 3 de abril de 2022

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quinto - A Descida — IX Bom êxito da senhora Victurnien

Victor Hugo - Os Miseráveis



Primeira Parte - Fantine

Livro Quinto — A Descida



IX — Bom êxito da senhora Victurnien 


Madelaine tinha por costume não entrar quase nunca na oficina das mulheres. Colocara à testa dela uma mulher já idosa, que o cura lhe recomendara, e em quem depositava inteira confiança, por ser uma pessoa na verdade respeitável, firme, justiceira, íntegra, cheia do espírito da caridade que consiste em dar, mas não possuindo em igual grau esse outro espírito da caridade, que consiste em compreender e perdoar. Madelaine delegara-lhe toda a responsabilidade da gerência dos negócios da sua fábrica, e foi no uso dos seus plenos poderes, convicta de que fazia bem, que a superintendente instaurara o processo, julgara, condenara e executara Fantine.

Quanto aos cinquenta francos, dera-os, tirando-os de uma quantia que Madelaine lhe confiara, para ser aplicada em esmolas e socorros e de cuja aplicação não tinha que dar contas.

Fantine ofereceu-se como criada a algumas pessoas da terra, mas andou de casa em casa, sem deparar com ninguém que se quisesse utilizar do seu préstimo. A pobre rapariga não pudera sair da cidade, porque o adeleiro, a quem comprara os móveis da casa, mas que móveis, lhe dissera:

— Se se ausentar daqui sem me pagar, faço com que a prendam como ladra!

E o senhorio, a quem estava em dívida com a renda, tinha-lhe dito também:

— Você é jovem e bonita, portanto pode pagar.

Em vista disto, ela dividiu os cinquenta francos pelo senhorio e pelo adeleiro, restituiu a este três quartas partes da mobília, ficando apenas com o estritamente necessário, e achou-se sem trabalho, não possuindo mais do que uma pobre cama e devendo ainda quase cem francos.

Pôs-se então a trabalhar de costureira, fazendo camisas grosseiras para os soldados da guarnição, com que conseguia ganhar doze soldos por dia, dos quais tinha de tirar dez para as despesas que lhe custava a filha. Foi por esta ocasião que ela começou a atrasar-se com o pagamento aos Thenardier, de quem a inocente criança estava a cargo.

Entretanto, uma velha que lhe acendia a vela quando ela voltava à noite para casa, ensinou-lhe a arte de viver na miséria. Para além do viver de pouco, está ainda o viver de nada. São dois compartimentos: o primeiro é sombrio, o segundo é todo trevas.

Fantine aprendeu como no inverno se pode passar sem lume, como se renuncia a um passarinho, que consome a quarta parte de um soldo de dois em dois dias, como de uma saia se faz um cobertor, e como se poupa a vela, comendo à luz que vem da janela fronteira. Ninguém sabe o que certos entes frágeis, envelhecidos na nudez da miséria, sem se desviarem do caminho da honradez, são capazes de tirar de um soldo. Afinal de contas, isto é uma habilidade, e foi essa habilidade, que em verdade se pode chamar sublime, a que Fantine aprendeu, adquirindo assim um pouco de ânimo.

Um dia, disse a uma vizinha:

— Às vezes digo para comigo que, dormindo só cinco horas e empregando o resto do tempo na costura, sempre chegaria a ganhar quase para comer. E demais, quando se está triste, come-se menos. Por isso, com sofrimentos e inquietações, com um bocado de pão de um lado e cuidados de outro, a gente vai vivendo.

No meio desta penúria, a presença da filha ter-lhe-ia sido um anjo de consolação, um raio de felicidade nas trevas daquela miséria. Lembrou-se, pois, de a mandar vir Mas quê! Obrigar a inocente a provar tão cedo o amargor do fel da miséria!? E demais, como havia de pagar o que devia aos Thenardier? Como arranjar o dinheiro para a jornada da filha?

A velha, que lhe dera o que se poderia chamar lições de vida indigente, era uma bondosa mulher chamada Margarida, devota, mas de uma devoção em termos, pobre e caridosa com os pobres, e até mesmo com os ricos, sabendo apenas o necessário para escrever o seu nome, e crendo em Deus, que é no que consiste a verdadeira sabedoria.

Existem muitas virtudes assim na terra, atascadas no lodaçal da miséria; um dia, porém, virá em que da terra subirão muito mais alto. Sim, porque a esta vida ergue-se outra.

Tal fora a vergonha que se apossara de Fantine nos primeiros tempos, que a pobre rapariga não ousava sair de casa. Quando ia por uma rua, adivinhava que todos se voltavam para a olhar e que a apontavam a dedo; toda a gente olhava para ela e ninguém a cumprimentava. Este desprezo mordaz e frio dos transeuntes penetrava-lhe na alma e na carne com a aspereza de uma rajada do nordeste.

Uma infeliz, nas terras pequenas, parece que anda nua diante do sarcasmo e da curiosidade de todos. Em Paris, ao menos, ninguém a conhece, e essa mesma obscuridade serve-lhe de vestuário. Como desejava voltar para Paris! Impossível, porém!

Fora-lhe indispensável habituar-se à desconsideração, do mesmo modo que se afizera à indigência. A pouco e pouco foi-se tornando mais resoluta e decorridos dois ou três meses expeliu de si toda a vergonha, começando a sair como se lhe fosse a coisa mais natural.

«Ora, que me importa!», dizia ela. Andava já de um para outro lado, de cabeça erguida, com um sorriso amargo nos lábios e conhecendo que se tornava descarada.

A senhora Victurnien, da sua janela, via-a às vezes passar e, notando a miséria da pobre rapariga, felicitava-se por ver «aquela criatura» ocupando o lugar que lhe competia, graças aos seus piedosos esforços. Os maus têm bem más satisfações.

O excesso de trabalho veio a fatigar Fantine, de modo que aquela tossezinha seca, que ela tinha, aumentou. Às vezes, ela dizia à sua vizinha Margarida: «Olhe, veja como tenho as mãos quentes».

Todavia, quando pela manhã se punha a pentear, com um pente quebrado, os seus belos cabelos, que ondulavam qual seda aveludada, tinha um momento de feliz garridice.




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Leia também:

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine. Livro Primeiro - I — O abade Myriel

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda I — No fim de um dia de marcha

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, I — O ano de 1817

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar  — I
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar  — II

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quinto - A Descida  — IX 


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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)



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