quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Massa e Poder - A Massa (A Descarga)

Elias Canetti


A DESCARGA

O mais importante acontecimento a desenrolar-se no interior da massa é a descarga. Anteriormente a ele, a massa ainda não existe de fato. É somente a descarga que efetivamente a constitui. Trata-se do momento em que todos os que a compõem desvencilham-se de suas diferenças e passam a sentir-se iguais. Por diferenças há que se entender particularmente aquelas impostas a partir do exterior — as diferenças determinadas pela hierarquia, posição social e pela propriedade. Individualmente, os homens estão sempre conscientes dessas diferenças. Elas pesam sobre eles, apartam-nos com grande vigor uns dos outros. Postado em lugar definido e seguro, o homem, com gestos jurídicos eficazes, afasta de si tudo quanto dele se aproxima. Sua postura assemelha-se à de um moinho de vento, expressivo e em movimento em meio a uma enorme planície: nada há até o próximo moinho. A totalidade da vida, conforme ele a conhece, assenta-se em distâncias; a casa na qual ele encerra a si próprio e a suas posses, o cargo que ocupa, a posição pela qual anseia — tudo isso serve para criar, consolidar e ampliar distâncias. A liberdade do movimento mais profundo rumo ao próximo é cerceada. Impulsos e contra impulsos esvaem-se qual num deserto. Ninguém é capaz de chegar próximo ou à altura do outro. Hierarquias solidamente estabelecidas em cada domínio da vida não permitem a pessoa alguma tocar naquele que está mais acima, ou descer — a não ser em aparência — até o que se encontra mais abaixo. Em sociedades diversas, diversa é a maneira pela qual tais distâncias se contrabalançam. Em algumas, dá-se ênfase às diferenças de origem; em outras, àquelas determinadas pela propriedade.

Não se trata aqui de caracterizar uma a uma essas hierarquias. O essencial é que elas existem em toda parte; que se aninham na consciência dos homens e determinam decisivamente o seu comportamento para com os outros. A satisfação de situar-se hierarquicamente acima dos demais não oferece compensação pela perda da liberdade de movimentos. Em suas distâncias, o homem se faz rijo e sombrio. Ele se arrasta sob o peso de tais cargas e não sai do lugar. Esquece que foi ele próprio quem se impôs essas cargas e anseia por libertar-se delas. Mas como há de libertar-se sozinho? O que quer que faça — e por mais decidido que esteja —, encontrar-se-á em meio a outros que frustrarão o seu empenho. Enquanto estes últimos aferrarem-se a suas distâncias, ele não logrará aproximar-se um milímetro sequer.

Somente a união de todos é capaz de promover-lhes a libertação das cargas da distância. E é precisamente isso o que acontece na massa. Na descarga, deitam-se abaixo as separações, e todos se sentem iguais. Nessa sua concentração, onde quase não há espaço entre as pessoas, onde os corpos se comprimem uns contra os outros, cada um encontra-se tão próximo do outro quanto de si mesmo. Enorme é o alívio que isso provoca. É em razão desse momento feliz, no qual ninguém é mais ou melhor que os outros, que os homens transformam-se em massa.

Contudo, o momento da descarga, tão cobiçado e feliz, encerra em si o seu próprio perigo. Padece de uma ilusão básica: embora sintam-se subitamente iguais, os homens não o são de fato, nem o são para sempre. Retornam cada um a sua casa e põem-se em suas camas para dormir. Conservam suas posses e não renunciam ao próprio nome. Não repudiam seus parentes nem abandonam a família. Somente em conversões de natureza mais séria é que os homens rompem antigos vínculos, assumindo novos. Tais vinculações, que, por sua natureza, podem acolher apenas um número limitado de membros e precisam assegurar a própria existência mediante duras regras, eu as chamo cristais de massa. De sua função, tratar-se-á mais detalhadamente adiante.

Quanto à massa, porém, esta desfaz-se. Sente que irá desfazer-se. Ela só é capaz de seguir existindo se se dá continuidade ao processo da descarga, com novas pessoas juntando-se a ela. Somente o crescimento da massa impede que seus componentes voltem a arrastar-se sob o peso de suas cargas privadas.


continua página 21...
____________________

Leia também:

Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Massa e Poder - A Massa (A Descarga)
____________________


ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.


_______________________


Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg

Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim

Título original Masse und Macht


"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Nenhum comentário:

Postar um comentário