Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1
1
Estudos de Costumes
- Cenas da Vida Privada
Memórias de duas jovens esposas
PRIMEIRA PARTE
XXXVI – A VISCONDESSA DE L’ESTORADE À BARONESA DE MACUMER
Ouve, querida irmã eleita, e fica sabendo, antes de mais nada, que quero ver-te feliz. Teu marido, minha Luísa, tem não sei que profundeza de alma e de pensamento que impõe tanto quanto a sua gravidade natural e a sua atitude nobre; demais, há na sua fealdade tão espiritual, naquele olhar aveludado, uma potência verdadeiramente majestosa; foi-me preciso tempo antes de estabelecer essa familiaridade sem a qual é difícil observar a fundo. Finalmente, esse homem foi primeiro-ministro e te adora como se adora a Deus: portanto, devia dissimular profundamente, e, para pescar segredos no fundo desse diplomata, sob as rochas de seu coração, eu tinha de desenvolver tanta habilidade quanto manha; acabei, porém, sem que o nosso homem se apercebesse, por descobrir muitas coisas que minha mimosa não suspeita. Das duas eu sou um pouco a Razão, como tu és a Imaginação; eu sou o grave Dever, como tu és o louco Amor. Esse contraste de espírito que não existia senão para nós duas, à sorte aprouve continuá-lo nos nossos destinos. Eu sou uma humilde viscondessa campesina, excessivamente ambiciosa, que deve conduzir sua família numa senda de prosperidade; ao passo que a sociedade sabe que Macumer é o ex-duque de Sória e que, duquesa por direito, reinas sobre essa Paris, onde é tão difícil reinar a quem quer que seja, até mesmo aos reis. Tens uma bela fortuna que Macumer vai duplicar se ele realizar os projetos de exploração dos seus imensos domínios da Sardenha, cujos recursos são bastante conhecidos em Marselha. Confessa que se uma de nós devia ter ciúmes, devia ser eu. Mas demos graças a Deus pelo fato de termos, quer uma, quer outra, o coração bastante elevado para que nossa amizade esteja acima dessas vulgares mesquinhezas. Conheço-te, estás envergonhada por me teres deixado. Apesar de tua fuga, não te pouparei nem uma só das palavras que te ia dizer hoje, ao pé do rochedo. Lê-me com atenção, suplico-te, pois trata-se mais de ti mesma do que de Macumer, conquanto ele contribua com muito para a minha moral. Em primeiro lugar, minha mimosa, tu não o amas. Antes de dois anos te cansarás dessa adoração. Nunca verás em Felipe um marido, e sim um amante, do qual sem a menor preocupação farás teu brinquedo, como todas as mulheres costumam fazer com um amante. Não, ele não se impõe a ti, não lhe tens esse profundo respeito, essa ternura cheia de temor, que uma verdadeira amante dedica àquele em que vê um Deus. Oh! Meu anjo, eu estudei muito o amor, e por mais de uma vez mergulhei a sonda nos abismos de meu coração. Depois de te haver bem examinado, posso dizer-te: tu não amas. Sim, querida rainha de Paris, da mesma forma que as rainhas, tu desejarás ser tratada como uma grisette,[1] desejarás ser dominada, arrostada por um homem forte que, em vez de te adorar, saberá te machucar o braço, agarrando-o no meio de uma cena de ciúme. Macumer ama-te demasiado para que possa jamais ou repreender-te, ou te resistir. Um único de teus olhares, uma única de tuas palavras de feiticeira faz fundir-se seu mais forte querer. Cedo ou tarde tu o desprezarás por te amar ele demasiado. Infelizmente ele te mima mais do que o devido, do mesmo modo que eu te mimava quando estávamos no convento, porque és uma das mais sedutoras mulheres e um dos mais encantadores espíritos que se possa imaginar. Sobretudo, és verdadeira e muitas vezes o mundo exige, para nossa própria felicidade, mentiras às quais nunca baixarias. Assim, por exemplo, a sociedade exige que uma mulher não deixe ver o domínio que exerce sobre o marido. Socialmente falando, um marido não deve mostrar ser amante de sua mulher, quando a ama como amante, da mesma forma que uma mulher não deve representar o papel de amante. Ora, vocês dois transgridem essa lei. Filha minha, em primeiro lugar, o que a sociedade menos perdoa, a julgar de acordo com o que me disseste, é a felicidade, que lhe deve ser ocultada; mas isso nada é. Existe, entre amantes, uma igualdade que, a meu ver, jamais deve haver entre mulher e marido, sob pena de uma subversão social e de desgraças irreparáveis. Um homem nulo é uma coisa lamentável, mas há coisa pior ainda: um homem anulado. Dentro de certo tempo determinado, terás reduzido Macumer à sombra de um homem: ele não terá mais vontade, não será mais ele mesmo, mas uma coisa modelada para teu uso; tu o terás assimilado tão completamente que, em vez de serem dois, não haverá mais no teu matrimônio do que uma pessoa, e esse ser será necessariamente incompleto; isso te fará sofrer, e o mal não terá remédio quando te dignares a abrir os olhos. Por mais que façamos, o nosso sexo jamais será dotado das qualidades que distinguem o homem, e essas qualidades são mais do que necessárias, são indispensáveis à família. Neste momento, apesar da sua cegueira, Macumer entrevê esse futuro e sente-se diminuído pelo seu amor. Sua viagem à Sardenha prova-me que ele vai tentar reencontrar-se por meio dessa separação momentânea. Tu não hesitas em exercer o poder que te dá o amor. Tua autoridade transparece num gesto, no olhar, no acento. Ó querida, és, como te dizia tua mãe, uma louca cortesã. Certamente, está provado para ti que eu sou de muito superior a Luís, mas viste-me alguma vez a contradizê-lo? Não sou eu, em público, uma mulher que o respeita como o poder da família? “Hipocrisia!”, dirás. Em primeiro lugar, os conselhos que julgo útil dar-lhe, minhas opiniões, minhas ideias, eu nunca lhas submeto, a não ser na sombra e no silêncio do quarto de dormir; mas posso jurar-te, meu anjo, que mesmo então não aparento em relação a ele nenhuma superioridade. Se eu não me mantivesse, quer secreta, quer ostensivamente, como sua mulher, ele não teria confiança em si. Minha querida, a perfeição da ação benéfica consiste em a gente apagar-se tão completamente que quem recebe o benefício não se julgue inferior ao que beneficia, e esse devotamento dissimulado encerra doçuras infinitas. Por isso minha glória consistiu em te enganar a ti mesma e tu me felicitaste a respeito de Luís. A prosperidade, a felicidade, a esperança fizeram-lhe, aliás, recuperar nestes dois anos tudo o que a desgraça, as misérias, o abandono e a dúvida o haviam feito perder. Neste momento, pois, segundo minhas observações, acho que amas Felipe por ti, e não por ele. Há alguma verdade no que te disse teu pai; teu egoísmo de grande dama está mal e mal disfarçado sob as flores da primavera de teu amor. Ah! Minha filha, é preciso querer-te muito para te dizer tão cruéis verdades. Deixa-me contar-te, sob a condição de jamais revelares ao barão uma só palavra, o fim de uma das nossas conversações. Tínhamos entoado os teus louvores em todos os tons, pois ele percebera perfeitamente que eu te queria como a uma irmã, e depois de o ter levado, sem que ele se desse conta, a me fazer confidências:
— Luísa — disse-lhe eu — ainda não lutou com a vida, ela tem sido tratada pela sorte como uma criança mimada, e é bem possível que venha a sofrer se o senhor não souber ser para ela um pai como é um amante.
— Sim, mas posso eu sê-lo? — exclamou ele.
Deteve-se de repente, como um homem que vê o abismo onde se vai despenhar. Aquela exclamação bastou-me. Se não tivesses ido embora, ele ter-me-ia dito mais, alguns dias depois.
Meu anjo, quando esse homem estiver sem forças, quando ele tiver chegado à saciedade no prazer; quando se sentir, não digo aviltado, mas sem a sua dignidade diante de ti, as censuras que lhe fará sua consciência lhe darão uma espécie de remorso, opressivo para ti, justamente por te sentires culpada. Acabarás, afinal, desprezando aquele a quem não te habituaste a respeitar. Pensa nisto: o desprezo na mulher é a primeira modalidade do ódio. Como tens um nobre coração, tu te lembrarás sempre dos sacrifícios que Felipe fez por ti; mas ele não terá mais outros a fazer, depois de se haver, de algum modo, servido a si próprio nesse primeiro festim, e infeliz do homem, e também da mulher, que nada deixam a desejar! Nada mais resta a dizer. Para nossa vergonha ou glória — não sei decidir esse ponto delicado —, não somos exigentes senão com o homem que nos ama!
Ó Luísa, modifica-te, ainda é tempo. Podes, procedendo com Macumer como eu o faço com Luís, fazer surgir o leão oculto nesse homem verdadeiramente superior. Dir-se-ia que te queres vingar da sua superioridade. Será que não te sentirás orgulhosa de exercer teu poder de outro modo que não em teu proveito, de fazeres um homem de gênio de um grande homem, como eu faço um homem superior de um homem comum? Embora tivesses permanecido no campo, sempre te haveria escrito esta carta; eu teria temido tua petulância e teu espírito, numa conversação, ao passo que, sei, refletirás, ao ler-me, sobre o teu futuro. Alma querida, tens tudo para ser feliz, não estragues a tua felicidade e volta a Paris logo que chegue o mês de novembro. As obrigações e a voragem da sociedade de que eu me queixava são diversões necessárias a vossa existência, talvez um pouco demasiado íntima. Uma mulher casada deve ter o seu coquetismo. A mãe de família que não faz sua presença desejada, pela raridade de suas aparições no meio doméstico, arrisca-se a provocar saciedade. Se eu tiver vários filhos, coisa que almejo para minha felicidade, juro-te que, assim que eles atingirem certa idade, me reservarei horas em que ficarei a sós, pois é preciso nos fazermos desejar por todos, até mesmo por nossos filhos. Adeus, querida ciumenta! Sabes que uma mulher vulgar se sentiria lisonjeada por te haver causado esse ímpeto de ciúme? Ai de mim! Eu só posso afligir-me com isso, pois que em mim existe apenas uma mãe e uma sincera amiga. Mil carinhos. Enfim, faze o que quiseres para desculpar tua partida: se não estás segura de Felipe, estou segura de Luís.
continua pág 326...
____________________[1] Grisette: costureirinha de costumes fáceis.
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.
(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843
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Leia também:
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (01)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (07)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (1)
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