Elias Canetti
Fala-se muito da ânsia de destruição da massa; é a primeira coisa nela que nos salta aos olhos, e é inegável que se trata de algo encontrável em toda parte, nos mais diferentes países e culturas. Embora se constate e desaprove tal ânsia, ela jamais é realmente explicada.
A massa destrói preferencialmente edifícios e objetos. Como frequentemente se trata de coisas quebradiças — como vidraças, espelhos, vasos, quadros, louça —, inclinamo-nos a acreditar que é justamente esse caráter quebradiço dos objetos que estimula a massa à destruição. Seguramente o ruído da destruição — o espatifar-se da louça, o tinir das vidraças — contribui de modo considerável para o prazer que se tem nela: são os vigorosos sons vitais de uma nova criatura, os gritos de um recém-nascido. O fato de ser tão fácil provocá-los intensifica-lhes a popularidade: todos gritam em uníssono, e o tinir é o aplauso dos objetos. Uma necessidade especial desse tipo de barulho parece estar presente no início do processo, quando não se é ainda uma reunião de um número grande de pessoas e pouco ou nada aconteceu. O barulho promete o fortalecimento pelo qual se espera, constituindo ainda um feliz presságio dos feitos que estão por vir. Seria, porém, equivocado acreditar que o decisivo aí é a facilidade com que as coisas se espatifam. Homens lançaram-se sobre esculturas de pedra dura, não descansando até vê-las despedaçadas e irreconhecíveis. Cristãos destruíram as cabeças e os braços de deuses gregos. Reformadores e revolucionários puseram abaixo as imagens dos santos, por vezes derrubando-as de alturas que punham em risco a sua vida, e, amiúde, tão dura era a pedra que buscavam destroçar que somente em parte lograram fazê-lo.
A destruição de imagens representando algo é a destruição de uma hierarquia que não se reconhece mais. Violam-se as distâncias universalmente estabelecidas, visíveis a todos e vigentes em toda parte. A dureza das imagens era a expressão de sua durabilidade; elas existem há muito tempo — pensa-se —, existem desde sempre, eretas e inamovíveis; e era impossível aproximar-se delas munido de um propósito hostil. Agora, foram derrubadas e reduzidas a escombros. Nesse ato consumou-se a descarga.
Esta, porém, nem sempre vai tão longe. A destruição de tipo mais comum, da qual se falava aqui a princípio, nada mais é do que um ataque a todas as fronteiras. Vidraças e portas são parte dos edifícios; elas constituem a porção mais frágil de sua separação do exterior. Uma vez arrombadas portas e vidraças, o edifício perde sua individualidade. Qualquer um pode, então, e a seu bel-prazer, entrar; nada, ninguém lá dentro se encontra protegido. Nesses edifícios — pensa-se — encontram-se geralmente enfiados aqueles que buscam excluir-se da massa: os inimigos dela. Destruiu-se, pois, aquilo que os aparta. Nada mais há entre eles e a massa. Podem, pois, sair e juntar-se a ela. Ou pode-se ir buscá-los
Há, contudo, mais coisas envolvidas aí. O próprio indivíduo tem a sensação de que, na massa, ele ultrapassa as fronteiras de sua pessoa. Sente-se aliviado por se terem eliminado todas as distâncias que o compeliam de volta a si próprio e o encerravam. Com a eliminação das cargas da distância, ele se sente livre, e sua liberdade consiste nesse ultrapassar das fronteiras. Mas o que acontece com ele deve ocorrer também aos outros: ele espera que se dê o mesmo com eles. O que o irrita num vaso de barro é que este nada mais é do que uma fronteira. Num edifício, irritam-no as portas trancadas. Ritos, cerimônias, tudo quanto mantém distâncias o ameaça, é-lhe insuportável. A esses recipientes pré-formados buscar-se-á reconduzir a massa estilhaçada. Esta odeia suas prisões futuras, as quais sempre viu como prisões. Aos olhos da massa nua, tudo parece uma Bastilha.
O mais impressionante de todos os meios da destruição é o fogo. Ele é visível de longe e atrai mais pessoas. Além disso, destrói de modo irrevogável. Depois de um incêndio, nada permanece como era. Ateando fogo às coisas, a massa julga-se invencível. À medida que o fogo se propaga, tudo se junta a ela. Ele aniquila tudo o que lhe é hostil. Como se verá, o fogo é o símbolo mais vigoroso que existe para a massa. E, terminada a destruição, o fogo, assim como a massa, tem de extinguir-se.
continua página 24...
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Leia também:
Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
Massa e Poder - A Massa (A Ânsia de Destruição)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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