quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 3ª Parte I (a) - Patriotas

 O triste fim de Policarpo Quaresma 



Lima Barreto




A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 





TERCEIRA PARTE


I - patriotas



Havia mais de uma hora que ele estava ali, num grande salão do palácio, vendo o marechal, mas
sem lhe poder falar. Quase não se encontravam dificuldades para se chegar à sua presença, mas
falar-lhe, a cousa não era tão fácil.
O palácio tinha um ar de intimidade, de quase relaxamento, representativo e eloqüente. Não era
raro ver-se pelos divãs, em outras salas, ajudantes-de-ordens, ordenanças, contínuos, cochilando,
meio deitados e desabotoados. Tudo nele era desleixo e moleza. Os cantos dos tetos tinham teias de
aranha; dos tapetes, quando pisados com mais força, subia uma poeira de rua mal varrida.
Quaresma não pudera vir logo, como anunciara no telegrama. Fora preciso pôr em ordem os seus
negócios, arranjar quem fizesse companhia à irmã. Fizera Dona Adelaide mil objeções à sua
partida; mostrara-lhe os riscos da luta, da guerra, incompatíveis com a sua idade e superiores à sua
força; ele, porém, não se deixara abater, fizera pé firme, pois sentia, indispensável, necessário que
toda a sua vontade, que toda a sua inteligência, que tudo o que ele tinha de vida e atividade fosse
posto à disposição do governo, para então!... oh!
Aproveitara os dias até para redigir um memorial que ia entregar a Floriano. Nele expunham-se as
medidas necessárias para o levantamento da agricultura e mostravam-se todos os entraves, oriundos
da grande propriedade, das exações fiscais, da carestia de fretes, da estreiteza dos mercados e das
violências políticas.
O major apertava o manuscrito na mão e lembrava-se da sua casa, lá longe, no canto daquela
planície feia, olhando, no poente, as montanhas que se alongavam, se afilavam nos dias claros e
transparentes, lembrava-se de sua irmã, dos seus olhos verdes e plácidos que o viram partir com
uma impassibilidade que não era natural; mas do que se lembrava mais, naquele momento, era do
Anastácio, o seu preto velho, do seu longo olhar, não mais com aquela ternura passiva de animal
doméstico, mas cheio de assombro, de espanto e piedade, rolando muito nas órbitas as escleróticas
muito brancas, quando o viu penetrar no vagão da estrada de ferro. Parecia que farejava desgraça...
Não lhe era comum tal atitude e como que a tomava por ter descoberto nas cousas sinais de
dolorosos acontecimentos a vir... Ora!...
Ficara Quaresma a um canto vendo entrar um e outro, à espera que o presidente o chamasse. Era
cedo, pouco devia faltar para o meio-dia, e Floriano tinha ainda, como sinal do almoço, o palito na
boca.
Falou em primeiro lugar a uma comissão de senhoras que vinham oferecer o seu braço e o seu
sangue em defesa das instituições e da pátria. A oradora era uma mulher baixa, de busto curto,
gorda, com grandes seios altos e falava agitando o leque fechado na mão direita.
Não se podia dizer bem qual a sua cor, sua raça, ao menos: andavam tantas nela que uma escondia
a outra, furtando toda ela a uma classificação honesta.
Enquanto falava, a mulherzinha deitava sobre o marechal os grandes olhos que despediam chispas.
Floriano parecia incomodado com aquele chamejar; era como se temesse derreter-se ao calor
daquele olhar que queimava mais sedução que patriotismo. Fugia encará-la, abaixava o rosto como
um adolescente, batia com os dedos na mesa...
Quando lhe chegou a vez de falar, levantou um pouco o rosto, mas sem encarar a mulher, e, com
um grosso e difícil sorriso de roceiro, declinou da oferta, visto a República ainda dispor de bastante
força para vencer.A última frase, ele a disse com mais vagar e quase ironicamente. As damas despediram-se; o marechal girou o olhar em torno do salão e deu com Quaresma:

- Então, Quaresma? fez ele familiarmente.

O major ia aproximar-se, mas logo estacou no lugar em que estava. Uma chusma de oficiais subalternos e cadetes cercou o ditador e a sua atenção convergiu para eles. Não se ouvia o que diziam. Falavam ao ouvido de Floriano, cochichavam, batiam-lhe nas espáduas. O marechal quase não falava: movia com a cabeça ou pronunciava um monossílabo, cousa que Quaresma percebia pela articulação dos lábios.
Começaram a sair. Apertavam a mão do ditador e, um deles, mais jovial, mais familiar, ao despedir-se, apertou-lhe com força a mão mole, bateu-lhe no ombro com intimidade, e disse alto e com ênfase:

- Energia, marechal!

Aquilo tudo parecia tão natural, normal, tendo entrado no novo cerimonial da República, que ninguém, nem o próprio Floriano, teve a mínima surpresa, ao contrário alguns até sorriram alegres por ver o califa, o cã, o emir, transmitir um pouco do que tinha de sagrado ao subalterno desabusado. Não se foram todos imediatamente. Um deles demorou-se mais a segredar cousas à suprema autoridade do país. Era um cadete da Escola Militar, com a sua farda azul-turquesa, talim e sabre de praça de pré.
Os cadetes da Escola Militar formavam a falange sagrada.
Tinham todos os privilégios e todos os direitos; precediam ministros nas entrevistas com o ditador e abusavam dessa situação de esteio do Sila, para oprimir e vexar a cidade inteira.
Uns trapos de positivismo se tinham colado naquelas inteligências e uma religiosidade especial brotara-lhes no sentimento, transformando a autoridade, especialmente Floriano e vagamente a República, em artigo e fé, em feitiço, em ídolo mexicano, em cujo altar todas as violências e crimes eram oblatas dignas e oferendas úteis para a sua satisfação e eternidade.
O cadete lá estava...
Quaresma pôde então ver melhor a fisionomia do homem que ia feixar em suas mãos, durante quase um ano, tão fortes poderes, poderes de Imperador Romano, pairando sobre tudo, limitando tudo, sem encontrar obstáculo algum aos seus caprichos, às suas fraquezas e vontades, nem nas leis, nem nos costumes, nem na piedade universal e humana.
Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande “mosca”; os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso - parecia não ter nervos.
Não quis o major ver em tais sinais nada que lhe denotasse o caráter, a inteligência e o temperamento. Essas cousas não vogam, disse ele de si para si.
O seu entusiasmo por aquele ídolo político era forte, sincero e desinteressado. Tinha-o na conta de enérgico, de fino e supervidente, tenaz e conhecedor das necessidades do país, manhoso talvez um pouco, uma espécie de Luís XI forrado de um Bismarck. Entretanto, não era assim. Com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no seu temperamento, muita preguiça. Não a preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma preguiça mórbida, como que uma pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma insuficiente quantidade de fluido no seu organismo. Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e desamor às obrigações dos seus cargos.
Quando diretor do Arsenal de Pernambuco, nem energia tinha para assinar o expediente respectivo; e durante o tempo em que foi ministro da Guerra, passava meses e meses sem lá ir, deixando tudo por assinar, pelo que “legou” ao seu substituto um trabalho avultadíssimo.
Quem conhece a atividade papeleira de um Colbert, de um Napoleão, de um Filipe II, de Guilherme I, da Alemanha, em geral de todos os grandes homens de Estado, não compreende o descaso florianesco pela expedição de ordens, explicações aos subalternos, de suas vontades, de suas vistas, certamente necessárias deviam ser tais transmissões para que o seu senso superior se fizesse sentir e influísse na marcha das cousas governamentais e administrativas.
Dessa preguiça de pensar e de agir, vinha o seu mutismo, os seus misteriosos monossílabos, levados à altura de ditos sibilinos, as famosas “encruzilhadas dos talvezes”, que tanto reagiram sobre a inteligência e imaginação nacionais, mendigas de heróis e grandes homens.
Essa doentia preguiça fazia-o andar de chinelos e deu-lhe aquele aspecto de calma superior, calma de grande homem de Estado ou de guerreiro extraordinário.
Toda a gente ainda se lembra como foram os seus primeiros meses de governo. A braços com o levante de presos, praças e inferiores da fortaleza de Santa Cruz, tendo mandado fazer um inquérito, abafou-o com medo que as pessoas indicadas como instigadoras não fizessem outra sedição, e, não contente com isto, deu a essas pessoas as melhores e mais altas recompensas.
Demais, ninguém pode admitir um homem forte, um César, um Napoleão, que permita aos subalternos aquelas intimidades deprimentes e tenha com eles as condescendências que ele tinha, consentindo que o seu nome servisse de lábaro para uma vasta série de crimes de toda a espécie.
Uma recordação basta. Sabe-se bem sob que atmosfera de má vontade Napoleão assumiu o comando do exército da Itália. Augereau, que o chamava “general de rua”, disse a alguém, após lhe ter falado: “O homem meteu-me medo”; e o corso estava senhor do exército sem batidelas no ombro, sem delegar tácita ou explicitamente a sua autoridade a subalternos irresponsáveis.
De resto, a lentidão com que sufocou a revolta de 6 de setembro mostra bem a incerteza, a vacilação de vontade de um homem que dispunha daqueles extraordinários recursos que estavam às suas ordens.
Há uma outra face do Marechal Floriano que muito explica os seus movimentos, atos e gestos. Era o seu amor à família, um amor entranhado, alguma cousa de patriarcal, de antigo que já se vai esvaindo com a marcha da civilização.
Em virtude de insucessos na exploração agrícola de duas das suas propriedades, a sua situação particular era precária, e não queria morrer sem deixar à família as suas propriedades agrícolas desoneradas do peso das dívidas.
Honesto e probo como era, a única esperança que lhe restava repousava nas economias sobre os seus ordenados. Daí lhe veio essa dubiedade, esse jogo com pau de dous bicos, jogo indispensável para conservar os rendosos lugares que teve e o fez atarraxar-se tenazmente à Presidência da República. A hipoteca do “Brejão” e do “Duarte” foi o seu nariz de Cleópatra...
A sua preguiça, a sua tibieza de ânimo e o seu amor fervoroso pelo lar deram em resultado esse “homem-talvez” que, refratado nas necessidades mentais e sociais dos homens do tempo, foi transformado em estadista, em Richelieu, e pôde resistir a uma séria revolta com mais teimosia que vigor, obtendo vidas, dinheiro e despertando até entusiasmo e fanatismo.
Esse entusiasmo e esse fanatismo, que o ampararam, que o animaram, que o sustentaram, só teriam sido possíveis, depois de ter ele sido ajudante general do Império, senador, ministro, isto é, após se ter “fabricado” à vista de todos e cristalizado a lenda na mente de todos.
A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia, nem a aristocracia; era a de uma tirania doméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se. Levada a cousa ao grande, o portar-se mal era fazer-lhe oposição, ter opiniões contrárias às suas e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém, prisão e morte. Não há dinheiro no Tesouro; ponham-se as notas recolhidas em circulação, assim como se faz em casa quando chegam visitas e a sopa é pouca: põe-se mais água.
Demais, a sua educação militar e a sua fraca cultura deram mais realce a essa concepção infantil, raiando-a de violência, não tanto por ele em si, pela sua perversidade natural, pelo seu desprezo pela vida humana, mas pela fraqueza com que acobertou e não reprimiu a ferocidade dos seus auxiliares e asseclas.
Quaresma estava longe de pensar nisso tudo; ele com muitos homens honestos e sinceros do tempo foram tomados pelo entusiasmo contagioso que Floriano conseguira despertar. Pensava na grande obra que o Destino reservava àquela figura plácida e triste; na reforma radical que ele ia levar ao organismo aniquilado da pátria, que o major se habituara a crer a mais rica do mundo, embora, de uns tempos para cá, já tivesse dúvidas a certos respeitos.
Decerto, ele não negaria tais esperanças e a sua ação poderosa havia de se fazer sentir pelos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil, levando-lhes estradas, segurança, proteção aos fracos, assegurando o trabalho e promovendo a riqueza.



continua na página 72...
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.



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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro


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